sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Mídia saúda Pelé

 





O dia em que O Cruzeiro sequestrou a seleção campeã de 1958 e eu conversei com Pelé - Por J.A. Barros

O gol de Pelé que deu a vitória ao Brasil, por 1x0, contra País de Gales. O jogador beijou a bola no fundo das redes. Foto Jáder Neves-Manchete

. Reprodução
Pelé posou para O Cruzeiro. Reprodução

O goleiro Gilmar beija a Jules Rimet em frente à sede de O Cruzeiro

1958: Brasil vence a Copa do Mundo, na Suécia, e revela um jogador de 17 anos que viria a ser, logo depois, considerado Rei de Futebol. Edson Arantes do Nascimento, ou melhor, Pelé, fazia sua estreia no mundo. 

Naquele ano, eu trabalhava no Departamento de Arte, da revista O Cruzeiro. Consagrada a vitória, a seleção chegaria ao aeroporto do Galeão e, em cima de um carro de bombeiros, desfilaría pela cidade até o Palácio do Catete, onde o presidente Juscelino Kubitschek iria homenagear os campeões. 

Pois bem, diante desse fato, a direção da revista O Cruzeiro também resolveu celebrar os jogadores no salão de recepção da sua sede projetada por Oscar Niemeyer, na Rua do Livramento, no Centro do Rio de Janeiro. No espaço, com obras em grandes formatos de Portinari, foram montadas mesas de finos salgados, champanhe, caviar, enfim, um bufê servido pela Confeitaria Colombo. Mas o problema era como conseguir sequestrar seleção, desviando o comboio do seu trajeto e conduzindo-o para o prédio da revista. Estava previsto que o cortejo passaria na Av. Rodrigues Alves, nas proximidades da  Livramento. Rodolfo Brandt, que fazia parte do grupo de jornalistas da Cruzeiro, era da Policía Especial e pilotava uma motocicleta.  Assim que a comitiva saiu do Galeão, Rodolfo se posicionou à frente do carro dos bombeiros e passou a liderar a comitiva. O jornalista-policial entrou na Rodrigues Alves, região onde arqueólogos descobriram o porto onde os escravizados desembarcavam, e atrás dele vieram os bombeiros e os craques em caminhão aberto. Daí em  diante foi fácil. Rodolfo pegou a Sacadura Cabral e, em seguida, a Rua do Livramento. Em poucos minutos, a seleção entrava no saguão de O Cruzeiro. Em principio,a comitiva não entendeu muito o que estava acontecendo, mas resolveu relaxar e aproveitar o momento. 

Nós, do Departamento de Arte, que estávamos trabalhando, corremos para o salão, conhecemos alguns jogadores e nos detivemos em um garoto que, um pouco tímido, passou a conversar com a gente. Pelé nos disse seria o melhor jogador de futebol do Brasil. Claro, não acreditamos muito. A seguir, a  seleção retomou seu roteiro, afinal, um Presidente da República do Brasil estava aguardando os campeões do mundo havia algumas horas. 

O "sequestro" não resultou apenas em comemorações: repórteres e fotógrafos da revista fizeram matérias exclusivas com os herois do primeiro título mndial da seleção brasileira. Além disso, fomos os primeiros a ver de perto a Taça Jules Rimet. Em certo momento, o goleiro Gilmar foi para a rua e posou beijando a taça com a sede de o Creuzeiro ao fundo.

Minha filha costuma dizer que Deus gostava muito de futebol, mas não sabia jogar, então deu a Pelé toda a inteligência e toda a arte de jogar bola. 

Pelé, na minha opinião, é o eterno milagre da vida


Minhas tabelinhas com Pelé • Por Roberto Muggiati

 

 

A Fatos&Fotos foi a primeira revista a publicar a história foto de Orlando Abrunhosa

           
Em seguida, a  mesma imagem do fotógrafo brasileiro foi colorizada para
a capa da Paris Match


Um gol de gênio

 Foi pelo rádio de um carro de reportagem nos arredores de São José dos Pinhais – a caminho do local do desastre de avião que matou Nereu Ramos em 1958 – que ouvi o primeiro gol de Pelé numa Copa do Mundo. O gol que deu a vitória ao Brasil contra o País de Gales nas quartas de final. Um gol antológico que é repetido a toda hora na TV.

O primeiro gol de Pelé em Copas do mundo - 1958 - YouTube CLIQUE AQUI

               

Le Roi Pelé

Em Paris, 1961, estudando no Centre de Formation des Journalistes, certas noites, voltando para a Cité Universitaire, eu comia algo leve no bistrô La Petite Source, no Carrefour de l’Odéon, muitas vezes na companhia do colega Abdou Cissé, do Senegal, que me assediava sedento de notícias do Brasil. Quando nos conhecemos olhou para mim como se eu fosse um ser extraterreno e me perguntou, solene:

– Monsieur Muggiatí, est-ce que tu connais vraiment le Roi Pelé?

Na sua visão, Sua Majestade Edson Arantes do Nascimento reinava soberano sobre um vasto império tropical cheio de súditos felizes. Curiosamente, eu acabara de assistir em 13 de junho, no Parc des Princes, à fabulosa vitória do Santos de Pelé sobre o Racing por 5x4 no Torneio de Paris, diante de um público de 40 mil pessoas.

O gol 1000 

Como editor da revista semanal Fatos&Fotos, que fechava às quartas-feiras para ir às bancas na sexta, coube a mim botar na capa da revista o milésimo gol de Pelé, no Maracanã, de pênalti, contra o goleiro do Vasco Andrada, na noite de 19 de novembro de 1969, na vitória do Santos por 2x1.

A foto imortal

Não há cargo mais arriscado do que editor de revista ilustrada. Em meados de 1970 eu ainda dirigia a Fatos&Fotos, notória pela alta rotatividade de seus editores. O Brasil estreava na Copa do México desacreditado e com um susto, em Jalisco: já aos 11 minutos, tomava um gol da Checoslováquia, mas acabava virando o jogo e ganhando de 4x1. O jogo foi numa quarta-feira. O entusiasmo pela seleção nos fez adiar o fechamento para quinta-feira. O fuso do México nos ajudava, recebemos as fotos pelo malote que chegou ao Rio na quinta, eram rolos e rolos de filme a ser revelados, demos preferência ao preto e branco pela urgência do fechamento. O laboratório revelava, depois copiava as tiras das fotos em 35mm nas “folhas de contato”, a partir das quais o editor escolhia as melhores imagens com a ajuda de uma lupa. Reparem, cada fotinho daquelas ocupava um pequeno retângulo de 35mm, ou seja, 3,5 centímetros de comprimento. Agradeço ao meu pai por encher nossa casa de livros com as obras-primas dos grandes pintores e as melhores revistas de fotografia. Aquilo contribuiu muito para minha educação visual, característica vital para um editor de revista ilustrada. Imaginem o vexame de deixar escapar uma imagem premiada... 

