terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Memórias da redação - O melhor fracasso das nossas vidas

Hotel Novo Mundo, 2005, almoço comemorativo dos 20 anos de lançamento da Revista Fatos.
A partir da esquerda, José Rodolpho, Cony, Esmeraldo  Alberto, Orlandinho, Daisy Prétola, Barros, Maria Alice, Roberto Muggiati e Alvimar Rodrigues. Foto de Jussara Razzé

por José Esmeraldo Gonçalves 

Em março de 2005, um animado almoço no Hotel Novo Mundo celebrou um fracasso.

Aquele mês marcava os 20 anos do lançamento de um projeto no qual nos envolvemos sob o comando de Carlos Heitor Cony: a revista semanal Fatos, lançada em 17 de março de 1985, como  uma tentativa de adicionar ao portfólio da Bloch uma publicação de informação e análise.

Com Carlos Heitor Cony na Livraria da Travessa,
Leblon, 2008. Foto Alex Ferro
A crise econômica dos anos 1980, a falta de investimento e o desgaste do modelo editorial haviam exaurido a Fatos & Fotos, semanal ilustrada de variedades. Não apenas a revista, mas nós, o próprio Cony, que era o diretor, eu, editor, e o J.A.Barros, diretor de Arte.

Em fins de 1984, ao cair da tarde, após um fechamento quase protocolar tão precário era o conteúdo da revista, concluímos os três que não dava mais. Alguma coisa teria que ser feita.

Na época, Cony estava bem próximo de Tancredo Neves. O mineiro fazia a campanha para a eleição indireta via colégio eleitoral e costumava consultá-lo sobre slogans e outras peças de propaganda. Após a frustração nacional com a derrota da Emenda das Diretas Já no Congresso, a eleição de um presidente civil, mesmo pelas regras da ditadura, abria algumas perspectivas para o Brasil.

Com Barros, na casa do Cony, em uma das "reuniões de pauta"
para o livro "Aconteceu na Manchete". Foto Jussara Razzé
Cony acreditava que os novos tempos teriam um impacto no jornalismo após mais de 20 de chapa branca ou chapa verde-oliva e via o momento como ideal para uma revista de informação. Começamos a esboçar um projeto, definir editorias e colunas. A revista Panorama, da Itália, era uma inspiração inicial por somar o texto informativo a um bom aproveitamento de fotos. Barros desenhou modelos de páginas. A publicação pretendia enfatizar os textos, mas sem romper inteiramente com a tradição e o know how da casa em jornalismo ilustrado.

E assim foi dada a largada. Cony obteve junto a Adolpho Bloch a aprovação para o projeto, incluindo o aval para a contratação de jornalistas e colunistas. Fizemos um número zero e o apresentamos às agências de publicidade. A primeira edição iria para as bancas no dia 17 de março, com a cobertura da posse de Tancredo, uma grande matéria sobre sua trajetória política e pessoal, o novo ministério, os rumos da Nova República, além dos demais acontecimentos da semana em todas as áreas.

Cony contou na Folha como recebeu a informação exclusiva que atropelou o fechamento da primeira Fatos. 
Tudo planejado, menos a fatalidade que iria atropelar o fechamento da nova revista. Quando o Brasil e toda a mídia acompanhavam Tancredo na expectativa da posse, Cony soube por uma fonte exclusivíssima que o mineiro não subiria a rampa do Planalto. Vivemos a situação insólita de começar a refazer páginas da revista, enquanto a TV ainda mostrava os preparativos para a solenidade.

O resto é história. Tancredo foi internado, Sarney virou capa da primeira Fatos, vieram o Plano Cruzado, os "fiscais do Sarney", a euforia seguida da depressão, mais do mesmo, o caos, o clientelismo, a "transição" que preservava muito da força do regime anterior.

Ao longo de 1985, a Fatos seguiu em frente e publicou várias capas e matérias investigativas com relativa repercussão, mas só resistiu a um ano de meio de vida. Nomes e assuntos até então vetados pelo regime ganharam espaço na revista: D.Helder, Prestes, Capitão Sérgio Macaco, a reabertura do Caso Baumgarten, as "casas de tortura" da ditadura, arquivos dos órgãos de segurança destruídos por militares etc. Tais pautas consolidaram internamente a senha para uma campanha Delenda est Fatos. A Bloch, como a França sob as botas nazistas, tinha seus colabôs, que era o termo usado para quem apoiava a ocupação. Assim, a empresa abrigava algumas figuras subalternas perfeitamente identificadas como colabôs do regime militar. E o que era, no início, conversa de corredor, logo ganhou força de boicote que atingiu os setores publicitários, a tiragem, a distribuição e até o pagamentos de frilas e colunistas. Cony resistia, tentava contornar os problemas e se colocava como um escudo a preservar a equipe e o foco no trabalho.

