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sábado, 29 de março de 2025

Paulo Leminski Neto: o filho do homenageado da Flip 2025 é morador de rua no Rio • Por Roberto Muggiati


O cantor Paulo Leminski Neto vive um drama nas ruas da Lapa
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Na foto, o pai, poeta Paulo Leminski (1944-1989)

Identidade e semelhança comprovadas


Numa batida recente da PM na Praça São Salvador, um jornalista teve a atenção chamada para a identidade de um morador de rua: Paulo Leminski Neto. Era o filho do poeta curitibano Paulo Leminski Filho, que, nos anos 1980, agitou os meios culturais com seus talentos múltiplos como poeta, tradutor e ensaista (dialogando com os irmãos Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari e Wally Salomão), letrista da MPB (gravado por Caetano, Moraes Moreira e Ney Matogrosso) e judoca respeitado nos tatames da vida. Ele será um dos principais homenageados da Feira Literária de Paraty (Flip) deste ano.

Paulo Leminski Neto, cantor e professor de música, ficou sem trabalho no final do ano passado, foi despejado do quarto onde morava na Lapa e se viu na rua com a mulher, a figurinista Claudia Tonelli, com quem vive há seis anos. Como se desgraça não bastasse, ela sofreu agressão e tentativa de estupro por um delinquente de 29 anos com 22 passagens na polícia, saindo da emergência hospitalar com stress pós-traumático. O incidente levou ambos a se tornarem pacientes por depressão num Centro de Atenção Psicossocial (CAPs). Disse ela: “Viver e dormir nas ruas é um misto de invisibilidade e visibilidade incômoda.” O casal, em estado extremo de vulnerabilidade, precisa levantar 120 reais diários para pagar o hotel na Lapa onde Cláudia se recupera. Contam com a ajuda de pessoas solidárias, mas sem garantia de continuidade e podem ir parar de novo nas calçadas a qualquer momento.

Paulo Leminski Neto só passou a existir com carteira de identidade em agosto de 2021, depois que ele soube, pela biografia de Toninho Vaz, "O bandido que sabia latim", que era filho do poeta e que Leminski o havia registrado e, de posse da certidão do cartório, obteve o documento, com a data de nascimento de 31 de janeiro de 1968. A primeira mulher de Leminski, o registrou sob outro nome, não tinha sequer a certeza de que o poeta fosse seu pai, pois o casal vivia numa época de relações abertas.

Como sempre, Manchete tem um dedo nessa história. Na ocasião, Paulo Leminski veio tentar a sorte no Rio e hospedou-se no lendário Solar da Fossa, em Botafogo, demolido depois para a construção do Shopping Rio Sul. No casarão de dois andares com 85 quartos moraram, entre 1964 e 1971, intelectuais e artistas como Caetano Veloso, Gal Costa Gilberto Gil, Glauber Rocha, Paulo Coelho, Tim Maia, o jornalista Ruy Castro e os atores Cláudio Marzo e Beth Faria, que se casaram no pátio da pensão. O nome veio da deprê do carnavalesco Fernando Pamplona, que lá se refugiou depois de se separar da mulher. Mas o Solar era tão solar que a fossa não demorou muito, só o nome restou. Leminski ficou pouco e passou em brancas nuvens, assim como nas duas semanas em que trabalhou na antiga revista Manchete, escondido no Departamento de Pesquisa. Seu Grande Salto seria nos anos 1980, em São Paulo.






quinta-feira, 20 de março de 2025

Revista Manchete - O Eterno Retorno

 




LEIA MAIS NO jORNALISTAS & CIA

Memórias da Redação - Elis Regina, 80 anos - Foi no dia 19 de janeiro de 1982 que, pela primeira e última vez em minha carreira jornalística, proferi uma frase-chavão típica dos filmes que têm a imprensa americana como tema: "Parem as máquinas";. E eles - os dirigentes da revista Manchete -pararam. Por Celso Arnaldo Araújo


Não olhe agora, mas Elis Regina faria hoje 80 anos. Nasceu nas águas de um 17 de março. Não posso, e acho que ninguém pode, além da Inteligência Artificial, imaginar nossa "maior cantora" cantando e sacudindo Arrastão com 80 anos. Mas aos 36, quando partiu misteriosamente, não só a imaginei como a vi em pessoa, já sem vida, na maior tragédia da MPB. 

Foi no dia 19 de janeiro de 1982 que, pela primeira e última vez em minha carreira jornalística, proferi uma frase-chavão típica dos filmes que têm a imprensa americana como tema: "Parem as máquinas". E eles - os dirigentes da revista Manchete - pararam. Não por mim. Por Elis. 

Era uma terça-feira em São Paulo. A revista, fechada na véspera, com Julio Iglesias na capa, já rodava no parque gráfico de Lucas, para ir às bancas na quarta de manhã, como sempre.

Por isso, terça-feira era, para a redação, um dia de transição, de ritmo lento. Jornalisticamente meio parado, improdutivo. A próxima edição, só daqui a oito dias. Mas, espere. Às 11 e meia da manhã daquela terça-feira, eu e o supercolega Júlio Bartolo subíamos a Avenida Rebouças, onde então se localizava a sucursal de Manchete, em direção à Avenida Paulista, para beliscar alguma coisa. No rádio do carro, ao fundo, em volume pouco audível, começamos a detectar fragmentos de uma notícia meio sem sentido: Elis Regina. IML. Dr. Shibata. Velório.

Parei o carro para ouvir melhor e nos demos conta de que nossa maior cantora estava morta. Senti na carne, fã de primeira e última hora. Mas o repórter gritava mais alto diante desse absurdo biográfico. Será que o pessoal da redação no Rio já sabia? A notícia chegou lá, pelo Trem de Prata? Possivelmente, não. Telefone, rápido. Celular? Só se a Rebouças fosse o túnel do tempo, 20 anos adiante. Orelhão, claro.

Apalpados todos os bolsos, nada de um punhado de fichas para o interurbano. A ligação a cobrar era o único meio de comunicação do mundo, como no tempo de nossos pais, naquela circunstância. Mas, para funcionar, era preciso que a redação da Rua do Russel já estivesse semipovoada, para atender e aceitar a ligação – naquele horário, isso não era comum numa terça-feira, pós-fechamento. Dois pra cá, dois pra lá, atenderam a ligação. Fascinação: era o próprio editor, o grande Roberto Muggiati. Então enchi o peito e anunciei: "Parem as máquinas!!!!". 

Não, ainda não sabiam de Elis. O Rio não sabia, naquela era pré-Internet. Mas Muggi era um editor de primeira e última hora: mandou parar as máquinas. Que Julio Iglesias esperasse sua vez. Escrevi o texto em duas horas. Sem almoço. Não sei quais foram as providências do ponto de vista gráfico. O fato é que horas depois, na manhã de quarta, como de costume, Manchete com a despedida de Elis estava nas ruas. 

Naquele mesmo dia, com Elis provocando um arrastão nas bancas, fui a seu velório, no Teatro Brigadeiro, que ela lotara por mais de ano com o musical “Falso Brilhante”. No féretro, serena, mas ainda Elis. 

Incrível: estamos há 44 Marços sem Elis.

P.S - Texto publicado no Facebook  de Celso Arnaldo Araújo. Roberto Muggiati compartilhou com o Panis Cum Ovum. 

domingo, 16 de março de 2025

Quem matou Odete Roitman? Elementar: foi a Manchete • Por Roberto Muggiati

Esta foi a única capa que a Manchete publicou com a grande personagem da TV em 1988: Odete Roitman em um flagrante captado por Wilson Pastor durante um rápido intervalo de gravação. A novela Vale Tudo fazia enorme sucesso mas a atriz Beatriz Segall se recusava a posar com exclusividade para as revistas da Bloch. E ela tinha razão. Saiba o motivo.  

A pior roubada que me aconteceu como editor de Manchete foi obra de uma repórter de sobrenome começado por M, de Macunaíma. Para emplacar uma reles notinha na seção Gente, que se resumia a uma foto e dez linhas, ela engambelou a atriz Beatriz Segall – que atuava numa peça em São Paulo – a vir ao Rio, trazendo o ator e a atriz com os quais contracenava, para fazer uma foto no estúdio. Todas as despesas pagas pela própria Beatriz, convencida pela repórter de que seria capa da revista – a jornalista  jurou, como dizia Adolpho Bloch, “pela minha morta mãe”. Quando saiu a Manchete, Beatriz teve um choque ao ver que a capa era outra. Folheou a revista várias vezes até encontrar a foto e o textículo protocolares meio sumidos entre doze outras notinhas na página dupla da seção Gente. 