Quando os “contatos” pousaram na mesa de edição, foi como um golpe de mágica, meu olho logo caiu sobre a foto de Orlando Abrunhosa que mostra Pelé socando o ar no vértice de um triângulo formado por ele, Tostão e Jairzinho. Um detalhe importante: era uma foto horizontal, mas privilegiamos o corte vertical para maior efeito estético. Publiquei na capa, num preto-e-branco azulado com as chamadas e o logotipo em cor. Na manhã do sábado a revista esgotava em poucas horas  nas bancas do Rio e de São Paulo. Na semana seguinte, Paris-Match publicou a foto na capa, numa versão colorizada. A foto – que nós apelidamos “os três mosqueteiros” – ganhou o mundo nas décadas seguintes, foi até um selo comemorativo dos correios brasileiros. É uma das fotos que, em meus 28 anos de editor de revista ilustrada – mais me orgulho de ter publicado. Fazendo tabelinha com o inesquecível Rei Pelé...

PS • As imagens que revimos à exaustão na TV do futebol do Pelé são um hino à ousadia ofensiva, as investidas na diagonal e na vertical rumo ao gol. Os dribles, as fintas, um verdadeiro balé, calcado na pureza do futebol de várzea. O oposto do futebol de resultados mesquinho e chato de um Messi, futebol de salão maculando a grama sagrada¸ jogo de xadrez apostando no erro do adversário; e da monotonia da posse de bola dos espanhóis, com nojo da penetração. Em Pelé tivemos a velocidade física e do pensamento, a improvisação, a criação de jogadas nunca tentadas antes no futebol. A força comandada pela inteligência.


quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Há 30 anos: Itamar Franco, nosso melhor Presidente • Por Roberto Muggiati

Em 1994,  Itamar Franco, ao lado do seu ministro da Fazendar Rubens Ricúpero, que assumiu o cargo após o titular Fernando Henrique se afastar para se candidatar à Presidência, exibe o Real, a nova moeda brasileira, como resultado do plano de estabilização econômica idealizado, a pedido de Itamar, pelos  economistas Persio Arida, André Lara Resende, Gustavo Franco, Pedro Malan, Edmar Bacha, Clóvis Carvalho e Winston Fritsch. Foto PR.

Itamar Franco e o presidente Fernando Henrique Cardoso, que o sucedeu favorecido
pelo sucesso do Plano Real. Foto PR


Logotipo do governo de Itamar Franco, em 1992: Brasil Unido já era um apelo.

É uma verdade tão óbvia, mas jamais foi proclamada publicamente como o faço aqui e agora: durante dois anos, 1993 e 1994, o Brasil teve seu melhor presidente de todos os tempos, Itamar Augusto Cautiero Franco. 

Com a renúncia de Fernando Collor de Mello após o impeachment, Itamar assumiu definitivamente a presidência em 29 de dezembro de 1992. 

Político mineiro da boa e velha escola, Itamar armou uma administração sólida e honesta, cercando-se de uma equipe eficiente, principalmente na área econômica, que acabaria criando e implantado o Plano Real, com a adoção da nova moeda em 1º de julho de 1994. Escolhendo Fernando Henrique Cardoso como Ministro da Fazenda, Itamar premiou o sociólogo que nada entendia de finanças com a eleição à Presidência, passando-lhe a faixa em 1º de janeiro de 1985. Esse período mágico da vida política nacional foi batizado como República do Pão de Queijo. Um detalhe curioso: Itamar Franco foi o único presidente que não nasceu no solo brasileiro, mas num navio de cabotagem na rota Salvador-Rio de Janeiro, um daqueles famosos “itas”, daí o seu nome de batismo.

PS •  Nada disso teria acontecido  se Márcia Kubitschek tivesse aceitado o convite para ser a candidata a vice de Fernando Collor. Apesar da insistência dele, a filha de JK não topou a parada. O Brasil teve de esperar dezoito anos para ter a sua primeira Presidenta, Dilma Rousseff. R.M. 

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A GENITÁLIA POLITIZADA E O HOMEM QUE CARNAVALIZOU A PRESIDÊNCIA

por José Esmeraldo Gonçalves




A mídia não registrou a efeméride. Roberto Muggiati, ex-diretor da Manchete, dotado de memória que dispensa o Google, relembrou a data no texto acima que faz justiça a Itamar Franco. 

Há exatos 30 anos, o mineiro assumia a Presidência após o desastre administrativo e o escândalo protagonizado por  Fernando Collor de Mello.  

Pois Itamar foi capaz de mudar a percepção que o brasileiro tinha dos escândalos.  A ditadura obrou  suas roubalheiras, a democracia reinstalada em 1985, também. Itamar, mineiro honesto, inovou. Seu escândalo foi no melhor estilo da épica Saturnália Romana, uma celebração do prazer. Nada de roubos, a não ser o da intimidade de uma bela modelo. 

Em 1994, eu era um dos editores da Manchete, onde a cobertura do carnaval era grande evento jornalístico e de marketing que alavancava a venda da revista.  Uma equipe numerosa de fotógrafos e repórteres experientes garantia tradicionalmente, como o fez durante décadas, a qualidade da cobertura dos desfiles das escolas de samba, na Marquês de Sapucaí. Naquela noite, peguei um colete de acesso e fui para a pista. Adolpho Bloch iria a um dos camarotes do Sambódromo para o qual Itamar Franco e amigos do staff do governo também estavam convidadom. Pauta recomendada e fotógrafos atentos. O nosso problema, de repórteres e fotógrafos, era vigiar o camarote para não deixar de fazer a foto de Adolpho e Itamar, juntos. Tanto um quanto o outro não tinham hora marcada para chegar ao sambódromo. Sabíamos que Itamar estava hospedado no Hotel Glória e, lá, a festa já rolava  animada. O primeiro sinal de que Itamar estava na área foi dado mais tarde pela arquibancada em frente, com vista para o interior do camarote em questão e já em ebulição. 

Acompanhado de políticos e empresários, Itamar era visto em meio a garçons portando bandejas com garrafas de uísque e pratos de salgadinhos. Logo fotógrafos de vários veículos se aglomeraram diante do camarote. 

