terça-feira, 31 de agosto de 2021

Os donos da bola

por Niko Bolontrin
No Brasil, o melhor exemplo do sequestro do futebol pelo mercado é o Maracanã. Depois da reforma o estádio afastou o povão. E o Flamengo, por exemplo, mesmo antes da pandemia, mandou vários dos seus jogos em outras cidades, em Brasilia de preferência, longe da torcida carioca, cuja maioria não pode mesmo pagar os preços do Maracanã. O mesmo vale para as várias "arenas" espalhadas pelo país. E a TV? Em comparação com anos anteriores, cada vez menos jogos são transmitidos pelas emissoras abertas. Os clubes optam pelo pay-per-view ou pelos canais pagos que não estão ao alcance da maioria da população. Em breve ganharão mais vol ume as transmissões por sites pagos, You Tube e Facebook. Tanto que no novo mercado do futebol os estádios limitaram o público. De novo, o Maracanã é um exemplo, o outrora gigante pode receber apenas 60 a  70 mil pessoas. O jogo recorde do velho estádio foi um Brasil x Paraguai, em 1969, com uma plateia de mais de 200 mil torcedores. Os personagens populares folclóricos que animavam a geral também são elementos do passado. A plateia agora é gourmet, criada nos playgrounds da geração condomínio. E, como se vê na faixa acima, o fenômeno é mundial. Apesar de ser um mercado poderoso e ter uma população com melhor poder aquisitivo, também há desigualdade na Europa. Nem todos das periferias podem bancar o custo de ver os melhores e mais caros jogadores do mundo.

sábado, 28 de agosto de 2021

Em imagens: a insustentável crueza do ser...

 

A foto de Victor J. Blue, do Instagram do fotojornalista, mostra a agonia de um jovem afegão ferido em atentado no aeroporto de Cabul. Foi publicada ontem nos principais jornais do mundo

A mesma foto, invertida, remete ao quadro de...

Jacques-Louis David que retrata o revolucionário Marat assassinado na banheira. 


E, finalmente, a recriação da obra de David por Vik Muniz que exibe o catador de lixo Sebastião.


por José Esmeraldo Gonçalves 

A primeira foto na sequência acima é do fotógrafo novaiorquino Victor J. Blue. Foi feita em Cabul logo após um homem-bomba do Isis-K detonar explosivos em um dos acessos ao aeroporto da capital do Afeganistão. 

Dezenas de pessoas foram despedaçadas no local. 

Naquele momento, quando o perímetro da pista era o inferno na terra, Victor J. Blue registrou o socorro a um dos feridos. Em meio ao caos, mas acostumado a cobrir guerras e crises humanitárias, o fotógrafo enquadrou com perfeição a tragédia resumida em um frame.

A imagem é dramática e, curiosamente, remete a outros dramas em outros tempos e cenários. Bastou inverter a foto de Cabul (na segunda imagem) para a referência visual tornar-se ainda mais clara. 

A terceira imagem é da obra célebre "A morte de Marat" de Jacques-Louis David ( França, 1748-1825). 

Finalmente, fechando a sequência, a recriação do quadro de David feita pelo artista plástico Vik Muniz, intitulada "Marat (Sebastião)", do documentário "Lixo Extraordinário" sobre o drama dos catadores. 

A insensatez dos homems é o fio que une as cenas. 

(O Instagram de Victor J. Blue reúne mais fotos de Cabul. Você pode vê-las AQUI )

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

HÁ 60 ANOS “Fi-lo porque qui-lo!” Seria cômico, não fosse trágico... • Por Roberto Muggiati

A posse: 31 de janeiro de 1961.


A renúncia:  25 de agosto de 1961


No "bilhetinho" ao Congresso as "forças terríveis" como justificativa para cair fora

Na tarde de 25 de agosto de 1961, depois de uma cerimônia do Dia do Soldado em Brasília, Jânio Quadros renunciava sumariamente à Presidência da República.  Foram 206 dias de um governo esquizoide, oscilando entre medidas progressistas e retrógradas. A frase pedante do professor metido a colocações pronominais insólitas – e muitas vezes incorretas, o certo seria “Fi-lo porque o quis” – explicando as razões que o levaram a um gesto tão extremo, dava toda a dimensão da leviandade com que o Presidente tratou do cargo que lhe foi conferido por 5,6 milhões de votos, 48% do eleitorado. O palco já vinha sendo armado para uma ditadura militar no Brasil desde o suicídio de Getúlio Vargas em 1954. Jânio da Silva Quadros deu – com galhardia inaudita – o pontapé inicial para o golpe de 64.

Até o figurino era ridículo. O povão apelidou de pijânio a vestimenta que Jânio copiou de Nehru 

O Governo Jânio Quadros foi uma sucessão de episódios midiáticos instantaneamente incorporados ao folclore político. Proibiu o biquíni nos desfiles de Miss, a lança-perfume, as rinhas de galo e as corridas de cavalo em dias de semana. Instituiu a prática dos bilhetinhos – emitiu 1534 – e, inspirado na túnica do Premier indiano Jawaharlal Nehru, quis obrigar os servidores públicos a vestirem o “safari” (que o humor popular prontamente batizou de “pijânio”) e alpercatas. Chocou os círculos reacionários ao reatar relações com a União Soviética e a China, nomeou o primeiro embaixador negro (para Gana) e se recusou a apoiar a iniciativa dos Estados Unidos de expulsar Cuba da OEA. Num de seus últimos atos, em 19 de agosto, condecorou Che Guevara com a Grã Cruz da Ordem do Cruzeiro do Sul, nossa comenda máxima. Ao mesmo tempo, curvou-se às exigências do FMI, delegando a Roberto Campos a tarefa de fazer o jogo dos banqueiros internacionais. Darcy Ribeiro, que fez parte do seu governo, escreveu: “Ninguém sabe, até hoje, por que Jânio renunciou. Nem ele.” No bilhete da renúncia se dizia pressionado por “forças terríveis”, que o Repórter Esso transformou em “forças ocultas”.

Em abril de 1961, Erno Schneider fez essa foto para o Jornal do Brasil. Imagem tão simbólica que virou história. Quatro meses antes de renunciar Jânio já estava torto e o Brasil, pra variar, de pé trocado e sujeito aos coturnos conspiratórios das Forças Armadas
 

Murilo Melo Filho – que começou a cobrir política para a Manchete  desde o início da construção de Brasília – contava aos colegas que Jânio quis imitar uma artimanha de Fidel Castro, mas se deu mal: o Congresso aceitou imediatamente sua renúncia. O gesto de Jânio colocou o país no caos, pois os militares se opunham à posse do vice-presidente Jango Goulart, que se achava em visita oficial à China de Mao. Só a resistência de Leonel Brizola, casado com a irmã de Jango, através da sua Campanha da Legalidade – e a instauração de um regime parlamentarista postiço para moderar o poder de Goulart – permitiram que ele assumisse a presidência, que só iria durar turbulentos dois anos e meio.