Beatriz Segall era uma pessoa muito elegante, nora do grande pintor Lasar Segall e filha do diretor do Instituto Lafayette, um dos melhores educandários femininos do Rio, onde aprendeu francês, piano e costura. Depois, foi bolsista de teatro e literatura em Paris, onde conheceu o marido. Telefonou para mim, a voz calma e o discurso sóbrio, expondo a grande falcatrua a que fora submetida. Fiquei embasbacado, desconhecia os detalhes da história, e prometi que falaria com os Bloch, pleiteando um ressarcimento que, já sabia de antemão, seria causa perdida. Beatriz e eu costumávamos frequentar os saraus da Ceres Feijó, a partir de então me vi constrangido a ficar sempre à distância dela, praticamente me escondendo de tanta vergonha.

Acabou que, poucos meses depois, a doce Beatriz Segall teve o seu gosto de vingança. A TV Globo estreou o que seria talvez a sua novela de maior sucesso em todos os tempos, Vale tudo. E Beatriz brilhava no papel da arquivilã, Odete Roitman. Durante meses o Brasil inteiro viveu em suspense o enigma “Quem matou Odete Roitman?” A mídia vivia à sua caça. Beatriz/Odete recebia a todos cordialmente, menos aos veículos da Bloch. Manchete e Amiga perderam capas preciosas, obrigadas a recorrer a fotos e informações de segunda mão, sem contato direto com a “dona da notícia”.

PS • O autor de Vale tudo, Gilberto Braga, também vivia dias de glória. Vinte anos antes, amargou um anonimato humilhante como foca na reportagem da Manchete com o sobrenome materno, Gilberto Tumscitz.

domingo, 2 de março de 2025

“Tomara que chova” antecipou “Cantando na chuva” • Por Roberto Muggiati

 


Um dos maiores sucessos do Carnaval carioca, a marchinha Tomara que chova, de Paquito e Romeu Gentil, é cantada por Emilinha Borba no filme da Atlântida Aviso aos navegantes (1950), com o par romântico Eliana-Anselmo Duarte e a dupla cômica Oscarito-Grande Otelo. A cena de Tomara que chova é coroada por um incrível balé “frevando-na-chuva”, que antecipa em dois anos o famoso número de dança de Gene Kelly em Cantando na chuva. VEJA NO LINK 

1950 - Emilinha Borba - Tomara Que Chova


Mais uma vitória para o nosso cinema, muito antes do Orfeu Negro e de Ainda estou aqui. Plágio inconsciente? Há controvérsias. Nos velhos  papos cinéfilos com Carlos Heitor Cony na Manchete, ele lembrou que o Brasil era um fetiche para o diretor de Cantando na chuva, Stanley Donen. Em 1984, Donen filmou aqui Blame it on Rio/Feitiço do Rio, primeiro papel importante de Demi Moore. (Outra vitória para nossas cores: por artimanhas do repórter Tarlis Baptista, a starlet de 21 anos posou seminua para EleEla...) E ainda tem mais Manchete na área: no final dos anos 1970, Tomara que chova foi um número de destaque no musical-besteirol de Wilson Cunha e Flávio Marinho, redator e crítico da Manchete, parodiando o musical transformado em filme Evita. Carnaval também é cultura. 

sábado, 1 de março de 2025

Marcio Ehrlich (1951-2025) - o historiador da publicidade brasileira

Marcio Ehrlich

A coluna Janela Publicitária na...


Revista Tupi, 2020

por José Esmeraldo Gonçalves 

Em 2020, em pleno isolamento social imposto pela Covid, editei um projeto interessante idealizado por David Ghivelder: uma revista para a Tupi 96.5 FM. Toda a produção, com exceção obviamente da gráfica, foi em home office. A equipe era formada por revisteiros da Manchete como Dirley Fernandes, Sidney Ferreira, Alex Ferro, David Júnior, Tânia Athayde, Roberto Muggiati, além da repórter Dani Maia, ex-Abril. Marcio Ehrlich foi o responsável pela coluna Janela Publicitária, o mesmo título do seu site e podcast. Tínhamos então, nas páginas da publicação da "rádio que vai para as bancas", o maior especialista no assunto. 

Desde os anos 1970, Marcio Ehrlich era atualidade e memória da publicidade brasileira. Foi diretor a Associação Brasileira de Publicidade (ABP). Era referência no setor. Entendia que a publicidade não apenas vendia produtos mas se connectava com a vida das pessaos. 

Sua última coluna foi sobre o Natal. Ele sentia falta das mensagens natalinas produzidas pelas agências especialmente para a época. "Todo anunciante sonhava que sua agência de publicidade trouxesse um jingle que tocado na rádio ou na TV fizesso o público sair cantarolando depois, como se fosse um hit popular", lembrou.  Ehrlich citou o antológico comercial da Varig. "Estrela brasileira no céu azul , iluminando de norte a sul, mensagem de amor e paz, nasceu Jesus, chegou Natal. Papai Noel voando a jato pelo céu trazendo um Natal de felicidade..." 

No último parágrafo da coluna ele lamentou: É uma pena. Neste momento em que muitos shoppings estão tendo que botar seus Papais Noéis atrás de uma vitrine ou de uma tela de celular, por conta do isolamento social, bem que eu gostaria de estar cantando uma nova musiquinha fofa de Natal. você não?"  

O que poucos sabiam: Ehrlich, além de jornalista e psiquiatra por formação, foi ator, trabalhou em várias novelas. Uma delas, "Pantanal", da extinta Rede Manchete. 

Marcio Ehrlich faleceu no dia 24/2/2025, aos 74 anos, vítima de choque séptico e falência de múltiplos órgãos. Era casado com a jornalista Renata Suter, deixou dois filhos e um neto. 

O povo gosta de arte - Arquiteto Miguel Pinto Guimarães desvenda a construção e os artistas construtores do Carnaval das Escolas de Samba do Rio de Janeiro no livro "Pra tudo se acabar na Quarta-Feira" (Editora Capivara, 386 páginas)

 O jornalista Roberto Muggiati comenta no jornal Valor sobre a obra monumental organizada por Miguel Pinto Guimarães e Luisa Duarte reunindo 12 colaboradores, entre os quais Haroldo Costa, Leonardo Bruno, Flávia Oliveira, Aydano André Motta, Helena Teodoro, e Fábio Fabato. 

LEIA NO VALOR DE 28/1/2025


  

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Israel: Gaza é aqui! • Por Roberto Muggiati

 

Bandeira de Israel: simbolo do território ocupado na
Zona Norte do Rio de Janeiro. Foto:Reprodução X.

Na imagem do Google Maps, a "terra prometida" do narcopentecostalismo. 

A violência nossa (carioca) de todo dia abalou esta manhã o Complexo de Israel, provocando o fechamento da Avenida Brasil e da Linha Vermelha. As polícias Civil e Militar foram acionadas após receberem informações de que o 
traficante Álvaro Malaquias Santa Rosa, o Peixão,– um dos criminosos mais procurados do Rio – estaria escondido lá. Atingido pelos bandidos, um helicóptero da PM fez um pouso de emergência. Entre os feridos na confrontação, os mesmos de sempre: três pais de família da periferia na penosa e perigosa jornada para o trabalho

Cidade Alta, Vigário Geral, Cinco Bocas, Pica-pau e Parada de Lucas (onde ficava o parque gráfico da Manchete) são as cinco comunidades que compõem o complexo. Juntas, abrigam uma população de 135 mil pessoas.

Bandidos atearam fogo a barricadas, a um caminhão e a uma passarela para dificultar a entrada dos agentes nas comunidades. Também conhecida como Tropa de Arão, a facção narcopentecostalista do Complexo de Israel usa a pregação religiosa como uma de suas táticas, exigindo a conversão e práticas religiosas específicas para adesão e permanência na organização. Enquanto Peixão não cai na rede, o povo pena...

sábado, 18 de janeiro de 2025

Os saraus da Ceres: patrimônio imaterial da República de Ipanema • Por Roberto Muggiati

Ceres Feijó.  Ao fundo, pintura de Ana Maria Maiolino
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Uma vista da mesa do pato, com as amendoeiras à janela. Fotos Theca Vasques

Começo do começo, por um casal corajoso: Ceres Feijó e Flávio de Aquino, que deixaram seus cônjuges para formar uma união eterna – ela com três filhos, ele com quatro. Um casal com um dom genial para compartilhar sua alegria de viver com uma seleta legião de amigos. Eu os conheci na Manchete em 1966 e, depois de uma temporada na Veja em São Paulo, aprofundei meu relacionamento com o Flávio na redação do EleEla, um antro de intelectuais, dirigido pelo escritor Carlos Heitor Cony. Enquanto “revista masculina”, entregávamos muito pouco ao leitor, ou quase nada: o que o Cony chamava de “mulherio” de nossas páginas coloridas eram fotos da franquia alemã da revista Jasmin, robustas valquírias de biquínis largões, pois na época toda nudez era castigada pela ditadura militar. Procurávamos valorizar nossa edição mensal com matérias inteligentes e sofisticadas: Mário Pontes com seus achados literários, Paulo Perdigão com as últimas novidades de Hollywood, Cinecittà e adjacências, Flávio der Aquino com sua fabulosa erudição em artes plásticas (lembro de um texto seu sobre a Vênus de Willendorf com suas nádegas e seios fartos) e eu tentando contestar o Sistema com o rock e a contracultura,  depois do AI-5, ficou totalmente proibido escrever sobre política. O próprio Cony – nas generosas sobras de tempo do fechamento – escreveu ali o romance Pilatos, que considerava sua obra mais criativa e transgressora.