A modelo Lilian Ramos desfilou na Viradouro em um carro alegórico (alégoricas eram suas curvas) e chamou a atenção das autoridades que, àquela altura, flutuavam duas doses acima do resto da humanidade. Lilian vinha de topless, como Princesa da Pérsia. Seus seios de 96 cm podiam ser vistos até do espaço sideral. Itamar não podia deixar de notar. Presidente não pode se impressionar com nada sem que um puxa saco corra para serví-lo. E foi o que aconteceu. Lília Ramos foi convidada a visitar o camarote. Ela só teve tempo de tirar a fantasia e colocar uma t-shirt larga. Festejada e abraçada, a ela logo foi cedido um lugar ao lado do Itamar. E aí começou o problema. A cearense Lilia Ramos com seus 1.75 cm de altura ficava bem acima da mureta do espaço vip e a pista e o corredor, em plano inferior, permitiam ampla visão do que a camiseta escondia.  

Os fotógrafos se entreolharam. 

- Ela está de meia-calça?, um deles indagou. 

Não. A forte iluminação do sambódromo provava que entre a "genitália desnuda" (esse era o nome que a mídia dava às vaginas que eventualmente eram vistas na Sapucaí) e o planeta não havia qualquer barreira visual. 

Uma última observação; aquela visão nem era inédita. Seis anos antes, as revistas Playboy e EleEla já haviam revelado ao Brasil a "genitália desnuda' da bela Lilian Ramos. As críticas exageradas significavam só o patrulhamento hipócrita da moral crristã mesmo. 

E foi aquele o único escândalo do governo Itamar.  

Bons tempos. 

   

Memórias da tradução: Os 80 anos da Record • Por Roberto Muggiati

 


Alfredo Machado gostava de levar seus autores para almoçar no restaurante panorâmico do Russell. Em 1987, a convidada foi Doris Lessing, que ganharia o Nobel de Literatura exatos 20 anos depois. Ladeada por Roberto Muggiati, Adolpho Bloch, Eduardo Francisco Alves e o grande Alfredo. Foto Arquivo Pessoal


Comecei a traduzir livros em 1966 para complementar o magro salário de repórter da revista Manchete. Fiz duas ou três coisas para a Seleções do Reader’s Digest e também para as Edições Bloch, contos do Ian Fleming, que bombava com o seu 007. Meu grande hit foi Sexus, o romance do Henry Miller que é uma das traduções mais vendidas no país nas últimas sete décadas. As edições Bloch compraram os direitos da trilogia A Crucificação Encarnada: Hélio Pólvora traduziu Plexus e Nexus, coube a mim o mais chamativo Sexus. Mas – acreditem se quiserem – Adolpho Bloch abriu mão desse tesouro. Como emprenhava pelo ouvido, aconselhado por um pseudointelectual de plantão, começou a berrar na redação: “Não vou publicar essa porra cheia de palavrão, que merda! ” Para os judeus, palavrão boca afora é perdoável, mas palavrão impresso preto no branco é um pecado inadmissível.

A Bloch repassou a trilogia para o oportunista Hermenegildo de Sá Cavalcante, que ficou milionário. Autointitulado Presidente da Sociedade dos Amigos de Proust no Brasil, viajou com a família inteira – as duas filhinhas com aias exclusivas – para percorrer os roteiros de Em busca do tempo perdido. Era dinheiro a rodo, principalmente porque Hermenegildo se recusava solenemente a pagar direitos autorais. Um único autor os arrancou a forceps, Jean Genet, aquela Madame Satã literária da França. Quando veio ao Brasil, acampou dentro de uma sleeping bag no suntuoso hall do edifício de Hermenegildo e foi pago imediatamente, cash.

Em 1978 iniciei uma relação promissora com a Record traduzindo o romance Holocausto, de Gerald Green, que se tornou uma série de TV de repercussão mundial (foi até capa da Manchete). Mas o trabalho como editor da revista me ocupava demais, só quando senti que o Titanic Bloch ancorado na Rua do Russell seguia inexoravelmente para o naufrágio voltei a traduzir. Comecei com um ensaio da crítica A.S. Byatt sobre seis escritoras, Imaginando personagens. Foi para o selo Civilização Brasileira, que a Record tinha incorporado ao seu plantel. Com a falência final da Bloch Editores em 2000, passei a me dedicar quase integralmente à tradução de livros. Muito requisitado, pude me dar ao luxo de traduzir preferencialmente ficção, dos melhores autores em língua inglesa. Veteranos como Hemingway e Fitzgerald; contemporâneos como Doctorow, Vonnegut, Pat Conroy; e revelações como Michael Chabon, de quem traduzi o fabuloso As incríveis aventuras de Kavalier & Clay. 


E coloquei em bom português ainda quatro livros de um de meus autores favoritos, o reinventor do romance de espionagem, John LeCarré, com destaque para O jardineiro fiel, que foi filmado pelo brasileiro Fernando Meireles.


Nos 35 anos em que trabalhei na Manchete, também conheci vários escritores. Almocei com E.L. Doctorow no restaurante do 3º andar em 1975, quando lançou Nos tempos do ragtime, que seria transformado em filme por Milos Forman. Mal podia imaginar que, trinta anos depois, eu traduziria três de seus romances. O primeiro, City of God, de extrema complexidade, deu um trabalho incrível na escolha do título. O óbvio seria Cidade de Deus, alusão à obra de Santo Agostinho. Mas acabara de ser lançado o filme Cidade de Deus, sobre a notória favela carioca, baseado no romance de Paulo Lins. A diretora editorial da Record, Luciana Villas-Boas, negociou, pessoal e penosamente, o título com Doctorow – Deus, um fracasso amoroso, confesso que não me agradou. De Doctorow traduzi ainda os romances A Marcha (ambientado na Guerra Civil) e Homer & Langley – calcado na história verídica de dois irmãos que moram sozinhos num casarão da velha Nova York juntando todo tipo de tralhas, até serem encontrados mortos no meio da sujeira, um deles comido pelos ratos. Identifiquei-me com esse cenário horrendo porque morava numa casa de vila em Botafogo que abrigava todo tipo de trastes deixados por acumuladores como eu: a ex-mulher e o filho e a filha, que foram morar na Europa. 