O grande diferencial em toda essa história foi Cuba, que em 1º de janeiro de 1959 se tornou um país comunista radical a apenas 200 km dos Estados Unidos. Fidel virou o bicho-papão da classe média conservadora e dos militares e empresários de direita brasileiros e ensejou também a interferência crescente dos Estados Unidos (através dos canais oficiais e da CIA) em nossa política interna.

A renúncia de Jânio no Dia do Soldado, há 60 anos, fez com que vivêssemos 21 anos em que todo dia era Dia do Soldado – de preferência, do General. 

sábado, 21 de agosto de 2021

Opinião pra vender, quem quer comprar? Partiu o trem do cachê para os comunicadores ..

 

Reprodução Folha de São Paulo -21-8-2021. Clique na imagem para ampliar.

A Folha de São Paulo publica hoje matéria sobre o feirão de opiniões organizado pelo governo federal que utiliza apresentadores bolsonaristas. O Planalto pagou cachês gordos para a turma falar bem, entre outras coisas, dos "cuidados precoces"  contra a pandemia. 
Se você pensou que seu apresentador ou apresentadora preferida estava apenas de conversinha despretensiosa, enganou-se. Cada vez que eles falavam da "agenda positiva" do governo, Bolsonaro deixava cair uma grana no bolso das figuras. Marcelo Carvalho, um dos donos da RedeTV embolsou R$122 mil. Luciana Gimenez , Sikera Juior, Luiz Ernesto Lacombe e Cesar Filho estão na lista entregue à CPI da Covid, Da Record receberam cachês Marcos Mion (antes de ira para a Globo), Ana Hickman, Ticiane Pinheiro, Luiz Bacci, além de influenciadores das redes sociais. Ana Hickman é citada por ter descoladp mais de  R$400 mil de verbas públicas. 

O negócio era uma espécie de feirão de mensagens do governo.  

Pandemia, aqui me tens de regresso... • Por Roberto Muggiati

 

“Quero beber, cantar asneiras” – quem melhor antecipou o espírito da pandemia foi Manuel Bandeira. Guimarães Rosa, talvez só um pouquinho: “Viver é muito perigoso”. Sério demais pro meu gosto. 

A pandemia fez do comum dos mortais aquilo que nem milhares de páginas de Sartre e Heidegger conseguiram. Viver o hoje. Abraçar o caos. Ela o obrigou a adotar o bordão de Chiquita-bacana-lá-da-Martinica, que, existencialista com toda a razão, “só faz o que manda o seu coração”.

Há quem não goste, há quem impaciente. Pô, quando é que vai acabar esse desgracido baile de máscaras? 

O “novo normal” já passou sem sequer chegar. Ficamos pro que der e vier, sem eira nem beira, seguindo nosso caminho aos trancos e barrancos. Antenados no alerta dos baianos: “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”.

O ansiado fim da pandemia colocou a vida no palco do Teatro do Absurdo: somos todos vagabundos anônimos à beira da estrada esperando um Godot que nunca vai chegar. 

Da minha parte, não tenho queixas. Desde que a Manchete faliu há vinte e um anos eu já vivia confinado, antes disso até merecera do Alberto o apelido de Eremita. Continuei escrevendo matérias sobre deus-e-todo-o-mundo (já leram A influência cultural do chapéu coco?), traduzindo livros (entre os últimos as "bacantes" Patricia Highsmith e Amy Winehouse. Apesar da Covid-19, não renunciei minha à saidinha diária. Escrevi até um “haicai safado”:

Pandemia?

Mamma Mia!

saio todo dia...

Além dos haicais, continuei cultivando outro dos meus cacoetes, rabiscar caras & bocas em discos de isopor de minipizzas. 

À guisa de despedida, com um viés levemente narcísico (sim, venho me reconciliando também com a canastrice dos clichês), ofereço a tapa minha carantonha oitentona, ostentando com orgulho os rascunhos de autorretrato que chamo de meus emuggis...


segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Hoje é dia de São Roque, bebê • Por Roberto Muggiati


Meu pai nasceu em 16 de agosto de 1906, por isso foi batizado como Gavino Roque Dalledonne Muggiati. Na Itália, Rocco, é um dos santos mais importantes, Luchino Visconti o homenageou com o filme Rocco e seus irmãos. Roque de Montpellier é um santo da Igreja Católica Romana, protetor contra a peste e padroeiro dos inválidos, cirurgiões, e dos cães. É também considerado por algumas comunidades católicas como protetor do gado contra doenças contagiosas. Sua popularidade maior, devido à intercessão contra a peste, fez dele padroeiro de muitas cidades por todo o mundo e muitos já o adotaram como padroeiro na luta contra a Covid-19.

Diz a lenda que Roque teria nascido com um sinal no peito em forma de cruz avermelhada que o predestinava à santidade. Herdeiro de importante família de Montpellier, seria o herdeiro de considerável fortuna. Órfão de pai e mãe muito jovem, foi criado por um tio. Teria estudado medicina na sua cidade natal, não concluindo os estudos. Desde muito cedo optou uma vida ascética, praticando a caridade. Ao chegar à maioridade, distribuiu todos os seus bens aos pobres. Deixando uma pequena parte confiada ao tio, partiu em peregrinação a Roma. Ao chegar às proximidades de Viterbo, encontrou-a assediada pela grande epidemia da Peste Negra. Ofereceu-se prontamente como voluntário na ajuda aos doentes, fazendo as primeiras curas milagrosas, usando apenas um bisturi e o sinal da cruz. Onde surgia um foco de peste, lá estava Roque ajudando e curando, revelando-se cada vez mais um místico e taumaturgo. Depois de visitar Roma, onde rezava diariamente sobre o túmulo de São Pedro e onde também curou vítimas da peste, voltou para Montpellier. No meio da viagem, foi ele próprio tomado pela doença. Para não contagiar ninguém, isolou-se na floresta, onde teria morrido de fome se um cão não lhe trouxesse diariamente um pão e se da terra não tivesse nascido uma fonte de água com a qual matava a sede. O cão pertenceria a um homem rico que, percebendo miraculosamente a presença de Roque, o ajudou.

Curado milagrosamente, ao voltar a Montpellier foi acusado de espionagem e encarcerado por cinco anos, até morrer, abandonado e esquecido por todos. Só então foi reconhecido, pela cruz que tinha marcada no peito.


São Roque é geralmente representado em trajes de peregrino, por vezes com a vieira típica dos peregrinos de Santiago de Compostela, e com um longo bordão do qual pende uma cabaça. Um das pernas é geralmente desnudada, mostrando no joelho uma ferida (o bubão da peste). Por vezes é acompanhado por um cão, que aparece ao seu lado trazendo-lhe na boca um pão. Os peregrinos do Caminho de São Tiago de Compostela chamam a atenção para a carta “O Louco”, do Tarô de Marselha, que lembra muito São Roque, com seu ar de viajante, o bordão e um cachorro que lhe sobe pela perna.

No Brasil, a cidade de São Roque (“Terra do Vinho”), na região de Sorocaba, festeja o padroeiro do primeiro domingo de agosto até o dia 16. de agosto. Fundada na segunda metade do século XVII pelo bandeirante Pedro Vaz de Barros, a aldeia surgiu de uma enorme fazenda e uma capela que ele e dedicou a São Roque. Essa área foi comprada em 1936 pelo escritor Mário de Andrade, que queria erguer ali um retiro para artistas e intelectuais. Por vontade expressa de Mário, morto em 1945, o local foi doado à municipalidade e é hoje um centro cultural.