Em 1978, editor da Manchete, pedi ao Flávio que escrevesse uma série sobre a História dos Papas. O tema se tornara atualíssimo com a morte de Paulo VI e a primeira eleição no Vaticano em 15 anos. E ganhou ainda mais força quando o sucessor, João Paulo I, morreu misteriosamente após apenas 33 dias de pontificado, o que levou a uma nova eleição, a do polonês Karol Wojtyla. Flávio ficou tão satisfeito com a publicação que ofereceu um jantar comemorativo no seu apartamento da Rua Alberto de Campos, em Ipanema, perto da Lagoa.

Muggiati, com o filho Roberto, Ceres, Flávio de Aquino, Burle Marx e Zulema Rida.
Fotos de Lena Muggiati. 
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O bom Flávio sofria de insuficiência renal e submetia-se a sessões regulares de hemodiálise. Nosso último encontro memorável foi uma viagem ao sítio de Burle Marx em Guaratiba. Flávio escreveria uma grande matéria sobre o paisagista, minha mulher Lena faria as fotos. Marx fez questão de nos levar para ver as molduras de portas e janelas de pedra de cantaria que havia comprado de um prédio demolido no centro do Rio. As preciosidades estavam numa parte elevada do terreno. Na descida, debilitado pela doença, Flávio chegou atrasado à biblioteca, onde Burle Marx tocava uma peça barroca num antigo harmônio de igreja. Mirou um convidativo sofá de couro e desabou sobre ele com todo o seu peso. Do couro ressecado, cheio de furos, jorrou um jato de pequenas penas brancas do enchimento, que se chocaram contra o teto e caíram lenta e silenciosamente como neve ao som de uma fuga de Bach. Fellini puro! 

Os anfitriões lendários de Ipanema eram o casal Guguta e Darwin Brandão, encastelados no seu apartamento da Rua Redentor, até a morte dele, em 1978. Flávio, o florianopolitano de alma carioca, também nos deixou, em 1987, no dia de São Sebastião. Passado o luto, a discreta Ceres começaria a empunhar o facho dos Brandão, com seu talento natural para a arte de receber. Em sua agenda anual destacavam-se duas datas: a feijoada do seu aniversário, no sábado mais próximo do 28 de julho; e o pato com lentilhas do Ano Novo. Simbolismos não faltam aqui: as lentilhas remetem à prosperidade e fartura. E Ceres na mitologia é a deusa da agricultura, vem dela a palavra cereal. 

Lembro-me de meus primeiros patos, no início dos anos 2000, na cobertura da Visconde de Pirajá, acessada por uma escada em espiral. Você tomava o elevador até o sexto andar, abria a porta e se via enclausurado num cubículo retangular forrado de espelhos, a única saída era escalar os três metros da pesada escada de madeira em caracol. A subida até que era fácil. A descida, difícil – quase impossível para alguns – depois de umas e muitas outras... Ao entrar no apartamento, você respirava o clima de montanha do ar condicionado e os aromas convidativos que recendiam da cozinha.  Mas, antes do pato, o papo, noblesse oblige. Ele rolava, animado pelo reencontro de velhas amizades e pelo nascimento de novas amizades, estimulado pelos melhores vinhos e uísques.   

Da rica entourage, devo esquecer alguns nomes, mas vou me esforçar para lembrar. Em certa ocasião, um décimo da Academia Brasileira de Letras estava presente: Cícero Sandroni, Ferreira Gullar, Zuenir Ventura (e sua primeira-dama Mary) e Ana Maria Machado, então presidente da ABL. A pintora Marília Kranz – a misteriosa Madame K das degustações do crítico de gastronomia Apicius – era assídua. O crítico de teatro e cinema Wilson Cunha e o dramaturgo e autor de musicais Flávio Marinho também, quando não estavam de férias na Europa. O mestre do design Karlheinz Bergmüller era outro dos comensais, ex-colega de Flávio como professor da pioneira Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI) carioca, casado com a ex-fotógrafa Zulema Rida, mãe (do primeiro casamento) de Júlia Pentagna. Júlia casou com o cônsul da Alemanha no Rio, Michael Geier. Amigo da Intelligentsia esquerdista e simpatizante do PT nos seus prolegômenos, Michael prodigalizava viagens oficiais à Alemanha para seus amigos, de A[quino] a Z[iraldo]. Fui incluído na lista em fevereiro de 1979, com minha mulher, Lena Muggiati, fotógrafa de Manchete. Visitei as principais revistas semanais do país: Stern e Der Spiegel em Hamburgo, Bunte Illustrierte  em Offenburg, Quick e Bravo em Munique. Fomos também a Berlim, com direito a um concerto da lendária Philarmoniker. Michael Geier, que, depois do  Rio, serviu em rincões remotos como Ouagadougou, capital de Burkina Faso, se aposentou com brilho, como embaixador da República Federal da Alemanha em Roma e passou a morar em Berlim com Júlia. Esporadicamente, o casal veio ao Brasil, dando o ar de sua graça na casa da Ceres.

Nos últimos anos, o endereço da festa mudou: um belo apartamento de cobertura na Saddock de Sá, sombreado na frente pelas verdes copas das amendoeiras e, na varanda traseira, com uma vista deslumbrante da Lagoa Rodrigo de Freitas. Foi nesse novo cenário que reencontrei Beatriz, ex-Sra. Fernando Sabino quando ele era, em 1964, o Adido Cultural do Brasil em Londres e eu trabalhava no Serviço Brasileiro da BBC. Sabino e eu formávamos, com o jornalista Narceu de Almeida, os Três Mosqueteiros do Ronnie Scott’s Jazz Club, assistindo a shows memoráveis do pianista Bill Evans e do saxofonista Stan Getz.      

O Pato do Jubileu • Compareci ao pato deste ano na companhia de minha agente literária, Thereza Cavalcanti Vasques, que veio de São Paulo passar o réveillon no Rio e combinar a minha agenda de compromissos para 2025. Senti a falta de meu colega bolsista de jornalismo na França Zuenir Ventura, teria feito forfait por problemas de mobilidade. A gravurista Teresa Miranda, 96 anos, estava lá, lépida e fagueira. Guguta Brandão, aos 87, esbanjava jovialidade, como nos tempos em que recebia na Rua Redentor. Karlheinz Bergmüller, 96 anos, era esperado, mas não apareceu, talvez ainda estivesse pegando umas ondas na praia. Com certeza vai dar as caras no Pato de 2026. Dos filhos da Ceres, Quinca, com o marido Noronha, e Nando, com a namorada Verônica, prestigiavam a festa, assim como os filhos de Flávio de Aquino, Maria Helena e Roberto, que concilia miraculosamente as funções de funcionário da Receita Federal e percussionista de escola de samba. Conversei muito com Rosa Freire D’Aguiar, viúva de Celso Furtado e correspondente da Manchete em Paris nos anos 1970, recém-premiada pelo Jabuti por seu livro Sempre Paris. Atualmente ela traduz com Mário Sérgio Conti Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Perguntei a Rosa como se pode traduzir uma obra que começa com uma frase intraduzível: “Longtemps, je me suis couché de bonne heure”.

Ano que vem, muitos de nós estaremos de novo reunidos no sarau da Ceres. Esta história daria um belo filme. Eu o chamaria A um pato da eternidade.


quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Norwegian Wood: minhas estantes de bacalhau • Por Roberto Muggiati

 

O retrofit dos caixotes de bacalhau e...

...o logotipo gravado nas embalagens de boa madeira norueguesa



Para ler ao som de Norwegian Wood  

Norwegian Wood (This Bird Has Flown) (Remastered 2009)

Em meus quatro anos de Baixo Glicério – deixando para trás 37 anos de casa de vila na Real Grandeza para a diáspora Botafogo-Laranjeiras – construí artesanalmente sessenta estantes a partir de engradados de madeira catados em feiras e mercados e os pintei com todas as cores do arco-íris, nada ideológico tipo LGBTQIAPN+, mas puramente viajando na pluralidade visual. 