Vivi também nessa casa uma situação do tipo “a vida imita a arte” durante o ano de 2004, ao fazer para a Record a terceira tradução brasileira de A Leste do Éden, de John Steinbeck, um catatau de quase 700 páginas. Envolvi-me com uma paciente da psicanalista da casa vizinha, uma mitômana patológica que se dizia grávida de gêmeos e atribuía a paternidade a mim.  A vilã da história de Steinbeck, Cathy, trai o marido, Adam, com o irmão dele, dá à luz os gêmeos Aron e Caleb (não fica claro se são filhos biológicos de Adam ou do irmão) e, sentindo sua liberdade cerceada por Adam lhe dá um tiro no ombro e foge de casa, abandonando-o com os meninos. (O livro inspirou o filme de estreia de James Dean, Vidas amargas). Sabendo que eu traduzia A leste do Éden, a mitômana Kátia vai monitorando nosso relacionamento segundo o enredo do livro. O problema é que, oito meses depois – sua barriga um tanquinho perfeito – não dá mais para sustentar a farsa. Sufocado, rompo radicalmente a relação. Kátia não se conforma e começa a assediar minha casa. Um dia chamo a PM – o 2º Batalhão ficava a uma quadra de distância – e ligo para sua mãe, que se limita a explicar: “É por isso que a colocamos em psicanálise cinco dias por semana. A Kátia é muito convincente, basta ela dar uma ordem que vai a torcida do Flamengo toda atrás...”




De 1999 até 2019 – quando a crise editorial provocada pelo calote das grandes livrarias – veio travar o meu ganha-pão, devo ter traduzido cerca de cem livros, ou mais. A grande maioria para a Record, mas também para a Ediouro, a Zahar e a Intrínseca, além das biografias do Chet Baker e do John Lennon para a Companhia das Letras. Na gestão da Maria Amélia Mello na José Olympio traduzi Pergunte ao pó e outros seis ou sete títulos de John Fante. Para o selo da cerejinha traduzi o ensaio de Henry David Thoreau Caminhando, acrescido de um perfil do autor e de um texto meu A Arte de Andar. Vendeu bem.


Em 2002 e 2003, tentei uma jogada diferente. Organizei as antologias A selva do dinheiro/Histórias clássicas do inferno econômico e A selva do amor/Contos clássicos da guerra dos sexos, com autores da minha predileção: Poe, Jack London, Conrad, Stevenson, Lawrence, Virginia Woolf, Joyce, Kafka, Proust, Henry James, Fitzgerald, Tchecov, Dostoievski, Tólstoi, entre outros. Propus abrir mão do pagamento pela tradução e me tornar o detentor dos direitos autorais, já que todos eram autores em domínio público. Não foi o best-seller que eu esperava, mas me orgulho muito destas duas “selvas”. Outro trabalho que me gratificou foi a tradução de O grande Gatsby, a partir da edição restaurada dos 75 anos. Explico: Fitzgerald escreveu o romance em meio a uma crise conjugal com Zelda e fez a revisão das provas tipográficas em meio a férias etílicas na Riviera francesa. As provas iam e vinham de navio, em meio a duras críticas do editor do livro, o exigente Maxwell Perkins. Resultado: o romance foi publicado em 1925 cheio de erros e inconsistências. Tempos depois, numa fase de rara sobriedade, o próprio Fitzgerald rabiscou correções a mão num exemplar do livro. Isso, somado ao trabalho de décadas de renomados scholars fitzgeraldianos, resultaria na edição restaurada que eu traduzi para a Record em 2003.


Um tradutor não é uma máquina. Pessoalmente, sempre me senti, nessa função, como uma espécie de estivador das palavras, carregando arduamente frase após frase e revivendo as emoções – as alegrias e os sofrimentos – do enredo e dos personagens.  Foi assim, de modo marcante, com os dois últimos trabalhos. Uma Vida Pequena, de Hanya Yanagihara, conta a história de quatro amigos, centrada na figura atormentada e trágica de Jude, bebê abandonado na porta de um convento, adotado pelos padres e abusado sexualmente por eles, que se pune pelos pecados que não cometeu através da automutilação. 



Já O bom pastor, de C.S. Forester – levado ao cinema por Tom Hanks no filme Greyhound: Na mira do inimigo – narra a travessia de um comboio de suprimentos da América do Norte até Liverpool durante a 2ª Guerra num Atlântico Norte infestado de submarinos alemães.  O comandante do comboio de 37 navios – quatro apenas dotados de bombas de profundidade para se defender dos temíveis U-boats – é assolado sem trégua ao longo da travessia pelos submarinos inimigos, mal lhe sobra tempo para fazer as necessidades ou comer um sanduíche e beber uma xícara de café. Mestre da literatura marítima, Forester me fez sentir na pele cada momento de perigo da sua narrativa.

A alma da Record foi a figura telúrica de Alfredo Machado. Iniciou com Décio de Abreu a editora em 1942, como uma distribuidora de tiras de jornal e outros serviços de imprensa, a primeira syndicate brasileira de quadrinhos. A partir dos anos 60 começou a publicar livros, traduções de ficção estrangeira.  O catálogo atual do grupo é de mais de 6 mil títulos, e reúne mais de 4000 autores, entre eles 22 ganhadores do Prêmio Nobel, como Gabriel García Márquez, Herman Hesse, Albert Camus, Pablo Neruda, Ernest Hemingway, John Steinbeck, Camilo José Cela, William Faulkner, Rudyard Kipling, Nagib Mahfuz, Eugenio Montale e Günther Grass, além de gigantes brasileiros como Graciliano Ramos (Vidas secas é o campeão de vendas), Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Fernando Sabino e Dalton Trevisan.

Alfredo orgulhava-se da sede própria, um prédio sólido plantado no meio de um grande terreno próximo à barreira do Vasco, em São Cristóvão. E do Sistema Poligráfico Cameron, um moderno equipamento de impressão capaz de produzir até 100 livros de 200 páginas por minuto. Astuto relações-públicas, Alfredo descobriu o lugar ideal para entreter seus grandes autores internacionais: o restaurante da Manchete, defronte ao cartão-postal da entrada da baía de Guanabara e do Pão de Açúcar. Adolpho Bloch dizia: “Somos um grande restaurante que, por acaso, também imprime revistas. ” Participei de alguns destes almoços, notadamente com o best seller Sidney Sheldon e a prestigiada Doris Lessing, que ganharia o Nobel de Literatura em 2007. 

Corria na Manchete uma anedota típica do humor carioca de Alfredo. Numa viagem com um amigo a Roma, foram pegar as malas no hotel antes do meio-dia para não pagar outra diária. O quarto fora ocupado por duas freiras de uma cidadezinha do Wisconsin que saíram correndo para conhecer a Praça de São Pedro no Vaticano. Entre seus pertences estava uma máquina fotográfica destinada a registrar flagrantes de sua santa peregrinação. “Peraí, falou Alfredo para o amigo, ou vice-versa, vamos bater umas chapas sacanas, e arreou as calças para ter sua genitália fotografada.” E os dois ficaram a imaginar o que aconteceria quando as freirinhas fossem buscar suas fotos reveladas na lojinha da esquina do Wisconsin.