As Festas de Agosto em São Roque abrem com a entrada dos carros de lenha e vão até o dia 16 de agosto com uma monumental procissão dedicada ao Santo. Os shows incluem todo tipo de música, até pagode: é bom lembrar que, nas religiões afro-brasileiras, São Roque (com São Lázaro) é sincretizado como o orixá Omolu/Obaluaiê. 

Este ano, a Paróquia de São Roque “cancelou os shows, a entrada dos carros de lenhas, as alvoradas e procissões da Festa devido aos números da pandemia que ainda persiste na cidade.  As celebrações litúrgicas e missas, porém, vão acontecer com a presença de fiéis conforme os protocolos de saúde recomendados pela e pelo Ministério da Saúde do Brasil.”

Faz sentido. O Santo que protege contra as pandemias está sempre atento e forte, como vem fazendo ao longo dos últimos oito séculos.

Depois do Talibã, o figurino da opressão

* Comentário de Roberto Muggiati para a nota
 Depois do Talibã


“Ah, esse Talibã de volta! Por coincidência, vi há poucos dias um filme que tem tudo a ver,
Chasing Freedom/Em busca da liberdade, feito para a TV em 2004. A jovem afgã Meena (Layla Alizada), condenada à morte pelo Talibã por dar aulas a outras jovens (no Afeganistão a mulher é proibida de estudar), consegue chegar aos Estados Unidos sem nenhum documento, pedindo asilo. Seu único contato, uma tia residente nos EUA, morreu há algum tempo e ela fica em custódia sob as autoridades da imigração até conseguir provar quem é. Uma advogada de grandes causas financeiras, Lilly Brock (Juliette Lewis), é forçada por seu escritório, num programa demagógico de voluntariado, a prestar aconselhamento gratuito à refugiada. Caso não consiga asilo, Meena será deportada para o Afeganistão e sumariamente fuzilada pelo Talibã com um tiro na nuca. Juliette Lewis é aquela ninfeta assediada pelo vilão Robert de Niro no filme de Scorseses Cabo do Medo (1991), que lhe valeu a indicação ao Oscar de melhor atriz coadjuvante. Embora feito há catorze anos, Em busca da liberdade, além de instigante, é atualíssimo.

domingo, 15 de agosto de 2021

Feliz 88, meu caro Roman! • Por Roberto Muggiati

Roberto Muggiati entrega Polanski, em 1988, foto do cineasta quando fez sua primeira visita à Manchete,
 em 1974. Ao fundo o jornalista Arnaldo Bloch e Anna Bentes Bloch. Foto: Acervo Pessoal

Roman Polanski faz 88 anos neste 18 do 8. 88 é o símbolo do infinito duas vezes, de pé lado a lado. Polanski é a celebridade do mundo mais perseguida por maldições, que caíram à sua volta ao longo dos anos, mas nunca o atingiram. 

Nasceu em Paris em 1933, filho único de poloneses, o pai judeu, a mãe católica de ascendência russa. Num gesto desastrado do pai,  a família voltou em 1936 para a Polônia, um dos principais alvos do antissemitismo de Hitler. A mãe morreria em Auschwitz; o pai, internado num campo de extermínio austríaco, seria um dos raros judeus poloneses a escapar do Holocausto. E o menino Roman sobreviveria em fuga na zona rural quase na mendicância, escondendo-se em fazendas de famílias católicas. (O pianista, filme sobre um judeu de Varsóvia que consegue o milagre de sobreviver aos seis anos de guerra, é fortemente autobiográfico.) 

Quando a guerra terminou Roman tinha doze anos e acabaria reencontrando o pai: da opressão nazista, passaram a viver os terrores do estalinismo.

O talentoso Polanski abriu as portas do mercado internacional com Faca nágua em 1962. Em agosto de 1967 começou a rodar O bebê de Rosemary, em que uma jovem inocente é escolhida por um grupo satânico para parir o filho do demônio. Ela mora em Nova York no sinistro edifício Dakota, onde John Lennon seria assassinado treze anos depois. A atriz principal, Mia Farrow, ameaçou abandonar as filmagens quando recebeu no set, diante de toda a equipe, das mãos de um oficial de justiça, um inesperado pedido de divórcio de Frank Sinatra, trinta anos mais velho, com quem foi casada dois anos.

No dia 9 de agosto de 1969, em Los Angeles, o bando de Charles Manson chacinou a mulher de Polanski, Sharon Tate – grávida de oito meses e meio – mais uma amiga e dois amigos que passavam a noite de sábado em sua casa, e também o jovem caseiro. As paredes da casa foram pixadas de palavrões escritos com o sangue das vítimas. Foi um trágico equívoco: os Polanski tinham alugado a casa do filho de Doris Day, Terry Melcher, produtor musical que se recusou a gravar Manson, cantor e guitarrista medíocre com ambições a superstar Como vingança, Manson mandou os fanáticos da sua “Família” matarem todo mundo na casa, acreditando que Melcher ainda morava nela. Polanski deveria estar lá naquela noite, mas à última hora foi retido em Nova York para assinar um documento na segunda-feira.

Encontrei Polanski pela primeira vez pouco antes, no Rio, em março de 1969, no 2º Festival Internacional de Cinema, onde ele concorria com O bebê de Rosemary.  Numa brincadeira de mau gosto (Roman é um eterno moleque, adoro esse lado dele...), tentou jogar Jane Birkin na piscina do Copacabana Palace, a moça passou raspando por mim como um foguete e quase me arrastou consigo para as águas. (Jane estrelava Wonderwall, filme com a trilha sonora de George Harrison). 

Em 1974, voltei a encontrar Polanski, desta vez com Jack Nicholson, na visita que fizeram à Manchete promovendo o filme Chinatown. A grande encrenca da sua vida o esperava em 1977 na casa de Jack Nicholson em Los Angeles. Escalado pela revista Vogue para fotografar uma ninfeta de treze anos numa piscina, Polanski não perdeu a viagem e transou com a menina, levemente dopada por um Boa Tarde, Cinderela. Acusado de abuso sexual, ficou preso 74 dias e foi solto após pagar fiança. Ao saber em 1978 que seria preso definitivamente, Polanski alugou um jatinho e escapou pelo México. Há 43 anos, a justiça norte-americana o caça implacavelmente, embora a “ninfeta”, hoje uma rechonchuda senhora de 58 anos, tenha perdoado Polanski. Em 2009, foi preso na Suíça – onde tem uma casa em Gstaad – e quase extraditado para os EUA.