Na última Páscoa, com a chegada ao bairro de uma Casas Pedro, resolvi dar um upgrade nas minhas estantes. O bacalhau veio acondicionado naqueles caixotes maiores e mais sólidos de madeira norueguesa. Assim que as caixas ficavam vazias, a Casas Pedro fazia questão de se ver livre delas, mas, para os acumuladores como eu, elas representavam um verdadeiro tesouro. Valendo-me de esperteza, da vantagem de morar na vizinhança – e, com um little help da simpática xará Roberta Almeida, minha candidata a Gerente do Ano da Casas Pedro –  consegui me apossar de três caixotes, um deles quebrado, mas que forneceu as prateleiras dos outros dois, perfeitamente finalizados por meu factótum do condomínio Parque das Laranjeiras, o grande Marcelo.

Como gosto de agregar sempre uma grife cultural às minhas coisas, lembrei logo do Norwegian Wood dos Beatles. Com o valor adicional de que a canção está vinculada à época em que John Lennon se mudou de Liverpool para Londres e foi morar com Cynthia e o bebê em Emperors Gate. Nossa proximidade era brutal, eu morava em Collingham Gardens, a meros quinhentos metros de John. Acho até que certa vez vi Cynthia passar com Julian num pram, abreviatura de ‘perambulator’, aquelas carruagens de bebê que são a glória do design vitoriano. E foi no apartamento de Emperors Gate que John traiu Cynthia pela primeira vez, com a mulher de um conhecido que morava no mesmo edifício, traição que ele transmigraria na letra da canção Norwegian Wood (This Bird Has Flown): “I once had a girl/Or should I say she once had me/She showed me her room/Isn't it good Norwegian wood?” – a única parceria da dupla famosa em que Paul McCartney não meteu o bedelho e o primeiro raga rock dos Beatles, em que George Harrison trocou a guitarra pela sitar indiana.

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Obrigado, Kubrusly, pela bela parceria • Por Roberto Muggiati

 

Documentário da Globoplay (Kubrusly – Mistério sempre há de pintar por aí)
. No Sul da Bahia, o jornalista em estado de graça ao lado do cachorro Shiva. Imagem Reprodução TV Globo

Comoveram-me as imagens de Maurício Kubrusly deixando-se levar pela espuma dos dias na companhia do seu cão numa praia da Bahia. Quando recebeu o diagnóstico de Demência Fronto Temporal (DFT), chegou a pensar em recorrer à morte assistida, como o fez recentemente o poeta Antônio Cícero. “Não tenho mais o que fazer aqui”, falou. Sua mulher, a arquiteta Beatriz Goulart, o demoveu da ideia. Tudo começou quando ele não conseguia mais ler os jornais e esquecia fatos importantes. Aventou-se a possibilidade de Alzheimer, mas depois se confirmou a demência. Com um relacionamento de quase vinte anos em casas separadas, Maurício propôs a Bia morarem juntos. “Estou esquecendo todas as coisas...” Já são sete anos de luta e o casal tem vivido os últimos tempos no sul da Bahia, na placidez de Trancoso. Um pouco dessa história é contado no documentário da Globoplay Kubrusly – Mistério sempre há de pintar por aí.

Mesmo sem ter o physique du rôle, Kubrusly foi o apresentador de TV mais popular do país, do qual revelou facetas pitorescas e desconhecidas no quadro Me Leva, Brasil, ao longo de 17 anos em mais de 300 programas do Fantástico.


O que poucos sabem: antes disso, Maurício Kubrusly, um carioca que migrou para São Paulo, foi o bem sucedido editor da Som Três, referência entre as revistas sobre música no país. O trabalho editorial em Manchete não me impediu de engrenar uma parceria profícua com Kubrusly, que iria muito além de meras resenhas de discos. Escrevi a seu pedido uma História do Rock em fascículos encartados na revista, depois editados num volume único de 200 páginas. E cinco livretos de 13x10cm e 35 páginas cada sobre aspectos do jazz – encartados na Som Três com anúncio do patrocinador na 3ª e 4ª capas (o jornalismo do Kubrusly passava um bolão para a publicidade esperta da Editora Três): Mestres do jazz, O piano no jazz, A estória do blues, O trompete no jazz e  O saxofone no jazz.









Da minha parte, reciclei o material descartável da revista para o formato mais perene do livro: A história do rock gerou dois volumes da série Tudo É História, da Brasiliense:  Rock: de Elvis à beatlemania [1954-1966] e Rock: da utopia à incerteza [1967-1984], ambos publicados em 1985; e Rock: do sonho ao pesadelo, da L&PM (1984). Já os livrinhos de jazz deram Jazz: uma história em quatro tempos (L&PM, 1985) e Blues: da lama à fama (Editora 34, 1995) – foram cinco volumes ao todo.

Todos os homens são mortais e o Kubrusly já recebeu o seu bilhete azul. Mas as imagens recentes de filmes e reportagens o mostram se divertindo muito, quase em estado de graça. Eu diria que, para ele, a Demência está sendo uma Sala VIP do Céu.


terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Pré-memórias da redação: Fazendo cinema na Curitiba de 1962 • Por Roberto Muggiati

Tive uma participação curiosa na filmagem de As moradas no primeiro semestre de 1962. Jornalista curitibano desde 1954 na Gazeta do Povo, passei uma temporada em Paris entre outubro de 1960 e fevereiro de 1962 como bolsista do governo francês estudando no Centre de Formation des Journalistes. De volta a Curitiba, trabalhei na Secretaria (ou Departamento) de Cultura do governo Ney Braga, sob a direção de Ênio Marques Ferreira, até o início de agosto de 1962, quando parti para uma temporada de três anos em Londres (até junho de 1965) contratado para trabalhar como Programme Assistant no Serviço Brasileiro da rádio BBC. Conheci Sylvio Back por volta de 1956-57, éramos colegas de imprensa, ele trabalhava no Diário do Paraná, onde editava um suplemento cultural chamado “Letras & Artes”, do qual eu era assíduo colaborador. O cinema era um tema importante, eu diria até dominante no suplemento. De volta a Curitiba em 1962, reatei minha amizade com o Sylvio. Encontrei-o em seu primeiro casamento e trabalhando na redação local da Última Hora, um arrojado projeto de Samuel Wainer com a edição produzida em Curitiba, impressa em São Paulo e distribuída diariamente em tempo hábil nas bancas de Curitiba. (O editor da UH paranaense era o paulista Ary de Carvalho, que elevou a venda do jornal de 6000 para 23000 exemplares diários. Depois ele fundou o jornal Zero Hora em Porto Alegre e se tornaria proprietário de O Dia do Rio de Janeiro.) 

Solteiro, eu morava em casa de meus pais, à Rua Carlos de Carvalho esquina com Francisco Rocha, e rodava toda noite pela Curitiba boêmia no carro da família, um DKW, carro popular fabricado no Brasil entre 1958 e 1967 sob licença da fábrica alemã do mesmo nome.

Senti uma diferença notável entre a Curitiba que deixei em outubro de 1960 e aquela que reencontrei em fevereiro de 1962, com a radicalização política do confronto entre direita e esquerda, que acabaria levando ao golpe militar de 1964. Sylvio Back – mesmo ganhando a vida como jornalista – começava a dedicar mais horas do seu tempo ao sonho que faria dele um dos cineastas mais profícuos e polêmicos do país. Naqueles primeiros meses de 1962 iniciou a filmagem, com uma câmera na mão e muitas ideias na cabeça, do documentário As moradas, focalizando as primeiras favelas que apareciam na periferia da cidade. À falta de equipamento adequado para efetuar travelings, encontramos uma utilidade para o DKW de meus pais.

Eu ao volante e o Sylvio empunhando a câmera debruçado perigosamente sobre a janela traseira, fazíamos pequenos takes  de filmagem, percorrendo distâncias de cinco a dez metros. Orgulho-me muito dessa participação – ainda que tosca e improvisada – no filme inaugural da bela carreira do amigo Sylvio Back.

Infelizmente, passados 62 anos, ainda não vi o produto final. Não tive acesso a um DVD de As moradas e – por inadequação técnica ou humana – nunca consegui abrir um link que me permitisse ver o filme. Mas espero um dia vê-lo e resgatar através de suas imagens o ar fresco das manhãs outonais daquela Curitiba perdida.