Adolpho Bloch, diga-se, nunca retirou o seu apoio à revista e era através dele que Cony ia conseguido sobrevida para a Fatos. O problema estava nos escalões abaixo, até com um ativismo de alguns colegas jornalistas que trabalhavam em outras publicações da empresa. Adolpho chegou a receber telegramas de falsos leitores que denunciavam a Fatos como um "covil de comunistas" e perguntavam como isso era permitido na empresa. Tais telegramas eram postados por um desses jornalistas em uma agência dos Correios, em Copacabana. O tom era mais ou menos como o das "mensagens de ódio" das redes sociais de hoje.

Aos poucos, a revista foi se tornando inviável, não evoluiu editorialmente como era previsto e teria potencial para isso. Os pagamentos aos frilas e colunistas, obviamente essenciais, ficavam retidos por meses. Em fins de maio de 1986, Cony me convocou e ao Barros, detalhou a situação e perguntou se não achávamos que a Fatos havia chegado ao limite. Não havia como negar, o cerco se estreitava. As mínimas condições de trabalho estavam comprometidas. Foi decidido ali o fechamento definitivo da revista. Cony avisou Adolpho, a quem pediu dois meses para tentar recolocar em outras publicações da Bloch o maior número possível de funcionários. O que foi feito, a operação resgate liderada pelo próprio Cony deu certo. A maioria dos editores comprou a ideia e ajudou a absorver os expatriados da Fatos. De uma equipe que na fase final tinha pouco mais de 20 pessoas alguns optaram por pedir demissão, a maioria foi remanejada para Manchete, Ele Ela, Geográfica etc, três ou quatro foram demitidos. Eram outros tempos, outros "modelos de gestão", e houve quem conseguisse vagas no O Dia, no Jornal do Brasil e no Globo.

O fim da revista foi melancólico. No penúltimo número, com o então ministro Dilson Funaro na capa, aproveitamos as circunstâncias e cravamos na chamada, em destaque, o nosso recado cifrado para o público interno: Sabotagem. O último número, já descaracterizado e fora do nosso controle, trazia Antonio Ermírio na capa como personagem de uma insólita matéria paga. O empresário tinha pretensões eleitorais e ensaiava se lançar na política. A Fatos terminal teria sido usada como veículo para desovar uma permuta comercial pendente com o poderoso dono do grupo Votorantim.

Um desfecho nada honroso. 

Dois dos mais notórios colabôs abriram champanhe para comemorar o fim da Fatos. Dificilmente, até o fim das suas vidas, as duas lamentáveis figuras tiveram algo mais a festejar.


Cony e alguns dos demais autores da coletânea "Aconteceu na Manchete, as histórias que ninguém contou": da esq. para a dir. Alberto Carvalho, Lenira Alcure, Jussara Razzé, Bia Lajta Cony, Daisy Prétola, Maria Alice Mariano, Roberto Muggiati, Esmeraldo, José Rodolpho e, à frente, J. A. Barros. Foto de J. Egberto

Reencontro em junho de 2010, quando Cony lançava o livro  "Eu, aos pedaços": Daisy, Cony, Barros, Lenira, Esmeraldo e Jussara. 

Quanto a nós, no Novo Mundo, brindamos à Fatos, o melhor e mais inesquecível fracasso das nossas vidas.

E foi durante aquele almoço de 20 anos da revista mais loser do jornalismo brasileiro (com toda a honra, obrigado), que surgiu e ganhou corpo, em meio a 'causos' que relembravam as redações da velha Bloch, a coletânea "Aconteceu na Manchete - As histórias que ninguém contou". O que começou como uma conversa à mesa tornou-se um livro de 500 páginas e mais de 200 imagens. Mais uma vez, com a participação decisiva de Cony.


A Folha de São Paulo prestou uma tocante homenagem a Carlos Heitor Cony. Deixou em branco o seu tradicional espaço na página 2.

Para os leitores, simboliza a ausência.

E retrata - para todos nós que por bons tempos convivemos com o amigo - o vazio que fica. 

3 comentários:

Roberto Muggiati disse...

Um relato preciso do que ocorreu na Bloch naquele momento sensível da transição da
ditadura militar para o que desejávamos - e desejamos até hoje - fosse uma
autêntica democracia no Brasil.
É no fracasso, muito mais do que no sucesso, que as pessoas
revelam a sua verdade.

Assim foi na Manchete em que um único dia, a véspera do 15 de março,
nos levou o líder que poderia ter mudado a História, para engolfar o país, uma vez mais, no caos e na desesperança.
ABRAÇO

J.A.Barros disse...

E foi com a ausência desse líder que tudo mudou no país. Mudou para muito pior com a presidência do José Sarney, levando o Brasil a um índice inflacionário de 90% ao mês. E daí para frente nada melhorou ou se modernizou, pelo contrário, cada vez mais mergulhava o Brasil no caos econômico e fiscal que para acertar levará mais de 50 anos.

Administrador disse...

Mensagens recebidas por José Carlos Jesus, presidente da Comissão dos Ex-Empregados da Bloch Editores e encaminhadas ao blog via email

Muito bom saber dessas histórias de bastidores, dá mais saudade ainda.

Nilson

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Ótima história. Bem a cara da Bloch.
Dora