Nosso terceiro encontro foi em 88, quando ele visitou novamente a Manchete, com a atriz que se tornaria sua mulher até hoje e mãe de seus dois filhos, Emmanuelle Seigner. Adolpho Bloch o convidou para um chá das cinco en petit comité no restaurante do Russell, os dois se conheciam desde os anos 60, quando a sucursal da Manchete em Paris ficava no prédio de Polanski na Avenue Montaigne.  Polanski se atrasou porque ficou mais de meia hora na calçada numa intensa DR com a mulher. Chegou falando em russo: “Pô, Adolpho, chá? Você me convida para um chá? Eu queria mesmo é uma boa vodca polonesa!” Em segundos surgiu uma garrafa  glacialmente gelada de Wiborowa, a marca favorita de um cracoviano célebre, Karol Wojtyla, o Papa João Paulo II. E o ucraniano e o polonês parisiense se enredaram num longo papo em russo, deixando o resto do pessoal por fora. 

Aproveitei a ocasião para entregar a Polanski uma cópia da foto dele com Jack Nicholson feita na visita de 1974. Pena que a Manchete tenha fechado as portas em agosto de 2000. Não fosse isso – estou seguro – teríamos recebido outras visitas do nosso querido amigo Roman.

PS • Especulando se o fato de Polanski ter filmado O bebê de Rosemary no edifício Dakota teria algo a ver com o assassinato de John Lennon, lembrei que, na verdade, foi Lennon quem, involuntariamente, teve um importante papel no assassinato de Sharon Tate em agosto de 1969.


No dia seguinte ao massacre, irritado com o
modus operandi dos membros da “Família”, Charles Manson os liderou noutra incursão em Los Angeles para ensinar a maneira correta de agir. Invadiu uma casa escolhida aleatoriamente e, com seus asseclas, assassinou o casal LaBianca. O marido, Leno, era dono de um supermercado; a mulher, morta com 41 punhaladas, chamava-se... Rosemary. Quando desencadeou a operação, Manson decretou que era chegada a hora de Helter Skelter – nome de uma das faixas do Álbum branco dos Beatles. A música, assinada Lennon-McCartney – era deliberadamente ruidosa e caótica, feita em resposta a uma provocação de The Who. Fascinado por ela, Manson a adotou como as trombetas do Apocalipse, anunciando uma série crimes e catástrofes que provocariam uma guerra racial nos Estados Unidos, da qual ele sairia como líder natural. A tal ponto que HELTER SKELTER figurou entre as palavras pintadas com sangue no local dos crimes. O promotor do Caso Tate-LaBianca, Vincent Bugliosi, publicou um livro sobre o processo intitulado Helter Skelter, que vendeu sete milhões de exemplares, virou filme, série de TV e até mangá. 

Ouça o Helter Skelter AQUI

https://www.youtube.com/watch?v=0NpoedlDxuU


Atualização em 19-8-2021  - 

Cabala nazista

De Edimburgo, meu filho me ensina que 88, nos países de língua germânica durante a 2ª Guerra significava “Heil, Hitler!” Sendo H a oitava letra do alfabeto, 88=HH. Polanski, assim, involuntariamente, homenageia com sua nova idade o Führer. Eu também, com meu nome. Nascido em 1937, meu pai queria que eu me chamasse Benito. Minha mãe não quis, de jeito nenhum. Então ele optou por Roberto. Um nome simples só na aparência: Mussolini o indicava para os apoiadores do nazifascismo porque suas três sílabas correspondiam às primeiras sílabas das capitais do Eixo: ROma + BERlim + TOquio. Meu pai – como todo mundo nos estados do Sul e até o próprio Presidente Getúlio Vargas – era simpatizante do Eixo. A propaganda foi uma arma terrível a mais que os Aliados tiveram de enfrentar. Nas manifestações diante do Palácio do Catete, no final dos anos 1930, os apoiadores do Duce e do Führer hospedavam-se no Florida Hotel. As letras do seu nome formavam o anagrama de Adolfo Hitler. Mesmo com essa sopa de letras infernal, o Eixo Kaput!, em boa gíriacarioca, sifu! (Roberto Muggiati)

Na capa da IstoÉ: tropa de ocupação... por enquanto só de passagem?

sábado, 14 de agosto de 2021

Antes do asteroide cair...

Imagem/Simulação Nasa

por O. V. Pochê

A Nasa informou ontem aos navegantes da Terra: o asteroide Bennu poderá colidir com o nosso planeta no dia 24 de setembro de 2.135. Caso aconteça, a vida nesse nosso CEP espacial será extinta. Nem os cientistas estão chocados com a notícia. É desimportante. Lamento dizer que daqui a 134 anos haverá pouco ou nada a extinguir na Terra. Palavra da ciência. 

Siga esse pequeno exercício futurista ambiental. 

O Brasil que hoje basicamente produz commodities predatórias (mineração, exploração madeireira, agronegócio, petróleo, aço,  etc), de enormes impactos ambientais, já sofre os efeitos da devastação e degradação (está aí a crise do clima com impacto na geração de energia) estará entre os países onde a tragédia ambiental se agravará bem antes, provavelmente o segundo no ranking após a África.  

- Os surtos epidêmicos que começaram com a aceleração do desmatamento serão frequentes e levarão até lá milhões de vida a cada ano. 

- A desertificação da Amazônia, do Nordeste e do Centro Oeste terá transformado parte do Brasil em um deserto. Processos já em andamento no Cerrado, na Bahia, Pernambuco e Ceará. Sem camelos, que estarão extintos. Sem cachaça, que a cana de açúcar só poderá ser encontrada em museus biológicos.

- Por motivos óbvios, a energia solar será predominante. Mas antes disso, com usinas hidrelétricas inviabilizadas por falta d'água, os governos investirão em usinas nucleares. 

- A capital Brasília terá sido abandonada há muitos anos por excesso de ar seco e risco de desidratação. Com o Brasil governado por milícias desde os anos 40 do século anterior, a capital mudou-se para um condomínio da Barra da Tijuca.

- Os políticos morarão em torres de 2km de altura construídas com verba de 2 trilhões em emendas parlamentares. O objetivo é evitar contato com o povaréu revoltado. Só se reunirão por meio de holografia. Eleições acontecerão de 15 em 15 anos. As urnas serão biotecnológicas. colherão o DNA do eleitor, mas a exigência secular do voto imprenso continua vigente.

- O Brasil continuará governado pela Dinastia Zero. O presidente da vez é o Capitão 036.

- A fome devasta a população apesar do programa do governo Auxílio Brasil, que distribui latas de Leite Moça e bolacha Maria em compra intermediada pela Covachin Br, a maior empresa brasileira, uma gigante centenária, fornecedora exclusiva do governo e famosa por ganhar todas as concorrências lançadas desde o distante 2020.

- Viveremos em uma teocracia neopentecostal. A guarda fundamentalista percorrerá as ruas punindo que não participa das três edições da "fogueira santa" diárias, quem não porta sua mochila com "óleo de Judá", "farofa de Nazaré" e o "cheaseburguer sagrado de Elias". .

- O novo Estatuto do Armamento permitirá a cada pessoa portar 15 fuzis de raio laser, 20 granadas de ulrtrassom, um aeromóvel de combate e andar com guarda pessoal formada por generais da reserva do histórico batalhão que leva o nome do heró nacional Augusto Heleno. .

- O asteroide atingirá o Brasil no dia previsto pela Nasa e exatamente na data em que desde décadas se comemora o Dia da Motociata Patriótica Voadora, a maior comemoração anual da Milícia Federativa do Brasil. 