Escrevi o texto acima em resposta a um e-mail de Rosane Kaminski, pesquisadora da Universidade Federal do Paraná, especializada na obra cinematográfica de Sylvio Back. Ela já publicou dois livros sobre os longas-metragens que ele fez quando ainda morava no Paraná e escreve atualmente sobre o primeiro filme dele, As moradas, lançado em 1964. No final da tarde quente do primeiro domingo de dezembro, abri mão não do lazer – o descanso do escritor é escrever e estou mergulhado numa matéria interminável para a revista Piauí – e concentrei minha memória naqueles seis meses ensanduichados entre dois anos de Paris e três anos de Londres – um período perdido, ma non troppo, em Curitiba, que na minha autobiografia intitulei Seis meses num DKW. Pouco antes da meia-noite, Rosane me respondeu, “exultante” com o depoimento, e presenteou-me uma cópia de As moradas digitalizada pela Cinemateca Brasileira.  Viajei no tempo ao longo daqueles dez minutos de imagens desbotadas, sentindo-me às vezes ao volante do DKW. A trilha minimalista, com os estudos para violão de Villa-Lobos tocados por Turíbio Santos – lembrando incrivelmente a cítara do húngaro Anton Karas em O terceiro homem – conferem dramaticidade ao texto despojado, isento de qualquer ilusão (“Hoje só há liberdade para morrer. Os homens nem mais soltam grunhidos perturbadores.   Toda essa longa viagem, no entanto, promete uma chegada, pois os homens se revezam e não desistem”.)

http://www.bcc.org.br/filmes/880756

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Atentados simbólicos, ou, A vida imita a arte • Por Roberto Muggiati




• Em 1907, Joseph Conrad publicou O agente secreto, romance em que um grupo anarquista pratica um atentado contra o Observatório de Greenwich, em Londres – marco zero do fuso horário e símbolo supremo do Tempo e do “Império em que o sol nunca se punha”. A história se passa em 1886 e o agente encarregado do ato, Verloc – proprietário de uma lojinha de bricabraque e material pornográfico – acovarda-se e repassa a tarefa para seu cunhado Stevie, jovem irmão de sua mulher. Retardado mental, Stevie tropeça antes de chegar ao objetivo e cai sobre o artefato, que explode, destroçando seu corpo. Em vingança, sua irmã, Winnie, mata o marido com uma faca de cozinha. 
 

Em 1936, Alfred Hitchcock filmou o romance de Conrad com o título de Sabotage (no Brasil com o título lusitano de O marido era o culpado; em Portugal o título foi À 1 e 45). O Verloc de Hitch é, sugestivamente, dono de uma sala de cinema e os explosivos são rolos de filme. Em 1996, o britânico Christopher Hampton fez a sua versão, O agente secreto, com um elenco estelar: Bob Hoskins, Patricia Arquette, Robin Williams, Gérard Dépardieu e Christian Bale. Além disso, o livro de Conrad teve várias adaptações para o rádio e a TV e inspirou nada menos do que três óperas.

O agente secreto era o livro de cabeceira de Ted Kaczynski, o Unamomber, que matou três pessoas e feriu 23, entre 1978 e 1995, enviando cartas-bomba para pessoas que, segundo ele, estavam promovendo avanços tecnológicos que destruíam o meio ambiente.

Nas duas semanas que se seguiram aos atentados de 11 de setembro de 2001 em Nova York, foi uma das três obras literárias mais citadas pela mídia norte-americana.


• Em Leviatã, romance publicado em 1992, Paul Auster narra a história de um intelectual nova-iorquino que um dia larga tudo e, intitulando-se “Fantasma da Liberdade”, sai pelos Estados Unidos explodindo réplicas da Estátua da Liberdade. Tempos depois, numa remota beira de estrada, enquanto fabricava mais uma bomba artesanal, ele morre – ou se mata – numa explosão. A história de Benjamin] Sachs é contada pelo melhor amigo, Peter Aron. Conheceram-se num bar do Greenwich Village em 1975, escritores iniciantes. Pete resume o martírio do amigo:

“Em 15 anos, Sachs viajou de uma extremidade de si mesmo à outra e, quando chegou àquele último lugar, duvido que soubesse mais quem era. Tanta distância tinha sido percorrida àquela altura que não lhe seria possível lembrar de onde havia começado”.

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Eu choro por ti, Huelva • Por Roberto Muggiati

Huelva. Foto Booking.com

Em outubro de 1960, antes de chegar a Paris para a bolsa de estudos, passei uma semana em Portugal e Espanha. Não era só turismo, eu tinha uma missão específica a cumprir: comprar em Sevilha uma mantilha para o casamento de minha irmã Regina. Depois de uns bordejos por Lisboa – e de uma corrida de touros em Santarém – parti para a Espanha. Tomei uma barca até a gare do outro lado do Tejo, onde embarquei num comboio (trem em bom lusitanês) para a fronteira com a Andaluzia. Lá trocamos o trem por um ônibus e sua primeira parada – para esticarmos as pernas e comer um sanduiche – foi na cidade Huelva, com população de menos de cem mil habitantes, caberiam todos no Maracanã. Era por volta das dez da noite e a praça principal, com uma iluminação exuberante que competia com a luz do dia, vibrava numa feliz celebração da vida. Huelva, minha primeira cidade espanhola, foi para mim, uma verdadeira epifania. Com imensa tristeza, vi agora na TV que ela figurava entre as cidades mais atingidas pelo desastre das chuvas. Uma desgraça a mais no noticiário nosso de cada dia e – para mim – com um tom particular de tragédia. 


sábado, 2 de novembro de 2024

Memórias da redação: o craque do fraque e o grito do rito • Por Roberto Muggiati


Arthur Moreira Lima (*) e o pianinho. Reprodução. Foto Lena Muggiati

Tivemos certa vez um entrevero, Artur Moreira Lima e a revista Manchete, representada por mim, seu editor. Em 1983, ele estava em evidência por sua campanha para eliminar as barreiras entre popular e erudito levando a música até os mais recônditos rincões do país no projeto Piano na Estrada, com palco e pianos sobre um caminhão. Combinamos que Renato Sérgio faria com ele uma de suas grandes entrevistas-perfis, com direito a não menos do que cinco páginas e uma foto de abertura de gala em página dupla. Moreira Lima apareceria de casaca negra, a toga do seu ofício sacramentada pela temporada no Conservatório Tchaikovsky em Moscou. Todo editor de Manchete tinha de ser também um produtor fotográfico. Achei que umas pitadas de cor contrabalançariam o excesso de preto. Sugeri à fotógrafa Lena Muggiati que levasse um desses pianinhos de brinquedo multicoloridos e pedisse a Moreira Lima que simulasse tocar nele. Uma piada visual daquelas que faziam a fama da revista, mas o rei Artur, apegado ao rito das salas de concerto, reagiu com um grito: “Não!”

Renato Sérgio chamou o VAR e ligou para mim. 

             – Muggiati, ele não quer fazer a foto com o pianinho.

–  Diga a ele que sem foto não tem matéria – fui peremptório.

O pianista parou para pensar e, em questão de segundos, mostrou toda a sua – para usar a palavra do momento, não aguento mais – resiliência. Afinal, cinco páginas da Manchete não é coisa de se jogar fora. 

A matéria foi um sucesso. Entre mortos e feridos, salvaram-se todos.

(*) Arthur Moreira Lima morreu aos 84 anos, em Florianópolis, no dia 30/10/2024

  

domingo, 29 de setembro de 2024

Quando Beirute era o sanduíche da minha juventude... • Por Roberto Muggiati

 * Armênia, Guernica, Auschwitz, Hiroxima, Ruanda – a geografia é manchada de sangue pela insensatez da guerra. Na minha memória afetiva, nas deambulações juvenis pela noite curitibana – em pés-sujos como o Triângulo e o Buraco do Tatu e confeitarias como a Cometa, a Guairacá e a Iguaçu – Beirute era o nome do delicioso sanduíche feito com pão sírio, queijo muçarela, zatar, rosbife, tomate e alface. Seu concorrente era o Bauru, até aqui ileso, apesar de rondado pelos incêndios florestais que vêm assolando as terras paulistas...