Alfredo morreu em 1991 e foi sucedido pelo filho Sérgio Machado, que fora devidamente preparado para o cargo, mas morreu prematuramente em 2016, aos 68 anos. Quem preside atualmente o grupo é sua irmã Sônia Machado Jardim, 66 anos. Ela relutou por muito tempo em entrar para o negócio da família. Formou-se em engenharia civil e seguiu seu próprio caminho. Só com a morte do pai, ouviu do irmão que não fazia sentido ela não trabalhar na Record, onde só chegaria em tempo integral a partir de 1995, depois de fazer mestrado em Administração. Com Sérgio no departamento editorial, Sônia passou a cuidar do financeiro. Além das perdas do pai e do irmão, Sônia sofreu um sequestro de 27 dias em 1997, que deixou suas marcas, mas também a fortaleceu.  Ao assumir abruptamente a presidência do grupo em 2016, aos 60 anos, entregou-se totalmente ao trabalho e amadureceu na luta. Com ferramentas técnicas para a grandiosidade da tarefa, mas se permitindo também um toque de humanidade: “Um fenômeno vai além dos influencers e da redes sociais, ele só se sustenta se for sincero. É preciso que o livro tenha qualidade para o seu leitor.”


quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Mídia: as voooooogais iiiiinsisteeentes

 






Reprodução 

Poooolícia, Boooolsonaro, a deeeeeciisão de proiiiiiiiiiibir armas... A comentarista Eliane Cantanhede tem esse estilo de alongar vogais, mas hoje estava com o vocal  especialmente elástico. Só uma observação. (Ed Sá)

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Passando pano para o ato "análogo ao terrorismo"

 A reação inicial de governo Bolsonaro à tentativa de atentado terrorista cometida por um bolsonarista,m em Brasília, foi silêncio, em seguida vieram as declarações que tentam minimizar o episódio. Tem sido assim sempre que os bolsonarista escalam a violência, que já levou  a agressões, espancamentos e até assassinatos, e permanecem impunes. 

Novidade foi a declaração do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que definiu o ato terrorista de Brasília como "análogo ao terrorismo".

O Brasil parece caminhar para não ter mais crimes: tudo será "análogo". 

Já existem "análogo a homicídio", "análogo a roubo", "análogo a estupro" , "análogo a sequestro" e outras modalidades adotadas quando o criminoso for menor de idade. 

Fazendeiros flagrados usando mão de obra escrava não respondem por trabalho escravo, mas por algo denominado "análogo ao trabalho escravo". 

Brevemente talvez tenhamos o Código Análogo ao Penal, que descreverá "quase cries" como "análogo a corrupção", "análogo a prevaricação", "análogo a apropriação indébita", "análogo a contrabando" etc. 

Assim os criminosos não se sentirão ofendidos. 

Previsões para 2023 - "Só os sádicos serão felizes", diz Allan Richard Way II

Marquês de Sade como o diabo gosta. Gravura de H. Bierstein, 1850.
Reprodução

O vidente Allan Richard Way II passa uma temporada no Nepal. Acometido de súbita nostalgia dos anos 1970, quando esteve em Katmandu, no monastério Thrangu Tashi Yangtse Monastery, mais conhecido na região como Namo Buddha, ele enviou suas previsões diretamente dos picos gelados do Himalaia. A paz das montanhas não tornou o vidente mais otimista, continua sarccástico e “noir". Junto com a previsões, ele enviou uma gravura de H. Bierstein, de 1850, que retrata Donnatie Alphonse François, vulgo marquês de Sade. Só podia ser uma mensagem cifrada. Indagado, o velho vidente abriu o jogo. "2023 será um ano onde só os sádicos serão felizes". Vamos aos tópicos.

* *Tensão na Ucrânia provocará a maior ameaça nuclear desde a crise dos mísseis em Cuba. Será a reedição mais complexa dos “10 dias que abalaram o mundo” .

·  * Uma segunda crise envolverá uma potência nuclear e também fará o relógio do Apocalipse avançar em alguns segundos: a China se sentirá perigosamente ameaçada por Estados Unidos, Japão, Taiwan e Austrália e destravará seus mísseis. Se apertará ou não o botão dependerá do Ocidente.

·  * Um bilionário que controla redes sociais sofrerá um atentado.

·  * Governos europeus enfrentarão onda de protestos nas ruas. Inflação, desemprego, juros, as conseqüências econômicas da guerra na Ucrânia, queda no atendimento social e de saúde e preços dos aluguéis estarão entre as principais razões da insatistação coletiva.

·  * Livre de condenação, Donald Trump antecipará e radicalizará a campanha presidencial de 2024. Incidentes provocados por grupos supremacistas brancos resultarão em mortes.

·  * Pesquisas indicarão que a candidatura de Joe Biden à reeleição não será viabilizada. Partido Democrata terá dificuldade para encontrar um nome que vença Trump

·  * O Flamengo não será campeão do mundo em fevereiro próximo. Real Madrid vencerá a decisão por 3x1.

·  * Neymar receberá proposta de um time dos Estados Unidos.

·  * Sem surpresas na Copa do Mundo de Futebol Feminino, na Austrália e Nova Zelândia. Decisão entre Suécia X Estados Unidos.

·  * Na mídia brasileira, durante o governo Lula, voltará a predominar o chamado “jornalismo de guerra”, reeditando o que aconteceu no governo Dilma Rousseff e nos dois primeiros mandatos de Lula. Colunistas ligados à extrema direita serão valorizados nos veículos que se aliarão aos bolsonaristas e provocarão sucessivas crises políticas.

·  * Bolsonaro não será preso como muitos esperavam.

·  * Michelle Bolsonaro abrirá uma igreja evangélica e tentará comprar uma rede de TV em sociedade com um político.

· 

** Revelações de alcova surpreendem político em recesso.

· * Depois do orçamento secreto, o Centrão do Congresso brasileiro criará a gratificação invisível para deputados e senadores e a remuneração oculta para custear “auxílio emergencial” para as famílias necessitadas dos parlamentares.

·  * Nudes agitam certo grupo de Whatsapp em Brasília.

·  * Político bolsonarista é flagrado em sauna acompanhado de um coligação da ala jovem masculina do seu partido.

·  * Ronaldo Fenômeno vende o controle do Cruzeiro.

·  * Um governador é preso por corrupção.