- A boa notícia é que em  2.135 o Brasil não será mais considerado República de Bananas. A designação não faz mais sentido. A banana está extinta desde o ano 2085.

- Bom fim de semana.

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Livro "Minha vida na Rede Manchete e algumas histórias da TV e do Rádio", de Luiz Santoro, será lançado nesta sexta-feira, 13/08, no Garota da Gávea

Mais um livro que sintoniza a história da Rede Manchete. Este, com enfoque especial, sob a ótica de Luiz Santoro que, entre outras funções, foi apresentador do Jornal da Manchete 2ª Edição. 

O lançamento de "Minha vida na Rede Manchete e algumas histórias da TV e do Rádio" acontecerá nesta sexta-feira, 13/08, a partir das 19h30, no restaurante Garota da Gávea, Praça Santos Dumont, Rio de Janeiro (RJ).  Como pesquisador, Santoro também mantém viva a memória da Rede Manchete no site https://manchete.org/historia/ e em postagens do You Tube

terça-feira, 10 de agosto de 2021

O Bananão vivendo dia de glória no mundo

A chanchada do Planalto: essa parada é uma comédia. Mas não dá para rir

O exército brancaleone buscava um feudo, uma "boquinha!, digamos. Tudo
a ver...
O fumacê do blindado. Internautas sugerem que a Marinha se inscreva no quadro Lata Velha do programa de Luciano Huck, que reforma carros caidinhos. Foto: Reprodução Twitter

O ministério da Defesa é um dos mais favorecidos em verbas. Não pode reclamar. Mas como gasta mais de 70% em salários e pensões, sobra pouco para equipamentos. O desfile golpista de hoje exibiu carros de combate que mais pareciam movidos a lenha. Isso não quer dizer que a cena não seja assustadora e deplorável em um país que reconstruiu a duras penas a democracia. O evento de hoje lembrou O Incrível Exército Brancaleone, o clássico de Mario Monicelli que acompanha a jornada de um exército em trapos em busca de um feudo.
A cúpula militar na rampa liderada por Bolsonaro também remetia a uma triste caricatura de uma parada em uma certa Reichsparteitagsgelände. É uma comédia, mas comédia dos erros que ameaça a liberdade, a democracia e o  Brasil. 


O Brasil no chão. Parabéns aos envolvidos

Fotografia: a paz do futebol em tempo de guerra...

 


Reprodução de foto de Omar Haj Kadour/AFP publicada na Folha de São Paulo em 10/8/2021

por José Esmeraldo Gonçalves

Essa foto além de expressiva é comovente. Foi publicada hoje na Folha. O autor é o fotojornalista Omar Haj Kadour, da AFP. Une o drama dos refugiados ao irresistível apelo do futebol. 

Não por acaso o futebol é o esporte mais popular e democrático do mundo. É lazer, é paixão. Para ser praticado não são necessários capacetes, raquetes, tacos nem luvas. Às vezes nem Nikes ou Adidas. Às vezes nem traves, duas pedras e um bola bastam. O futebol vai de uma Champions ao time da esquina. Dos estádios suntuosos ao terreno baldio. Da paz à guerra. Ao lado de um acampamento em Fuaa, na Síria, garotos demarcaram um campo (o que importam as linhas tortas?) e organizaram um campeonato. Kadour usou um drone para registrar a cena. 


Reprodução de foto de Omar Haj Kadour/AFP publicada no jornal El Comercio


Para ele, que é um correspondente de guerra, a copa dos refugiados foi uma pausa entre bombas e atentados.  Pausa também ocorre quando Kadour aponta sua câmera para o céu e faz um série de fotos da Via Lactea e capta a "una guerra bajo las estrellas" como definiu o jornal espanhol El Comercio, que publicou recentemente uma dessas imagens feitas em Idib. 

Você pode ver mais fotos de Omar Haj Kadour no Instagram, AQUI

A República do Banana

Reprodução Twitter

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Automorte: a megapandemia • Por Roberto Muggiati


O que sobrou do carro Facel Vega de Albert Camus.. Foto de Jean-Jacques Levy. Reprodução Eurochannel

Li há pouco no Estadão uma resenha de um livro póstumo de W.G. Sebald em que Paulo Nogueira diz: “[Sebald] morreu em 2001, aos 57 anos, num acidente de carro. Por que tantos escritores são ceifados por veículos motorizados? Barbeiros? Azarados? Camicases? T.E. Lawrence, tietado por Bernard Shaw e Winston Churchill (e filmado por David Lean), se esborrachou em sua moto aos 46 anos, em 1935. Nathanael West, aos 37 anos, esmigalhou a si e a sua esposa numas férias no México, pilotando uma perua Ford. Em 1949, Margaret Mitchell, ainda curtindo as vendas astronômicas do seu único romance (... E o vento levou), foi atropelada por um taxista bêbado quando ia ao cinema com o marido. 

“De todas as maneiras de morrer, a morte num acidente de automóvel é a mais absurda.” ALBERT CAMUS

Camus. Foto Reprodução
Em 4 de janeiro de 1960, Albert Camus, Nobel de literatura, aceitou a carona de seu amigo e editor Michel Gallimard, desistindo do trem Provença-Paris. O carro bateu numa árvore e Camus morreu na hora, com 46 primaveras. Ele escrevera um dia que ‘de todas as maneiras de morrer, a morte num acidente de automóvel é a mais absurda.’ Quanto a Sebald, sofreu um ataque cardíaco ao volante e trombou com um caminhão – a filha dele sobreviveu.”

A lista de Nogueira me levou imediatamente para a lista que venho elaborando nos últimos tempos sobre “cadáveres excelentes” em desastres de automóvel. Além dos escritores citados por Nogueira, um verdadeiro Quem-é-quem de notáveis do século 20:

Em sua arrojada coreografia final, em 1927, aos 50 anos, a dançarina Isadora Duncan, ao ser lançada para fora de um carro esporte aberto quando sua longa echarpe se prendeu à roda e quebrou o seu pescoço. 

  O cineasta alemão F.W. Murnau, às vésperas de lançar seu filme Tabu: em 1931, aos 42 anos, numa estrada da Califórnia em uma Rolls-Royce alugada dirigida por um criado filipino de 14 anos; James Dean em seu carro de corrida, também na Califórnia, em 1955, aos 24 anos; em 1961, aos 25 anos, ainda na Califórnia – na estrada de Las Vegas para Los Angeles, Belinda Lee, a “Loren britânica”; Jayne Mansfield, decapitada, em 1967, aos 34 anos, numa estrada da Louisiana; Françoise Dorleac – irmã de Catherine Deneuve, também atriz – tentando não perder o voo no aeroporto de Nice, carbonizada no carro alugado cuja porta não conseguiu abrir, em 1967, aos 25 anos; a musa maior do cinema pornô, Linda Lovelace, em 2002, aos 53 anos, em Denver, Colorado, onde morava há dez anos. Linda já tinha sofrido um desastre de carro em 1970, que lhe causou hepatite em consequência de uma transfusão de sangue; e um transplante de fígado em 1987.