*Segundo o portal g1, um incêndio florestal foi registrado na noite de domingo,  8 de setembro de 2024, na Reserva Bela Nações, em Bauru (SP). De acordo com a Defesa Civil, o início do fogo foi por volta das 19h30 na área de preservação próxima ao bairro Núcleo Habitacional Presidente Geisel e até as 23h as chamas já haviam sido controladas. Ainda não foi possível calcular a área incendiada e a Defesa Civil acredita que o incêndio tenha sido criminoso.

terça-feira, 20 de agosto de 2024

R.I.P. Ripley, primeiro e único • Por Roberto Muggiati

 


Alain Delon (*) foi o primeiro e o melhor intérprete de Tom Ripley, o personagem criado pela romancista Patricia Highsmith. Em Plein Soleil/O sol por testemunha (1960), dirigido por René Clement, ele encarna à perfeição o cativante e amoral protagonista do filme. Resumindo a história: Tom, que vive à beira da indigência, é contratado por um capitão de indústria milionário para resgatar seu filho (ex-colega de universidade de Tom) da dissipação na dolce vita europeia e trazê-lo de volta para os Estados Unidos a fim de assumir os negócios do pai. A missão fracassa de saída, porque Tom adere ao estilo de vida de Philippe Greenleaf (Maurice Ronet) e desfruta das benesses do seu dinheiro, mas é submetido a toda uma série de humilhações pelo ricaço cheio de caprichos. Quando sente que o entediado Philippe vai se descartar dele, Tom vira o jogo. Num cruzeiro em que os dois estão a sós num iate, mata Philippe com uma pancada de remo e joga o corpo ao mar. Tom assume a identidade do morto, aprende a falsificar sua assinatura e não só se apodera do seu dinheiro como forja um testamento indicando a si mesmo como herdeiro da fortuna dos Greenleaf. O desaparecimento de Philippe é dado como um suicídio e o “talentoso” Sr. Ripley segue em frente, abonado e feliz, em outros quatro romances do que ficou conhecido como a “Riplíada” de Patrícia Highsmith.

René Clement exerce uma cinematografia magistral ao longo dos 135 minutos do filme (rodado em cenários italianos que vão de Roma até Nápoles e a costa amalfitana. Só comete um pecado capital ao distorcer o enredo de Patricia Highsmith num final com a mensagem moralista de “o crime não compensa”: Ripley/Delon sorve um drinque na praia enquanto o iate é içado para a manutenção outonal de praxe. Quando o barco sai totalmente da água, pode-se ver o corpo de Philippe enredado pelas amarras. A polícia se aproxima. Talvez Clement tenha sido forçado pelos produtores ou pela censura. Isso não impediu outros diretores de ressuscitarem o fascinante personagem. Ripley’s Game deu O amigo americano (1977), de Wim Wenders, com Dennis Hopper; e O retorno do talentoso Ripley (2002), de Liliana Cavani, com John Malkovich. Anthony Minghela dirigiu o remake de O sol por testemunha em O talentoso Sr. Ripley (1999), com Matt Damon, um Ripley que clona Chet Baker cantando My Funny Valentine. E Barry Pepper faz o protagonista na versão de Ripley Under Ground/Ripley no limite (2005), dirigido por Roger Spottiswood. Mas nenhum deles chegou perto do talentoso Monsieur Delon, que tinha não só o physique du rôle de Tom Ripley, mas também o seu esprit de corps.

* Alain Delon (1936-2024) morreu aos 88 anos, no último dia 18, em Douchy-Montcorbon, na França, de causa não revelada.

quinta-feira, 25 de julho de 2024

Memórias Pré-Manchete • O SENA É UMA FESTA: A temporada que vivi às margens nada plácidas do rio parisiense • Por Roberto Muggiati

           

Foto de Cartier-Bresson na capa do LP de Bill Evans  [Reprodução]

A escolha original e ousada de abrir as Olimpíadas fora de um estádio, em barcaças sobre as águas do Sena, me trouxe de volta as memórias do ano vibrante que vivi nas proximidades do célebre rio. Cheguei a Paris uma semana depois de completar vinte e três anos. Contraparodiando a frase célebre de Paul Nizan, “não deixarei ninguém dizer que não é a idade mais bela da vida”. Desembarquei às oito horas da manhã da sexta-feira 14 de outubro de 1960 na Gare d’Austerlitz depois de vinte horas no trem de Madri. Com minhas duas malas de Curitiba sentei-me no café de calçada da estação, debruçada sobre as águas do Sena. Devorei um croissant com uma tigela de café-com-leite folheando Le Figaro. Naquela tarde haveria um concerto com o trio do pianista Bud Powell e o quarteto do saxofonista Lucky Thompson em memória do contrabaixista Oscar Pettiford, morto recentemente. Peguei um táxi para a Casa do Brasil, na Cité Universitaire. Joguei as malas sobre a cama e me mandei para o Théâtre des Champs Élysées. Não quis arriscar o metrô, um táxi era mais seguro – comecei a desfolhar precocemente o talão de travelers cheques, mas valia a pena. O teatro, que em 1913 fora o palco da tumultuada estreia do modernismo (A Sagração da Primavera pelos Ballets Russes de Nijinsky e Diaghilev), estava metade cheio, ou metade vazio, o que garantia o silêncio necessário para fruir as delicadas filigranas do piano de Bud Powell, que eu veria outras vezes em sua “residência” no Blue Note.

Lembro bem as águas do Sena quando – estudando jornalismo com uma bolsa do governo francês – tive a sorte rara de morar no pequeno City Hôtel, na Île de la Cité, ou seja, no centro da foto perfeita de Henri Cartier-Bresson, o mestre do clic zen, daqueles flagrantes roubados em pleno movimento, numa pirueta visual de que só sua cabeça, seu olho e seus dedos eram capazes. Em 1951, excepcionalmente, ele fez uma foto em que o ser humano era completamente anulado pela paisagem: uma vista da Île de la Cité, tomada do Pont des Arts, uma passarela para pedestres, de notoriedade recente –ficou ameaçada de cair por causa do peso dos cadeados de namorados atrelados em suas muretas. A foto é uma obra-prima da composição, céu e rio cortados horizontalmente pelo Pont Neuf e, no centro exato, a ponta da ilha se projeta como a proa de um navio. A riqueza de tonalidades cinzentas é fabulosa. Cartier-Bresson fez cópias da imagem como se fossem tiragens de uma gravura, emoldurando-as com um fio e assinando cada uma. Segundo ele, as cópias foram feitas em “couleur de Loire”, um tom que foi rebatizado “cinza Cartier-Bresson”. Concentrando-se na paisagem e omitindo daquele universo seus costumeiros personagens vivos e saltitantes, Bresson reduz o ser humano a pequenos pontos negros perdidos naquela massa geométrica cinzenta, um comentário sutil sobre a total inutilidade do indivíduo. A foto ilustrou a capa de um álbum do pianista Bill Evans gravado em Paris, a capital mundial afetiva do jazz.

Amarrando o sapato debaixo do chorão na ponta da ilha,
o Pont Neuf ao fundo [Arquivo pessoal]

Lembro as águas do Sena quando atravessava toda noite o Pont Neuf para me refugiar no aconchego do hotelzinho na Place Dauphine, de formato triangular, que um jornalista irreverente chamou de “a Vagina de Paris”. Na Place de La Concorde, “o Umbigo de Paris”, os aristocratas eram guilhotinados pela Revolução Francesa. E o romancista Émile Zola batizou “o Ventre de Paris” o mercado de Les Halles. De fevereiro a julho de 1961 eu deixava toda noite o 29 place Dauphine e caminhava até o 29 rue du Louvre – onde ficava o Centre de Formation des Journalistes – atravessando a imensidão dos Halles, com seus pavilhões de ferro abarrotados de frutas, legumes, hortaliças, carnes e peixes, orgia visual de uma cornucópia gargantuesca. Uma noite passava pela alameda das carcaças de bois sanguinolentas que pendiam de ganchos; outra, flanava pelos jardins de alfaces de todas as formas e cores; na seguinte me esgueirava pelos quiosques acres e úmidos de frutos do mar, peixes de todas as texturas, buquês de polvos com suas ventosas, ostras, mexilhões e vieiras aninhados em suas conchas. E ali se servia também nas madrugadas a melhor sopa de cebola do mundo, a do Pied de Cochon.


Trecho do romance Nadja que fala do City Hôtel e foto da praça [Reprodução]

O hotel ficava no gargalo da praça, que desembocava no Pont Neuf, na ponta da ilha, onde as águas do rio se bifurcavam. Só anos depois, ao ler Nadja, o romance revolucionário de 1928 do surrealista André Breton – que entremeia páginas de texto com páginas de fotos – fiquei sabendo da ligação de Breton com o City Hôtel:

“Esta Place Dauphine é um dos lugares mais profundamente retirados que conheço, um dos piores terrenos baldios que existem em Paris. Toda vez que estive lá, senti abandonar-me pouco a pouco o desejo de ir para outro lugar, precisei argumentar comigo mesmo para me livrar de certas amarras muito doces, agradáveis, insistentes e, no fundo, destruidoras. Além do mais, morei algum tempo num hotel nesta praça, “City Hôtel”, onde as idas e vindas a toda hora, para quem não se satisfaz com soluções simplistas, são suspeitas.”