·   * Neymar terá problema no pé

·   * Inundação e desabamentos em Petrópolis

·   * Ressaca levará aterro da praia de Camboriú. Bolsonaristas acusam Lula.

·  * Em 2023 eventos climáticos serão uma rotina. Planeta será obrigado conviver com mais anormalidades

·   * Bolsonaristas erguem monumento místico  em Brasília para adoração a Jair. Fieis depositam dinheiro para o ex-presidente, que não dá recibos, não aceita Pix, nem cartão. Só dinheiro vivo não rastreável.

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·  * Queda de jatinho mata cantor.

·  * Sérgio Cabral será condenado a mais 80 anos de prisão. Com isso, só terá ficha limpa após cumprir todas as penas até o ano 2568

·  * Sergio Cabral lançará um livro contando tudo. No dia edo lançamento, vôos para Miami estarão lotados.

·  * Integrante da Coroa Real morrerá vítima de mal súbito. Investigação apurará circunstância suspeita.

·  * Morre piloto de Fórmula 1.

·  * Desastre internacional de avião com grande número de vítimas e brasileiros a bordo comove o país.

·  * FBI decide investigar residentes brasileiros. Suspeita é de formarem rede de tráfico de drogas e armas.

·  * Deputado bolsonarista e republicano, filho de brasileiros, eleito nos Estados Unidos, é cassado por fraude.

·  * Morre atriz brasileira.

·  * Polícia abre investigação sobre manipulação de resultados no futebol.

·  * Pastor lançará check-in-on-line para o Paraíso. Mediante certa quantia o crente não precisará entrar na fila do Juízo Final e terá aprovação garantida. Quanto maior a quantia, melhor será o acolhimento na vida eterna. O missionário será preso quando embarcar no seu jatinho Gulfstream.

·  * Santa Catarina será arrasada por tempestade inédita, fruto de conjunção climática desconhecida, com avanço brutal do mar. Na pequena ilha que sobrar do estado será construído um Memorial Antifascista.

* "Patriotas" farão manifestações antidemocráticas ao longo do ano. Em setembro acontecerá a Grande Marcha. Em agosto nascerá um bebê concebido durante um dos bloqueios fruto da paixão entre uma "patriota" casada e um pastor bolsonarista. O bebê receberá o nome de Jair. O "patriota" alegará que "pintou um clima" e não resistiu. O marido traído ganhará um emprego na Havan. 

* O PSG será desclassificado na Champions. Mais uma vez.  


Redes sociais - A crueldade on line

Um tipo de fake news divulgado no You Tube, principalmente,  mas presente em outras redes sociais, comercializa a morte. Em busca da cliques para potencializar seus ganhos Youtubers anunciam o falso falecimento de celebridades. São atores, atrizes, esportistas, cantores. Os posts são ilustrados com fotos e emojis tristes. Os autores ganham milhares de visualizações e compartilhamentos até que a farsa seja desmascarada.

Com as sucessivas internações e  lutando contra um câncer, Pelé é o maior alvo. Um desses canais chegou a anunciar que o ex- jogador estava naquele momento "se despedindo da família e dos amigos"  enquanto exibia vídeos antigos da família. A exploração do estado de saúde de Pelé é um dos maiores geradores de cliques no momento. Além do drama que vive, a família ainda é obrigada a lidar com a crueldade dos maus influenciadores

Mídia - O atentado que não é chamado de terrorista e a bomba que é apenas um "artefato".

 

Reprodução Twitter 

por Flávio Sépia 

A chamada grande mídia brasileira inventou o "atentado cidadão". Deve ser isso, a julgar pela linguagem dissimulada dos jornalões. O caso do sujeito que é gerente de posto de gasolina e ganha tanto que comprou 160 mil reais em armas é tratado como um incidente comum, algo como briga de torcida. Nos textos e títulos, mesmo quando usam a palavra "atentado", a mídia não vincula o ato a terrorismo. Claro que falta apurar muita coisa, a polícia do Distrito Federal agiu rápido nesse caso, ao contrário da recente e violenta tentativa de invasão da sede da PF. O terrorista bolsonarista confessou o crime e relatou a motivação. Queria criar um caos capaz de provocar a decretação de Estado de Sítio e impedir a posse de Lula.

Reprodução PCDF 


 O que falta apurar são as ligações do terroristas, quais seus contatos. Ele fala em pelo menos um general. Se a prisão do elemento foi rápida, o mesmo não parece ocorrer com os desdobramentos. O ministro da Justiça bolsonarista já divulgou nota onde expressa que é melhor "aguardar". Aguardar o que? Outras bombas?  Alguém já pediu a quebra de sigilo do terrorista para saber dos seus contatos? Como comprou ou recebeu as armas? E as cinco bananas de dinamite que a mídia prefere chamar de "emulsão", como se fosse um remédio pra azia? O Brasil está diante de um governo federal que não mais opera e um governo eleito que ainda não pode operar, só acompanhar os acontecimentos. Curiosamente , o clã dos Bolsonaro emoreende uma revoada. Um filho estaria na Noruega, outro já se mandou para Atlanta e o próprio Bolsonaro partiria nesta quarta-feira para se abrigar em Mar-a-Lago, onde mora Donald Trump.  Pode ser alguma coisa, pode ser nada. Pode ser apenas o último desejo de usar o jato de Presidência, as despesas pagas, o carro corporativo e todo o aparato a poucos dias de perder a grande "boca" da qual  desfrutou sofregamente. 

Em tempo 1: em seu primeiro depoimento, o terrorista afirmou que comprou armas para atender ao apelo de Bolsonaro ao pregar que povo armado jamais será escravizado.

Em tempo 2: a bomba, que a mídia minimiza para "artefato", explodiria um caminhão carregado de querosene com acesso ao pátio do Aeroporto de Brasília. Segundo a polícia do DF o dispositivo chegou a ser acionado remotamente mas um "detalhe" da instalação do detonador impediu a explosão com potencial para uma tragédia.

Em tempo 3: um dos fuzis do terrorista tem mira telescópica e é arma de longo alcance aparentemente do tipo usado por snipers. Ele teria algum plano específico para esse fuzil?

Em tempo 4- o terrorista recrutou comparsas ao frequentar o acampamento bolsonarista que ocupa área militar do QG do Exército em Brasília. 