Em Paris, os playboys do século: o príncipe Ali Khan, ex-marido de Rita Hayworth, em 1960, aos 48 anos; e, em 1965, aos 56 anos, o diplomata dominicano Porfírio Rubirosa – entre suas conquistas amorosas figuram Rita Hayworth, Ava Gardner, Marilyn Monroe, Judy Garland, Kim Novak, a ex-Princesa Soraya, Evita Perón. Depois de passar a noite comemorando a vitória do seu time de polo na Copa da França, Rubirosa bateu com sua Ferrari numa árvore do Bois de Boulogne. Um dos maiores pintores do expressionismo abstrato, Jackson Pollock, alcoolizado, jogou seu carro contra uma árvore em 1956, aos 44 anos, numa inequívoca – e bem sucedida – tentativa de suicídio. A cantora de blues Bessie Smith, em 1937, aos 43 anos: teve o braço amputado depois de um acidente numa estrada do Sul dos EUA e sua morte, atribuída à demora no atendimento hospitalar por motivos racistas, inspirou uma peça de protesto de Edward Albee, A morte de Bessie Smith, em 1959. O trompetista de jazz Clifford Brown e o pianista Richie Powell, caíram de um viaduto na Pensilvânia , em 1956, num carro dirigido pela inexperiente mulher de Powell. Morreram todos. Clifford tinha 25 anos, Richie 24 e Ms. Powell 19. Em 1961, a sensação do contrabaixo no jazz, Scott LaFaro, do Bill Evans Trio, morreu num acidente em Flint, estado de Nova York, depois de acompanhar Stan Getz no Festival de Newport. Sua morte, aos 25 anos, deixou Bill Evans em estado de choque durante vários meses.

Chora Estácio, Salgueiro e Mangueira, todo Brasil emudeceu, chora o mundo inteiro, o Chico Viola morreu...SAMBA DE 1952, DE ANTÔNIO NÁSSARA E WILSON BATISTA

O enterro de Chico Viola. Reprodução Manchete

No Brasil, a música popular pagou um pesado tributo ao automóvel. Esta história cobre 45 anos e poderia se chamar De Chico Viola a Chico Science. Em 1952, no auge da fama, Francisco Alves dirigia sua Buick de São Paulo ao Rio na Via Dutra quando foi atingido por um caminhão e morreu carbonizado. A canção de Nássara e Wilson Batista cantada por Linda Batista o eternizou: “Chora Estácio, Salgueiro e Mangueira, todo Brasil emudeceu, chora o mundo inteiro, o Chico Viola morreu...” O Rei da Voz tinha 54 anos, 34 de carreira. 

Musa da bossa nova, a cantora Sylvia Telles escapou em 1964 com pequenas escoriações ao dormir no volante voltando de um show. Dois anos depois, quem dormiu ao volante foi seu namorado, Horacinho de Carvalho, na estrada de Maricá, e morreram os dois.  Sylvinha, 32 anos, viajaria no dia seguinte para gravar um álbum em Nova York. 

O carro Brasília que Maysa diriga. Foto Manchete

Maysa Matarazzo, musa da canção de fossa, vivia em depressão aguda, isolada na Região dos Lagos. Depois do casamento do filho no Rio em 1977, voltava para Maricá sozinha quando morreu num acidente na Ponte Rio-Niterói. Uma das últimas anotações no diário que mantinha desde a adolescência: “Hoje é novembro de 1976, sou viúva, tenho 40 anos de idade e sou uma mulher só. O que dirá o futuro?” 

Gonzaguinha nasceu condenado a viver à sombra do Gonzagão. Mas conseguiu abrir seu próprio caminho e tudo ia às mil maravilhas quando a morte o pegou na estrada para Foz do Iguaçu, onde pegaria um avião para um show em Florianópolis. Em 1991, aos 45 anos.

Em 1990, aos 19 anos, o filho de Gilberto Gil, Pedro, baterista promissor, morreu ao se chocar com uma árvore na Curva do Calombo, na Lagoa Rodrigo de Freitas; em 1998, morre aos 19 anos num desastre de carro no Aterro do Flamengo o filho de Tom Jobim, João Francisco Lontra Jobim.

Criador do mangue beat, Chico Science seguia em 1997 de Recife a Olinda quando foi fechado por outro carro e bateu num poste. Teria sobrevivido não fossem as falhas no cinto de segurança. A Fiat pagou dez milhões de reais à família, mas isso não trouxe Chico de volta. Tinha 30 anos.

Sertanejos vivem na estrada – e morrem também. Uma curva traiçoeira levou João Paulo. Sua canção favorita: Poeira da estrada.

Sertanejos vivem na estrada – e morrem também: João Paulo, parceiro de Daniel, em 1997 , aos 37 anos, na Rodovia dos Bandeirantes, SP. Seu carro capotou várias vezes e pegou fogo, o cantor ficou preso entre as ferragens. Sua música favorita era Poeira da estrada.  Cristiano Araújo, em 2015, aos 29 anos, em Goiânia: ele e a namorada, sem cinto de segurança no banco traseiro, foram projetados para fora do carro.

Integrante da dupla do funk Claudinho & Buchecha, Cláudio Rodrigues de Mattos, em 2002 aos 26 anos, ao volante de seu carro, bateu numa árvore voltando de um show em Seropédica, RJ. 

Às vésperas do Natal de 1974, a atriz Adriana Prieto, aos 24 anos, depois de bater com seu fusca numa viatura da PM na Avenida Nossa Senhora de Copacabana e atingir a vitrine de uma butique. Apesar da pouca idade, fez dezoito filmes em seis anos de carreira. 

Em 1998, o craque Edmundo chocou-se com outro carro na Lagoa Rodrigo de Freitas. Três pessoas morreram no acidente. Condenado por triplo homicídio culposo, obteve liberdade provisória e em 2020 a sentença prescreveu. Quase no mesmo local da Lagoa Rodrigo de Freitas, um dos craques mais promissores da nova geração, Dener, morreu aos 23 anos, asfixiado pelo cinto de segurança no banco do carona – o carro era dirigido por um amigo que dormiu ao volante. Também na Lagoa, a poucos metros, na antevéspera do Natal de 1987, morreu aos 44 anos o jornalista Paulo César de Araujo, num carro dirigido pela diretora de jornalismo da TV Globo Alice-Maria, que sofreu várias fraturas. PC, como era conhecido, tinha deixado recentemente a chefia de reportagem da revista Manchete para trabalhar na TV Globo.

Um dos luminares do glam rock, Marc Bolan, vocalista e guitarrista da banda T. Rex, em Londres, em 1977, aos 29 anos: um Mini dirigido pela namorada estourou o pneu e bateu numa árvore.

Um dos mais importantes filósofos da comunicação, Roland Barthes, em 1980, aos 64 anos, atropelado por um furgão de tinturaria em Paris.

Dono de um dos talk shows mais famosos da TV americana, compositor de oito mil canções, escritor e artista polivalente, Steve Allen morreu em 2000, aos 78 anos, em decorrência de um trauma nas costelas que  não parecia grave. Um “barbeiro” atingiu seu carro numa marcha a ré desastrada. Allen, espirituoso e cordial, disse ao sujeito: “Veja só o que as pessoas são capazes de fazer para conseguir um autógrafo meu!...” 