Mon cher André, ficar sabendo que, 33 anos depois, morei no quartinho da mansarda do City Hôtel, com vista para o Louvre, dormindo as poucas horas que dormia no mesmo colchão em que você dormiu, me traz uma sensação muito forte de pertencer, de uma forma física, ao que de melhor a cultura do século 20 ofereceu. Só me resta arrematar com a frase final e definitiva de Nadja:

La beauté sera CONVULSIVE ou ne sera pas. (A beleza será CONVULSIVA ou não será nada.)

Lembro as águas do Sena – antes sequer de sonhar em morar na ilha – em minha primeira incursão, com amigos da Cité Universitaire, numa noite fria de janeiro na calçada que margeia o rio – Gene Kelly dançou ali com Leslie Caron em Sinfonia de Paris – e de repente uma cena bizarra nos arranca do nosso enlevo: uma mulher com vestido da belle époque se atira no rio do alto da ponte ao lado da catedral de Notre Dame. Só um ano depois, num cinema de São Paulo, fiquei sabendo que era uma dublê de Jeanne Moreau na filmagem de Jules e Jim.


Com Helena Costa nos buquinistas do Sena [Arquivo pessoal]

Lembro do Sena nos primeiros dias de fevereiro, morando já no City Hôtel, flanando pelos cais e vasculhando os buquinistas com Helena Costa, minha colega da Maison du Brésil, “máquina de morar” projetada por seu pai, Lúcio Costa, em parceria com Le Corbusier – Helena elegante e severa com sua capa de grife cinzenta. Parecia que o Brasil tinha se mudado para Paris, eu via sempre as meninas Kubitschek, Márcia e Maria Estela, nos concertos de jazz do Olympia. O país já desgovernado a partir de Brasília, depois do tresloucado gesto de Jânio, marcharia inexoravelmente para o desastre.

No início de fevereiro, de temperaturas historicamente amenas, parisienses acorriam para nadar nas águas do rio.

Lembro do Sena no início da primavera lambendo os galhos dos salgueiros chorões no Square du Vert-Galant, onde eu sentava num banco de madeira para ler os novos lançamentos dos autores beat da City Lights Bookshop de San Francisco, comprados ali perto, também às margens do Sena, diante da majestosa rosácea da Notre Dame, na livraria Le Mistral , hoje Shakespeare and Company . (É no Vert Galant que se passa o conto de Júlio Cortázar Las babas del diablo, inspiração do filme Blow-Up, que Antonioni ambientou na Swinging London. Bolsista em Paris em 1951, Cortázar rompeu com a ditadura argentina e ficou na França até morrer, em 1984.)

Lembro as águas do Sena, os beats estavam em Paris, num hotel decrépito na viela medieval Gît-le-Coeur, a poucos passos do rio. A viúva Rachou não tinha sequer um nome para sua espelunca, que virou Beat Hotel, sugestão do poeta Gregory Corso. William Burroughs ficava no quarto, afagando o gato e se drogando. Allen Ginsberg morava com o companheiro Peter Orlovsky, eu o abordei um dia – todo de preto, a gola da camiseta branca sobressalente lhe dava um ar de clérigo – esquivou-se e sumiu correndo.

Bombom Campos Malle no seu apartamento em Paris, anos 70 [Arquivo pessoal]

Lembro as águas do Sena naquele abril, eu tinha ouvido Thelonious Monk no Olympia com Bombom, Maria de Lourdes Campos. Lenda viva da côterie brasileira em Paris, Bombom é retratada por Danuza Leão na sua autobiografia Quase tudo: “Muito inteligente, Bombom entendeu logo que, sendo brasileira e baiana, para ser chique em Paris devia se vestir como uma inglesa e assim fez, até o fim da vida. E tinha os seios lindos, tão lindos que volta e meia, num restaurante, numa loja ou numa boate, sempre tinha alguém que dizia: ‘Bombom, mostra os peitos’. Com a maior tranquilidade ela levantava o suéter, mostrava, e a conversa continuava como se nada tivesse havido. Nesse período ela já namorava Bernard Malle, irmão de Louis. O namoro não ia nem para a frente nem para trás e uma noite eles brigaram feio. Bombom pegou todos os livros de Bernard – que era colecionador de livros antigos – jogou na rua e fez uma fogueira (e dizem que dançou nua em volta dela, em pleno inverno). No dia seguinte marcaram a data do casamento e ficaram juntos por mais de trinta anos.” 

A verdade do affaire Bombom-Bernard eu conheci bem mais de perto, na carne: Bombom decidiu ter um caso comigo só para enciumar o amante. Podres de rico, os Malle eram fornecedores de açúcar de beterraba do Imperador desde os tempos de Napoleão. Bombom deu o cheque-mate numa noitada comigo no New Jimmy’s, a discoteca da Régine. Bebemos o melhor champanhe e Bombom pendurou a despesa na conta de Bernard. Nunca mexa com o bolso de um francês. O plano de Bombom deu certo e ela já estava de casamento marcado com Bernard naquela tarde em que ouvimos de mãos dadas Monk tocar ao piano April in Paris, um solo genial de um minuto e quinze segundos, cada nota e cada silêncio perfeitos, a gravação sempre me reconduz àquele momento mágico. Bombom me abandonou como um traste velho sem deixar um traço, nem mesmo um pentimento do seu Chanel N° 5, e partiu para a Índia, onde o irmão trabalhava na embaixada do Brasil. Viciado naquela doce vida de sexo, vinho e jazz, vi meu mundo desabar. Bebi o dia inteiro e naquela noite caminhei até o Sena no local onde existia a Torre de Nesle, do alto da qual as devassas princesas de Borgonha – as irmãs Blanche, Marguerite e Jeanne de Navarra – mandavam jogar seus jovens amantes depois de uma noite de orgia. Desci os degraus até o rio e fiquei a mirar o reflexo do meu rosto nas águas poluídas. Fui arrancado do meu torpor pelo som de um saxofone acariciando a mais bela melodia do jazz, Round Midnight. Era Barney Wilen, meu vizinho, com as janelas abertas na noite abafada. Hipnotizado pela canção, dei meia-volta, marchei rumo ao boulevard Saint-Germain e fui repensar a vida. Sentei-me num restaurante de calçada diante de uma travessa de ostras frescas e uma taça de vinho branco gelado. O francês é sábio: não há chagrin d’amour que resista ao instinto do bon goûter e da joie de vivre. Meu projeto de suicídio foi adiado sine die com relativo sucesso. 

Lembro as águas do Sena na noite de 24 de abril, os generais de direita da Argélia articulavam um putsch para invadir Paris e tomar o poder. Voltando do lançamento do livro American Express, de Gregory Corso, encontrei todas as pontes que levavam à Île de la Cité bloqueadas por fileiras de ônibus, sucata dos anos pré-guerra, e centenas de gendarmes – com suas casquettes e pélerines antiquadas – fazendo a triagem de cada passante: “Vos papiers, s’il vous plaît?” Felizmente, naqueles tempos conturbados, eu andava sempre com o passaporte e a Carte de Séjour de bolsista, e pude dormir o sono dos justos no meu quartinho do City Hôtel.

Na noite de autógrafos do Gregory Corso conheci uma francesa de vinte anos, Jacqueline. No dia 1º de maio, passeávamos de mãos dadas pelos Champs Elysées, o feriado era conhecido também como o dia do Muguet de Mai. Era costume a namorada colocar na lapela do seu jules um buquezinho de muguet (lírio-do-vale). Jaqueline comprou um num dos quiosques que se alinhavam pela avenida e espetou na lapela da jaqueta de camurça do meu figurino existencialista. Com feromônios e testosterona a mil, seguimos em direção do palacete do embaixador Paulo Carneiro, que tinha as portas literalmente sempre abertas. Logo Jacqueline e eu nos pusemos à vontade e deitamos e rolamos nos sofás do salão rococó. 

A mulher de Paulo não quis morar em Paris quando ele foi nomeado embaixador do Brasil junto à Unesco. Vivendo assim em confortável solteirice, Paulo sabia muito bem os usos galantes que sua entourage fazia de sua casa, por isso – um perfeito gentleman – costumava chegar sempre assobiando alto para alertar os eventuais transgressores. Jacqueline e eu nos recompusemos a tempo e saudamos o dono da casa, que apenas sorriu de leve. 