Em tempo 5 - o terrorista foi indiciado como terrorista. Com três dias de atraso, parte da mídia passou a teclar o termo que costuma rejeitar. O bolsonarista que montou uma bomba e tentou explodir um caminhão-tanque no aeroporto de Brasília e confessou o crime logo que foi preso é, surpresa para os editores, terrorista. 

domingo, 25 de dezembro de 2022

Dilma Rousseff para entregar a faixa presidencial. Um gesto que lançará Temer e Bolsonaro no vácuo da história

 

Reprodução Twitter 

por José Esmeraldo Gonçalves

Para Dilma Rousseff deve ter sido um presente moral. O Congresso acaba de restaurar a verdade.

A presidente foi derrubada por um sórdido golpe arquitetado por, eles sim, uma quadrilha de corruptos. Não por acaso os mesmos que apoiaram as terríveis consequências que o Brasil sofreu com a quebra dos princípios democráticos. 

Deu no que deu. 

O golpe e, em seguida, o tampão Michel Temer em seu mandato ilegítimo prepararam o esgoto que fez brotar Jair Bolsonaro. 

O pretexto dos golpistas para cassar Dilma foi uma ficção contábil manipulada por interesses políticos. 

Seis anos depois, no momento em que a equipe de transição revela o caos institucional, econômico, social e moral deixado por Bolsonaro - que personificou no seu desgoverno o resultado do golpe - o Congresso aprova as contas do governo Dilma Rousseff. Todas. Na prática e para a História, o Parlamento reconhece seu trágico erro. Essa é a sinalização que faltava para caracterizar definitivamente o golpe de 2016. 

Quanto à honestidade de Dilma, a PF, as CPI, o STF, o TCU, o STJ, os fora da lei Moro e Dallagnol, elementos dos porões da organização suspeita vulgo Lava Jato, nada encontraram que a desabonasse.

Lula bem que poderia fazer um gesto que tornará Temer e Bolsonaro mais desprezíveis do que já são: pedir a Dilma Rousseff que lhe entregue a faixa presidencial. Deixar no vácuo os mandatos sujos desses dois indivíduos será uma assinatura de dignidade a inaugurar o novo governo.

 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Páginas críticas da democracia

por J.A Barros (*)

Ainda no curso ginasial, no Liceu, em Niterói, no fim da década de 1940, eu e mais uns cinco companheiros, ingressamos na Ala Jovem do PTB. Era o partido político que tinha sido fundado por Getúlio Vargas. Participei de toda campanha para eleger o candidato do PTB, a quem vim a conhecer pessoalmente quando veio de São Borja (RS) para o Rio de Janeiro, então capital do Brasil. Ajudei a organizar e participei de comícios  Niterói e no Rio de Janeiro.

Eleito presidente em 1950, Getúlio conseguiu governar o país até outubro de 1954, quando combatido ferozmente por seus opositores, tendo a sua honra ferida, deu fim à sua vida, no Palácio do Catete, sede do governo.

Na acidentada rota política do Brasil, outros presidentes vieram. Em 1964 vieram o golpe e o regime militar. Só 21 anos depois, o Brasil voltou à normalidade política e à democracia. Surgiram novos partidos, novas campanhas políticas e outros eleitos. José Sarney, Itamar Franco, Fernando Henrique e Lula conseguiram governar. Collor de Mello e Dilma Rousseff não completaram seus mandatos.

Nos dias de hoje vejo um candidato derrotado, Jair Bolsonaro, que fez uma campanha sórdida, nefasta, covarde. Fracassou na eleição, mas se esconde nos sites e neles derrama o seu veneno e suas "lives" desonestas,  mentirosas e repugnantes que, junto com seus apoiadores, espalha por todo o país. Cidadãos incautos parecem  acreditar, ingenuamente nas mentiras torpes destinadas a assustar e a espalhar o pânico na sociedade.

Ele não aceita a voz do povo concretizada nas urnas eletrônicas e, derrotado, incita uma parcela dos eleitores a se rebelarem contra a ordem e contra a Constituição Brasileira que, nos seus artigos, parágrafos e incisos, normatiza e rege os três poderes que governam o Brasil. Os vencidos se negam a reconhecer a vitória do candidato eleito pelo povo por maioria de votos e incitam uma parcela de eleitores a se postar diante de quartéis do Exército e a não reconhecer a Constituição, mãe de todas as leis. Pregam abertamente a instalação de uma ditadura. A Constituição é a lei maior e a ela devemos obedecer. Enganam-se aqueles que, pelas mentiras, pelas ofensas e pelos venenos que vomitam, pensam  conseguir vencer a vontade da maioria que espera construir um país melhor e honesto. Que deseja um governo que dê à seu povo o direito de viver em paz, em liberdade. Um governo que nunca deixará seus cidadãos sofrerem uma morte horrível, sufocados pela falta de ar, contaminados por vírus assassinos e pela incompetência e desprezo de autoridades que debocharam da grave crise sanitária. Um governo que jamais se porá a rir da morte de seus cidadãos em leitos de hospitais e jamais deles caçoará ou imitará ironicamente aqueles que morreram tragicamente.

A história nos conta que nunca a mentira e a covardia foram vencedoras finais em regimes assim, tanto reais como republicanos. A verdade, a honestidade e os princípios de igualdade social vencerão a disputa pelo poder. Cada povo, uma história, mas nenhum rei desesperado conseguiu até hoje trocar seu reino por um cavalo que o ajudasse a ganhar a batalha perdida.  Nem na ficcão de Shakespeare isso se realizou. Que o diga Ricardo III. 

A verdadeira glória consiste na vitória do bem contra o mal. Não depende de cavalos. E muito menos  de motocicletas.

(*) J. A. Barros, com longa vivência na imprensa, foi diretor de arte das revistas O Cruzeiro, Tendência, Manchete Esportiva, Fatos & Fotos, Fatos e Manchete. Pelas páginas que diagramou passaram as crises políticas  que moldaram, para o bem e para o mal, o Brasil da segunda metade do século 20

Desbolsonarizar o Brasil - De Leneide Duarte-Plon para a Rede Estação Democracia (RED)

 

Foto: Reprodução Facebook

por LENEIDE DUARTE-PLON*, de Paris (link para a RED) 

- https://red.org.br/noticia/desbolsonarizar-o-brasil/

Trabalho histórico, só pode ser bem sucedido sem anistia nem amnésia.