Ted Kennedy pôs fim à dinastia política de sua família num desastre mal explicado numa ponte de Massachusetts.

Ted Kennedy dirigia o carro em que Mary Jo Kopechne morreu. Reprodução

Mary Jo Kopechne, em 1969, aos 28 anos, em Chappaquiddick, Massachusetts. Depois de uma festa das garotas que fizeram campanha presidencial do senador Robert Kennedy, ela pegou uma carona no carro do senador Ted Kennedy, que caiu de uma tosca ponte de madeira num lago. Kennedy – que estaria de caso com Mary Jo – escapou e deixou o local sem prestar assistência à jovem, que morreu afogada. A autopsia revelou que ela estava grávida. O escândalo decretou o fim da dinastia política dos irmãos Kennedy. 

Alexander Dubček, líder da Primavera de Praga, em 1992, aos 70 anos, num desastre de estrada perto de Humpolec. Barack Obama Senior, político queniano e pai do futuro Presidente dos Estados Unidos, em 1982 aos 48 anos. O automóvel perseguiu implacavelmente Obama Sr: um primeiro acidente, em 1970, o deixou com uma perna prejudicada; no segundo acidente, teve as pernas amputadas e no terceiro morreu.

Eden Ahbez, judeu americano do Brooklyn, primeiro hippie e vegano, vivia ao relento debaixo do primeiro L do famoso letreiro HOLLYWOOD em Los Angeles, quando sua composição Nature Boy se tornou um hit na voz de Nat King Cole. Ahbez viveu saudável até os 86 anos, mas não escapou às sequelas de um desastre de carro em Los Angeles, em 1995.

O terceiro homem a caminhar pelo solo da Lua morreu num banal passeio de moto na Califórnia.

Uma morte incomum: o terceiro homem a andar sobre a Lua, Charles “Pete”  Conrad Jr, comandante da missão Apolo 12, morreu num passeio de motocicleta na Califórnia em 1999, aos 69 anos. A moto também participa ativamente desta carnificina. O roqueiro Duane Allman, da banda Allman Brothers, em Macon, Georgia, em 1971, aos 24 anos. Um ano depois, a três quadras do local do seu acidente, também numa moto, morre o baixista da banda, Berry Oakley, aos 24 anos. Foi sepultado ao lado de Duane, no cemitério de Macon. Escritor, compositor, cantor folk, ícone da contracultura, Richard Farina ia na garupa de uma moto que se acidentou em Carmel, California, em 1966. Tinha 29 anos. Outros roqueiros famosos também sofreram acidentes de moto: Bob Dylan, Billy Joel, Billy Idol, Ozzy Osbourne, Steven Tyler, Mark Knopfler. 

Um detalhe curioso: a moto em que morreu Lawrence da Arábia foi presente da mulher de George Bernard Shaw. Outro: o neurocirurgião que pesquisou a morte de Lawrence se tornaria o pioneiro do capacete de proteção.

E a bicicleta? Em 2014, no Central Park de Nova York, o roqueiro Bono, do U2, caiu ao tentar se desviar de outro ciclista. Fraturou a omoplata, o úmero, a órbita ocular e o dedo mínimo. Numa cirurgia de cinco horas recebeu três placas metálicas e 18 parafusos. Por muito tempo, Bono pensou que jamais voltasse a tocar guitarra.

A cultura sempre glamurizou o carro. Já nos anos 1920 o italiano Filippo Marinetti, autor do Manifesto Futurista, afirmava: “O esplendor do mundo se enriqueceu com uma nova beleza, a beleza da velocidade: um carro de corrida é mais bonito que a Vitória de Samotrácia.” 

A pintora maior do estilo art déco, Tamara de Lempicka, celebrou o automóvel em 1929 no famoso autorretrato Tamara numa Bugatti verde. 


O automóvel tem presença tão marcante no cinema que chegou a criar um gênero: o chamado road movie



Os carros estão presentes no cinema desde o início. Nos filmes mudos dos Keystone Cops, eles se prestam a correrias intermináveis. Já aparecem mais carros do que pessoas nestes filmes, é muito provável que, ao longo da história do cinema, a quantidade de automóveis na tela supere a de seres humanos. Em alguns filmes, o carro é até o protagonista, como em Se meu fusca falasse...

No primeiro filme de Steven Spielberg, Duel/Encurralado, um homem que viaja sozinho de carro sofre a perseguição implacável de um grande caminhão dirigido por um motorista sem rosto. Com a sofisticação da “sétima arte”, surgem os “road movies”, filmes que se passam quase todos sobre quatros rodas (às vezes duas, como os Diários de motocicleta, de Walter Salles, que levaram Coppola a escolher o brasileiro para dirigir o clássico estradeiro On the Road, baseado no romance de Jack Kerouac.) Wim Wenders fez Paris, Texas, em que o protagonista passa a maior parte do tempo percorrendo a pé as estradas poeirentas da América. Entre meus favoritos estão o noir Detour/Curva do destino (1945), de Edgar Ulmer; o febril Vanishing Point/Corrida contra o destino (1971), de Richard Sarafian; o feminista Thelma e Louise, de Ridley Scott; e Il Sorpasso/Aquele quer sabia viver de Dino Risi, de 1966, com Vittorio Gassman e Jean-Louis Trintignant. De uma dinastia de pilotos de corrida, Trintignant também foi corredor, campeão em sua categoria no Rally de Monte Carlo, e herói romântico de Um homem, uma mulher, ao volante do seu bólido de Fórmula-1. (Não vou entrar nisso aqui, mas o automobilismo esportivo [!] é uma rica arena em estatísticas mortais, não só de pilotos, mas de uma quantidade de inocentes espectadores.)

Entre as cenas de perseguição antológicas estão as de Bullitt, nas ruas de San Francisco, e Operação França, nas ruas debaixo do metrô elevado de Nova York. Também em Nova York, entrou para a história a cena surreal de Al Pacino, um cego, dirigindo loucamente em Perfume de mulher. O filme de perseguições de 2001, Velozes e furiosos, criou uma espécie de franquia que já chegou a nove filmes. Um de seus atores, Paul Walker – numa espécie de macabro marketing involuntário, morreu em 2013, aos 40 anos, num Porsche que bateu num poste, numa árvore e pegou fogo. Houve rumores de que Walker estaria participando de um racha.

As histórias de Stephen King estão cheias de carros. Em Christine, o carro assassino, ele levou a alegoria ao pé da letra. Em Pet Sematary/O cemitério, uma família se muda para uma casa à margem de uma autoestrada trafegada por grandes caminhões e o filho morre atropelado. Em Misery/Louca obsessão um escritor de sucesso, depois de um grave acidente de carro, é socorrido por uma fã que o mantém sob cativeiro para obriga-lo a escrever o próximo romance do jeito que ela quer.

