sábado, 27 de fevereiro de 2021

Elmalan, le malin • Por Roberto Muggiati


Adolpho Bloch – mais do que apostar na prata da casa – acreditava em importar o melhor talento estrangeiro que o dinheiro podia comprar. Contratou fotógrafos americanos fabulosos quando as grandes revistas ilustradas começaram a fechar nos anos 70, Life, Look, etc. Acolheu a nata da fotografia portuguesa que se viu ao relento depois da Revolução dos Cravos (a maioria tinha o rabo preso com Salazar). No final dos anos 60, incumbiu Justino Martins – editor da Manchete de passagem por Paris depois de sua tradicional visita ao Festival de Cannes – de contratar um diagramador francês para as revistas da Bloch. Justino se deu ao sacrifício de ficar de plantão na sucursal da Manchete na Avenue Montaigne – Polanski morava no mesmo prédio e Marlene Dietrich tomava banho de sol nua na cobertura. O primeiro gato pingado que apareceu o Justino contratou. 

Era Serge Elmalan, egresso do finado jornal-revista Candide, que fechara as portas em 1967. Mudou-se de armas e bagagens – com a mulher e um mastim respeitável, um pastor belga – para um apartamento art déco na Praça do Lido. Coitado do Beau Serge, se esqueceu de tomar a principal vacina – contra a mulher brasileira. Chefe de arte da revista feminina Desfile, em sua primeira desventura amorosa, envolveu-se com uma produtora de moda de sobrenome Guerra, que numa crise de ciúmes sacou um revólver e saiu atirando.

A única bala que acertou foi pérfida, aninhou-se num ponto inalcançável da região da clavícula. Adolpho não hesitou: mandou Serge para Houston aos cuidados do Dr. Michael DeBakey, o cirurgião que revolucionou a medicina na Segunda Guerra ao levar médicos e enfermeiras para a própria zona de combate (procedimento satirizado pelo filme M*A*S*H). Nem um craque como o Dr. DeBakey conseguiu retirar a bala guerreira. O maior cirurgião cardiovascular do mundo diagnosticou: “A melhor coisa a fazer é não mexer nisso...” E o canhoto Serge teve de seguir diagramando com a asa quebrada pela vida afora. Mas a história não acaba aí. Ao voltar recuperado ao trabalho, Serge ainda sofreria novas ameaças da amante injuriada. Toda tarde, no fim do expediente, o Marechal – chefe de segurança informal do Adolpho – se esgueirava por entre as árvores defronte do prédio do Russell à procura da pistoleira. E Serge saía sempre escondido no assoalho do carro de um colega de redação.

Depois de conhecê-lo melhor, eu o apelidei de “Elmalan, le malin”, malin em francês quer dizer “sagaz”, “esperto”, o que o nosso Apelidador-Mor Alberto de Carvalho costumava chamar de “professor de astúcia”. Serge convidou-me certa noite para uma reuniãozinha en petit comité no seu apartamento do Lido. Quando adentrei a sala, me deparei com a romancista Françoise Sagan (Bonjour Tristesse), a Begum Aga Khan (viúva de um dos homens mais ricos do século e mãe do playboy Aga Kahn, ex-marido de Rita Hayworth), o cineasta Jacques Deray (dirigiu Alain Delon em Borsalino, um precursor francês de O poderoso chefão) e Gilberto Tumscitz com sua mãe (Serge adivinhou já no jovem repórter o futuro autor de telenovelas de sucesso, Gilberto Braga).

Hostilizado por Oscar Sigelmann, Serge pediu o boné, rodou ainda alguns anos pelo Rio, casou – salvo falha da minha memória – com a filha de um vice-governador da Guanabara, e acabou regressando para os seus pagos. Em 2004 lançou o romance histórico Villegagnon ou a Utopia Tropical e em 2009 voltou ao Rio em grande estilo como coordenador cultural do Ano da França no Brasil. Instalado na gigantesca cobertura rococó do prédio do cinema Odeon, na Cinelândia, convidou-me para dividirmos um almoço no Restaurante Rosas, relíquia dos velhos tempos da Capital Federal, na Rua Álvaro Alvim. (A poucos metros do Hotel Itajubá, onde em suas folgas de voo nos anos 30, Saint-Exupéry escreveu Voo noturno e esboçou O pequeno príncipe.) Trocamos livros, dei a ele um exemplar do meu romance A contorcionista mongol, éramos ambos editados da Record. E não mais soube do amigo, que, aos 80 anos – passeando de máscara pelos Champs Elysées ou de pantufas numa casinha bucólica de banlieue – deve guardar belas – e também terríveis – lembranças de sua passagem pelo Rio de Janeiro.

Um comentário:

Anônimo disse...

Bom "causo". Saudade dessas redações onde viviam humanos. Hoje, parecem assépticas e têm até robôs que já fazem textos. A Bloch, JB e Globo tinham muitas dessas histórias passionais, claro, sem tiro. Com a tendência do home office não vão render mais uma "redação como ela é" parodiando Nelson Rodrigues.