24 de Março. Mais memória, mais verdade, mais justiça. Faixa como esta – exibida por jogadores argentinos, entre eles Messi, em foto não datada, na qual eles vestem uniforme preto com o logotipo da Coca-Cola e da YPF, a companhia de petróleo argentina – nunca foi vista num campo brasileiro com jogadores brasileiros. Vale informar que a YPF foi privatizada pelo governo Menem, em 1999, para satisfazer a ganância do neoliberalismo mundial e pertence hoje a uma empresa espanhola. Alguém imagina jogadores brasileiros abrindo uma faixa semelhante no campo de futebol? 31 de março. Mais memória, mais verdade, mais justiça. Aqui, a amnésia foi cultivada, louvada e empurrada goela abaixo pelos militares.  A sociedade nunca conseguiu impor uma justiça de transição que julgasse militares e civis culpados de crimes contra a humanidade: tortura e desaparecimento de opositores políticos, considerados pelo direito internacional como imprescritíveis.

Não devemos esquecer que a Comissão Nacional da Verdade, parida a forceps no governo Dilma Rousseff, foi amputada das palavras Memória e Justiça por imposição dos militares que nunca admitiram que fosse feita Justiça contra os crimes da ditadura.

Temos muito a aprender com a Argentina, que soube levar ao banco dos réus e à prisão os responsáveis pela barbárie do regime militar que lá vigorou de 1976 a 1983. Nunca esqueçamos que o general Videla morreu na prisão. No Brasil, os presidentes-ditadores morreram no conforto de suas casas ou em hospitais sem nunca ter sido julgados. Seus crimes permanecem impunes.

Itália e Alemanha: como lidar com o passado

Há dois meses, o Le Monde fez uma série de reportagens sobre o fascismo para marcar os 100 anos da Marcha sobre Roma, na qual o  primeiro fascista inaugura o fascismo na Itália. O formidável trabalho de pesquisa histórica e de investigação jornalística do jornal revela um país que não virou totalmente a página do fascismo. O Le Monde qualifica a atitude dos italianos pós-guerra como um laxismo pois enterrou o fascismo sem punir os fascistas. A consequência é o governo pós-fascista de Giorgia Meloni.

Na Alemanha, o trabalho de Memória e de Justiça foi concretizado no Tribunal de Nuremberg, que julgou e puniu os nazistas por crimes contra a humanidade, num trabalho que ficou conhecido como desnazificação. Depois de Nuremberg, a História alemã, assim como as leis, garantem uma espécie de cordão sanitário contra o nazismo.

Na França, depois da guerra, a Justiça julgou e condenou todos os que colaboraram com o ocupante nazista. Épuration  foi o nome que se deu a esta justiça de transição. O ensaísta e jornalista Georges Suarez – biógrafo de Pétain, de Aristide Briand e de Georges Clemenceau – casado com a tia-avó de meu marido, foi o primeiro fuzilado por ter colaborado estreitamente com os alemães. Fora inclusive à Alemanha encontrar Hitler, com outros intelectuais franceses, como diretor do jornal de extrema-direita Aujourd’hui, sob controle alemão. Georges Suarez foi julgado, condenado e fuzilado em novembro de 1944, poucos meses depois da Libertação de Paris.

Que tipo de documentos o Trump dos trópicos, como o chama a imprensa francesa, pode estar escondendo ou mesmo queimando para continuar impune e até mesmo para trazer prejuízo ao novo governo Lula?

Esperemos que os Juristas pela Democracia e outros grupos de defesa do Estado de Direito agirão na Justiça em nome dos interesses de todos os brasileiros.

O filósofo e psicanalista Vladimir Safatle escreveu :

A amnésia construída nos mínimos detalhes por uma Lei de Anistia dos crimes da ditadura – prisões políticas, tortura e desaparecimento de corpos de assassinados pelos agentes da ditadura – explica em parte a eleição de um nostálgico dos 21 anos de chumbo que o Brasil viveu.  Como na vida psíquica do sujeito, na vida social o que ficou recalcado sem ser devidamente retrabalhado retorna inexoravelmente, numa explosão de devastação e sofrimento.

O trabalho de memória é pré-condição da reconstrução. Esquecer ou forçar o esquecimento é preparar a volta do que foi recalcado.

Eufemismos e distorções de quem reescreve a História

Acostumado a chamar o golpe de 1964 de “movimento”, o ministro da Suprema Corte do Brasil, Dias Toffoli criticou a Argentina por julgar e punir os carrascos da ditadura militar. Inacreditável, vindo de um homem que, presume-se, deve defender a punição de crimes contra a humanidade.

Os argentinos já condenaram 1.088 responsáveis por crimes contra a humanidade. As declarações do magistrado revelam desconhecimento sobre a História e o papel da justiça de transição.

Toffoli, aquele que nomeou dois generais como assessores, se faz porta-voz dos militares que cometeram crimes durante o governo do capitão-fantoche e prega, de maneira velada, a impunidade para os cúmplices do futuro ex-presidente do Brasil. Para isso, precisa criticar o magnífico trabalho feito pela justiça argentina.

Qualquer tentativa de perdão a Bolsonaro é apostar no fracasso da democracia, na falência das instituições e na frustração das expectativas de que o país consiga se reerguer, escreveu o jornalista Bernardo de Mello Franco.

Não preciso listar os crimes de Bolsonaro. Cabe à Justiça investigar.

Mas Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional da USP, citou alguns : “Abuso de poder político, econômico e religioso; orçamento secreto, auxílios eleitoreiros não revogados por apatia do STF; coação pública (por lideranças locais, como no escândalo de Coronel Sapucaia, revelado por Caco Barcellos) e assédio privado (de empresários sobre empregados, por exemplo), que atualizaram o voto do cabresto; a insurreição da Polícia Rodoviária Federal para atrapalhar votos do nordeste”.

Conrado Hübner Mendes resume :

A impunidade de Bolsonaro não só permitirá que ele se reeleja mais adiante, como fará brotar clones tão ou mais perigosos. Para desbolsonarizar o futuro é indispensável reparar o passado e não subestimar a ameaça do presente.

Para concluir, evoco o grande poeta chileno Pablo Neruda:

Por estes mortos, nossos mortos, peço castigo. Para os que salpicaram a pátria de sangue, peço castigo. Para o verdugo que ordenou esta morte, peço castigo. Para o traidor que ascendeu sobre o crime, peço castigo. Para aquele que deu a ordem de agonia, peço castigo. Para os que defenderam este crime, peço castigo. Não quero que me dêem a mão empapada de nosso sangue. Peço castigo. Não vos quero como embaixadores, tampouco em casa tranquilos. Quero ver-vos aqui julgados, nesta praça, neste lugar. Quero castigo.

(De “Os Inimigos”, no livro ‘Canto Geral’ (1950), de Pablo Neruda – Tradução de Paulo Mendes Campos (1979).

*Jornalista internacional, moradora de Paris. Autora de livros como A Tortura Como Arma de Guerra (Civilização Brasileira, 2016).