Em 1999, o destino deu o troco: um homem que dirigia sozinho, importunado por um cão solto dentro da sua van, atingiu Stephen King pelas costas enquanto ele caminhava no acostamento de uma estrada perto de sua casa. O autor de 52 anos sofreu traumatismo craniano, fraturas múltiplas e perfurações num pulmão. Foi submetido a três cirurgias. Quase impossibilitado de trabalhar, King pensou em parar de escrever em 2002, mas acabou reconsiderando a decisão.

Em 1996, um filme polêmico, Crash – Estranhos prazeres, revelou o mundo dos simforofílicos – pessoas sexualmente excitadas por desastres de carro. Dirigido por David Cronenberg, recebeu em Cannes o Prêmio Especial do Juri, cujo presidente, Francis Ford Coppola, anunciou o premiação pela originalidade, ousadia e audácia”. Cito a sinopse pela Wikipedia: “Um acidente de trânsito envolve um publicitário e um casal, cujo marido morre e a mulher fica em estado grave. Quando se recupera, ela e o publicitário se tornam amantes e conhecem grupo de pessoas cujo fetiche sexual é reconstituir acidentes automobilísticos sem nenhuma segurança, aumentando a excitação de todos. O publicitário e a mulher acabam descobrindo um novo prazer, e o sexo passa a ser mais frequente dentro de carros acidentados. 

O conceito da linha de montagem da Ford transformou os operários em robôs décadas antes da robotização das indústrias.

A linha de montagem da Ford foi pioneira na indúsria.

Já no começo do século 20, Henry Ford massificou a produção de automóveis com o seu Modelo T. Em 1914, um operário podia adquirir um carro ao preço de quatro salários mensais. Tudo isso graças ao conceito da linha de montagem, que transformava os operários em robôs décadas antes da robotização das indústrias. A pantomima do homem que passa a vida apertando parafusos foi satirizada magistralmente por Chaplin em Tempos modernos (1936).

O fordismo assumiu até ares doutrinários. Edsel Ford, filho de Henry, contratou em 1932 o mexicano Diego Rivera para pintar uma série de afrescos gigantescos glorificando os métodos de produção da Ford, o que levou Diego e sua mulher, Frida Kahlo, a passarem dois anos em Detroit. Vale salientar que Frida não teria se tornado pintora – e o maior fenômeno de culto a um artista, superando até Marilyn Monroe, e ganhando projeção ainda maior no século 21 – se não tivesse sofrido aos 18 anos um terrível acidente de ônibus, abalroado por um bonde na capital mexicana. Nos longos meses de convalescença, ela desistiu da carreira médica e voltou à pintura, que a tornaria famosa e na qual o desastre de ônibus seria um leitmotiv, em telas ostensivamente autobiográficas expondo seus ferimentos e os coletes e aparelhos ortopédicos que usaria pelo resto da vida.

O aspecto religioso do fordismo é satirizado em 1932 por Aldous Huxley na sua distopia Admirável mundo novo, que se passa no ano de 632 DF (Depois de Ford). Em vez de Our Lord (Nosso Senhor), é usada a expressão Our Ford e a cruz católica é substituída pelo T, de Tecnologia.

A cada 24 segundos o carro mata uma pessoa na terra. Quantas vão morrer no ar com o novo “carro voador”?

A primeira morte de uma pessoa num acidente de automóvel foi a da irlandesa Mary Ward, 42 anos, naturalista e astrônoma. Em 31 de agosto de 1869, passeando nos arredores de Dublin num automóvel a vapor, fabricação caseira de um primo, foi jogada para fora do veículo numa curva e esmagada pelas rodas do carro.

A primeira pessoa a morrer atropelada por um carro foi a também irlandesa Bridget Driscoll, 44 anos, atingida por um automóvel que fazia uma demonstração no Crystal Palace de Londres, em 17 de agosto de 1896.

No cipoal das estatísticas sobre acidentes de carros na internet, não encontrei uma resposta simples para esta pergunta: quantas pessoas morreram até hoje em desastres de carro? Mesmo porque – segundo estatística recente – a cada 24 segundos morre alguém em decorrência dessa causa.

Cito um informe da Organização Mundial da Saúde que dá uma ideia da imensidão do problema:

“De acordo com o Global status report on road safety 2018, lançado em dezembro de 2018, as mortes nas estradas continuam aumentando em todo o mundo e mais de 1,35 milhão de pessoas perdem a vida todos os anos em decorrência de acidentes de trânsito, o que significa que, em média, morre uma pessoa a cada 24 segundos. O documento revela ainda que as lesões causadas pelo trânsito são hoje a principal causa de morte de crianças e jovens entre 5 e 29 anos.”

A conclusão é arrasadora: desde que passou a ocupar o espaço das ruas – os primeiros carros já circulavam na segunda metade do século 19 – o automóvel já matou mais gente do que todas as guerras, os genocídios, atentados terroristas, as pandemias e outras causas somadas.

Representação artística do eVtol da Embraer. Imagem de divulgação

Nos últimas semanas, a mídia tem publicado notícias eufóricas sobre o “carro voador”. Cito algumas manchetes: 

•“Startup está perto de por o eVTOL* no ar” (*eVTOL = electric  vertical take-off and landing)” • “Embraer forma parceria para desenvolver mercado de ‘carro voador’ na América Latina” • “Azul aposta em ‘carro voador’ para competir com helicóptero”.

Parabéns, bravos empreendedores! Como se não bastassem os acidentes de automóvel em terra, agora vão provoca-los também nos ares...

domingo, 8 de agosto de 2021

Isso a Fatos & Fotos não mostrou - Livro revela que reportagem da revista pode ter facilitado tocaia contra matador de Lampeão

 

A capa do livro e o trecho que relaciona a revista com tocaia a Noratinho, o sargento
que matou Lampião

por Nilton Muniz de Oliveira (*)


A revista Fatos & Fotos, quem diria, pode ter se envolvido involuntariamente em uma vingança fatal contra um dos matadores de Lampião, o rei do cangaço. 

Em textos recentes, (mês passado) muito se publicou sobre a data da morte de Lampião, em 28 de julho de 1938, aos 40 anos. Lendo o livro "Apagando o Lampião, Vida e Morte do Rei do Cangaço" , do historiador Frederico Pernambucano de Mello, encontrei na página 20, dois trechos em que ele cita a revista Fatos e Fotos. Pelo que o livro registra, a reportagem pode ter ajudado em uma provável vingança da morte de Lampião. Leia a página acima reproduzida. Em março de 1962 a FF publicou uma matéria com um sargento reformado que fez parte da "volante" policial que matou o rei do cangaço. Depois de duas décadas de silêncio, Noratinho, era o apelido de Antonio Honorato, assumia na entrevista: "Eu matei Lampião".  Na reportagem, segundo o livro, ele "cometeu o descuido de revelar onde morava". Poucos meses depois, em setembro de 1962, Noratinho foi morto  "com um tiro no peito dado de longa distância". E a Fatos & Fotos publicou nova reportagem dessa vez com o título "A vingança de Lampião".

(*) Nilton Muniz de Oliveira trabalhou na Bloch, no Departamento de Serviços Editoriais, setor diretamente ligado às revistas Manchete, Fatos & Fotos e demais publicações da Rua do Russell.