quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Mídia: "Não sei se o jornalismo morreu, também não sei se quer viver".

por Francisco Louçã  (para o Público, de Portugal

Um dia, entrei com a família num restaurante de um país do hemisfério sul e pedimos um prato, já não sei qual. O empregado explicou-nos, condescendente, que “tem, mas acabou”. Creio que o jornalismo pode estar a passar por um risco semelhante: tem, existe, são profissionais com códigos e com instituições, que produzem um bem público, mas este está a mudar tão depressa que se pode tornar irreconhecível ou redundante, pode acabar.

Não é da existência de jornais, ou de rádios, ou de televisões, como objectos produtores de comunicação, que trato aqui. Esses continuam, mudam mas continuam. Sempre foram desafiados por novas formas de informação e sempre resistiram e continuaram. É mesmo ao jornalismo como profissão com um estatuto próprio na sociedade que me refiro.

Esse jornalismo está em risco de morrer. Um risco não é ainda uma conclusão, nem tem que ser: os dias recentes, aliás, demonstraram em pequenos detalhes que existem regras seguidas pelos jornalistas e que atestam o seu cuidado profissional, que provam portanto que ainda existe jornalismo. Por exemplo, ao que me dei conta, nenhuma televisão usou imagens integrais do caixão aberto de Mário Soares, transmitindo portanto unicamente imagens da sua vida e das cerimónias fúnebres, mas mantendo respeito pela imagem do seu corpo e da sua morte. Elogio esta escolha, que é digna.

No entanto a reflexão que vos quero trazer é mais vasta do que a motivada por um episódio. Deixando para outras núpcias os debates sobre a “pós-verdade” ou a “nova ignorância”, aqui trazidos por Pacheco Pereira e António Guerreiro, entre outros, refiro-me agora a três questões: a tempestade perfeita que se abateu sobre o jornalismo (ou, ainda pode haver independência da comunicação social?), o recurso às estratégias da banalização anestesiante ou da banalização obsessiva (ou, o jornalismo ainda quer informar?) e a inclinação política de parte do jornalismo, que substitui a notícia pelo comentário engajado (ou, a agressividade do jornalismo de hoje significa que abandona a busca ou a pretensão de objectividade?). Não sei se o Congresso dos Jornalistas as discutirá, mas estas são para já as questões cépticas para as quais preciso de ter resposta. E aqui adianto alguma reflexão, continuando o que tenho escrito neste blog sobre o assunto.

A tempestade perfeita

A comunicação social está no meio de uma tempestade perfeita em que tudo agrava os riscos:

A) A recessão esvaiu a publicidade e reduziu as receitas dos órgãos de comunicação social, além de ter destruído alguns, aumentando o desemprego entre os jornalistas.

B) A concentração das empresas de comunicação acentuou-se, ameaçando a independência profissional dos jornalistas e a liberdade de escolha dos consumidores. A ofensiva da Altice sobre as televisões é a mais recente demonstração do perigo da concentração.

C) Ambos os factores agravaram a precarização, os estágios e a dependência profissional e atacaram a falta de autonomia dos jornalistas, tornando-os mais vulneráveis ao poder.

D) A evolução tecnológica destroçou a forma tradicional dos circuitos de informação e suscitou mecanismos de sedução e de esmagamento informativo, manipulando as redes sociais (os robots na internet durante a campanha presidencial norte-americana são um exemplo). Neste contexto, a norma dos tempos de informação foi subvertida, pois os jornalistas já só informam o que já se sabe.

A questão é se estes factores se modificarão. Mas a resposta é que é pouco provável e que portanto é difícil que haja independência da comunicação social.

A condição económica não se alterará. Mesmo com uma pequena recuperação económica, a publicidade diversifica-se, impõe preços baixos, e a comunicação social apenas sobrevive com o recurso ao mercado publicitário, quanto não é por ele destruída ou condicionada.

A concentração também dificilmente se reduzirá. Em Portugal, nenhum governo se atreveu a sequer imitar as leis anti-concentração dos EUA ou de países europeus e um grupo empresarial da comunicação pode ter uma distribuidora com grande quota de mercado, ou órgãos dominantes em várias áreas da comunicação. Pelo contrário, a concentração tem-se agravado e distorcido (com compras por grupos angolanos e chineses, por exemplo).

A precarização profissional dos jornalistas decorre das duas condições anteriores, com o recurso extensivo a estagiários e a empregos de curta duração, com a queda salarial e a acentuação do poder das hierarquias. O jornalista já não tem autonomia, já não investiga sem ser autorizado, já não tem recursos para fazer uma reportagem, já não pode prosseguir um caso. Os directores ocupam o seu tempo a procurar patrocínios, a frequentar feiras empresariais, a promover produtos, a almoçar com clientes, a cortejar anunciantes. Ou seja, a concorrência entre órgãos de comunicação é determinada pelo mercado a montante e não pela qualidade da informação e pelo público a jusante. Não escolhemos o que vemos e lemos, o mercado é que nos escolhe.

Por isso mesmo, o produto da comunicação social tem vindo a ser modificado. A razão é esta: o objectivo da informação passou a ser a audiência e não a informação ou, mais em concreto, como os tempos da comunicação foram encurtados, a produção de notícias é marcada pela gestão do efémero e portanto pela procura da excitação, que é a chave da audiência imediata. Se perguntar a qualquer jornalista de TV se são precisos 15 minutos na abertura de um telejornal para dissecar todas as hipóteses sobre o desaparecimento de uma mulher em Grândola, a única resposta coerente é que teme que os concorrentes façam o mesmo e se não foi isso é o futebol.

O espaço noticioso é portanto gerido por uma certeza: a da inevitável degradação da informação, que tem que ser transformada em entretenimento. A notícia cede à emoção. O jornalismo de choque é portanto o resultado deste processo de contaminação. Num exemplo recente que aqui discuti, na noite do massacre de Nice, um jornalista de televisão, perguntava em directo a um homem que estava ao lado da sua mulher, morta no passeio, como se sentia. Receio que, mesmo sem a crueldade da pergunta neste caso, é desse tipo de emoção que se ocupe grande parte da reportagem de Grândola quando percorre os vizinhos, os colegas ou os conhecidos da mulher desaparecida.

Ou seja, o resultado da tempestade perfeita foi acentuar a transformação da natureza da comunicação social: em vez de notícias (a escolha de títulos como “Diário de Notícias” ou “Jornal de Notícias” ou “Correio da Manhã” ou “Público”, por exemplo, destinava-se a sublinhar que se trata de dar notícias), a comunicação social produz regularmente senso comum, ou seja, produz ideias, ideologias e conformação. Portanto, transforma-se gradualmente num órgão de poder e não de contrapoder. Não há independência do jornalismo. Tem, mas acabou.

A comunicação como discurso da banalidade anestesiante e da banalidade perturbante
Ao passar a produzir senso comum em vez de informação, a comunicação social muda também os seus procedimentos. Mais um exemplo: o predomínio do futebol nos nossos canais de televisão por cabo é um caso de estudo entre a televisão internacional. Abra a CNN ou outra televisão cabo de referência e procure à 2ªf, 3ªf, 4ªf, 5ªf, 6ªf, sábado e domingo o programa diário de antecipação, de análise e depois de discussão dos jogos, com claques representadas, com especialistas, com gritadores, com repetições nos horários nobres – e não encontra. Ou seja, a televisão portuguesa vocacionada para a informação, o cabo (que assim aliviou os canais generalistas que abertamente se especializaram em entretenimento, ou telenovela), escolheu priorizar o caminho da não-notícia, interpretando obsessivamente o jogo, espectacularizando a sua própria interpretação em que o acontecimento é a discussão do acontecimento.

O meu argumento até hoje foi que este trabalho de produção de senso comum pela comunicação social é construído como uma banalidade banal, ou tranquilizadora, baseado no entretenimento, na diversão, na distração, na efemeridade. Mas há também um contraponto desta tranquilidade, que é a sua condição de sucesso: deve emergir também e ocasionalmente uma banalidade perturbante. Essa linguagem da perturbação tem três funções: em primeiro lugar, a informação deve ser surpreendente, porque essa é a sua condição para mobilizar a atenção; em segundo lugar, deve contrastar com a programação banal, porque essa é a condição para o entretenimento gerar a distração; em terceiro lugar, deve criar o espaço para que o senso comum estabeleça a banalidade tranquilizadora como o estado da natureza, isto é, como o lugar da democracia. A emoção violenta, a excitação do acontecimento, a expectativa do imediato provocante são instrumentos de afirmação pública de um discurso e de uma instituição, mais ainda do que meios de captação de audiências.

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Um comentário:

Wilson disse...

Por aqui, o jornalismo tem doença degenerativa há muito tempo, de braços dados com a política que fez e sustentou a ditadura, Sarney, Collor e agora o golpe.