Maria Lúcia Dahl [Arquivo pessoal]

Marília Carneiro [Arquivo pessoal]

Na Páscoa, os saraus du côté de chez Carneiro foram abrilhantados pela chegada das irmãs Pinto, Maria Lúcia (depois Dahl) e Marília (depois Carneiro), 20 e 23 anos. Maria Lúcia era a garota mais bonita do Rio de Janeiro e me apaixonei de cara por ela. Tinha um concorrente sério, o cineasta Joaquim Pedro de Andrade. Um trunfo a meu favor era convidar Maria Lúcia para concertos de jazz, graças a meu mágico talão de travelers. Depois de um show de Cannonbal Adderley no Olympia, Maria Lúcia e eu nos juntamos a uma turma dos saraus do embaixador no Harry’s New York Paris Bar, entre elas a Neusa Azambuja, que trabalhava na Unesco. Depois de muitas doses, tramamos uma travessura de repercussão internacional: sequestrar o monumento mais famoso de Bruxelas, o Manneken Piss, aquele anjinho que urina numa fonte. Entre umas e outras, discutíamos a estratégia da operação e as ferramentas necessárias. Neusa Azambuja tinha um carro, de Paris a Bruxelas eram três horas de estrada. Já raiava o dia quando o grupo se desfez depois que Neusa disse: “Mas eu não falei que meu carro estava na oficina?”

Caminhamos de mãos dadas às primeiras luzes daquele dia de primavera pelo Jardin des Tuileries, Joaquim Pedro e Maria Lúcia, eu e Marília, que casaria em breve com o filho do embaixador, Mário Carneiro, mas se sentia desculpada pelo noivo no outro hemisfério. 

Os três amigos no boulevard Saint-Germain: Olli Heikkinen,
Peter Jay Solomon e Roberto Muggiati [Arquivo pessoal]

Lembro as águas do Sena quando atravessava a ponte com meus amigos do City Hôtel, o finlandês e o nova-iorquino. Olli Heikkinen era filho de um operário numa fábrica de vidros nas lonjuras do Golfo da Finlândia, perto da fronteira soviética. Foi tentar a vida em Paris, mas não deu em nada, apenas esporádicas e suadas noites como carregador nos Halles. Era sustentado por uma mulher mais velha que morava no City, me levaram uma noite para ouvir o saxofonista Jackie McLean na boate Au Chat-Qui-Pêche. Peter Jay Solomon pertencia à notória família de banqueiros de Manhattan e estagiava num banco americano em Paris. Havia ainda uma Milady agregada a estes improváveis Três Mosqueteiros, uma sueca robusta e coxuda que tinha sido dançarina do Folies Bergères, Inger Margaretha Wegge. Lembro de uma tarde no hipódromo de Longchamps, deitados na grama, minha cabeça fazendo a barriga generosa da Inger de travesseiro. E uma noite memorável no estádio do Parc des Princes vendo o Santos de Pelé arrebatar o Torneio de Paris diante de 40 mil pessoas ao vencer o Racing por 5x4.

Foto com o jornal sobre a morte de Hemingway [Arquivo pessoal]

Lembro as águas tépidas do Sena naquele domingo de verão, 2 de julho. Sentado na amurada de pedra ao lado do Pont Neuf eu fumava uma erva tibetana com Ruth Fleming, ex-amante de Olli, que tinha voltado para a Finlândia. Na casa dos trinta, negra, professora primária em Nova York, cultora dos beats, Ruth era abusada. Não hesitou em abordar o ator Farley Granger no intervalo de uma peça e assim conversei com um de meus atores favoritos, o mocinho do Pacto Sinistro de Hitchcock. Só Ruth para descolar um baseado ungido por um lama do Tibet. Com a mente esvaziada, tudo zen, contemplávamos o sol que mergulhava em câmera lenta no rio. Só muito tempo depois nos demos conta de que estávamos imersos na mais absoluta escuridão. Compartilhamos sonhos tibetanos no hotel de Ruth, o Scandinavia, com sua temática medieval de elmos, armaduras, paredes caiadas e vigas expostas. De manhã, ao pisar na calçada, fui agredido pelas manchetes dos jornais: HEMINGWAY DEAD. Enquanto fumávamos nosso cigarro exótico às margens do Sena, na distante Ketchum, em Idaho, estourava os miolos com uma espingarda de cano duplo o escritor que mais amara e cantara a cidade de Paris. Busquei de alguma forma registrar o momento. Com um exemplar do Daily Mail improvisei uma pré-selfie na cabine automática de fotos de identidade.  As imagens mostram exatamente o que eu sentia naquela manhã da primeira segunda-feira de julho de 1961. 

Em meus seis meses de City Hôtel, por contingências monetárias, ocupei vários quartos. O melhor foi uma mansarda no quinto andar com vista para o Sena e o Museu do Louvre. Na última etapa, acabei relegado a um cubículo de 4×4 metros, sem janelas, com um piso de lajotas de argila hexagonais. (Ironicamente, a França é conhecida como Hexágono, pela forma do seu mapa.) Numa tarde de verão, dublê de cinéfilo e jazzófilo, decidi ir a um cineminha do Boul’Mich’ assistir ao filme do fotógrafo da revista Life Bert Stern, Jazz on a Summer’s Day, a mãe de todos os rockumentários sobre os festivais do final dos anos 60, como Monterey Pop, Woodstock e Altamont. Filmado durante o Festival de Jazz de Newport de 1958, entrelaçava as apresentações musicais com detalhes pitorescos da plateia e cenas do cotidiano da pacata ilha, que protagonizava nos dias do grande evento. Antes de sair do quarto, dei os últimos repasses na pia, onde lavava meias e cuecas com sabão em pó – uma operação de rotina que batizei de “a espuma dos dias” – mil perdões, Boris Vian, pelo uso tão banal do título de seu belo romance.

Apesar de sua sordidez, o City Hôtel mantinha no térreo um simpático Salon de Thé Le Rigaudon, no lugar do que deveria ser a portaria. Era cuidado por três vieilles dames, assistidas por Monsieur Marcel, seu pau-para-toda-obra, em todos os sentidos.  Acolheram-me com chacotas. Tinha acontecido o pior: eu deixara a torneira da pia aberta. O chão do meu pequeno bunker alagou e a água infiltrou para o quarto inferior, caindo nas malas de uma turista sobre um armário. O estrago só não foi pior porque a inquilina estava no quarto.

Alors, mon jeune homme, on fabrique du papier mâché dans sa chambre? – perguntou uma das garces num tom de deboche. A alusão era à pilha de jornais entulhados num canto do quartinho e que ficaram totalmente encharcados. Explico: meu pai, apesar do orgulho de ter um filho bolsista em Paris, receava que eu perdesse as “raízes” curitibanas, e me abastecia regularmente pelo correio com exemplares da Gazeta do Povo, o jornal onde eu trabalhara durante seis anos, antes de embarcar para Paris. Aqueles tentáculos bairristas me perseguiriam nos dois anos de residência na França e nos três anos seguintes em que trabalhei no Serviço Brasileiro da BBC de Londres.

Esqueci rápido meu vexame, cooptando a frase majestática de Luís 15, “Après moi le déluge!” (“Depois de mim o dilúvio!”). Eu tinha pela frente as férias de verão, o Grand Tour nórdico, Holanda, Escandinávia e Finlândia do sol-da-meia-noite (onde vivi um domingo inesquecível na ilha de Kaunisaari) e o Grand Tour mediterrâneo, o sul da França e a Itália de cabo a rabo, incluindo a Sicília. 

Grafito numa ponte do Sena: “Aqui afogamos os argelinos” [Reprodução]

Lembro das águas do Sena ensanguentadas pelo Massacre de 17 de Outubro de 1961, quando mais de 200 operários argelinos morreram afogados. Desarmados, eles marchavam da periferia para o centro de Paris em protesto contra o toque de recolher que só atingia “franceses muçulmanos da Argélia”. Os policiais surraram os manifestantes e os jogaram agonizantes nas águas gélidas do rio. Numa das pontes os assassinos rabiscaram acintosamente ICI ON NOIE LES ALGÉRIENS. Naquele dia eu estava a quase mil quilômetros de Paris, namorando uma italianinha na saída de um curso de inglês diante do túmulo de Dante Alighieri em Ravena, o poeta morreu e foi enterrado no exílio. Só fiquei sabendo da chacina dos argelinos quando voltei a Paris em novembro. O terrorismo de direita prosseguia com violência, mas não conseguiu impedir a independência da Argélia, proclamada em 5 de julho de 1962. 

Meu último momento mágico em Paris foi em 19 de novembro de 1961, um sábado, quando assisti ao quarteto de John Coltrane, acrescido do saxofonista, clarinetista e flautista Eric Dolphy, na sua primeira turnê europeia. Era a nova fase de Coltrane, experimentando a sonoridade diferente do sax soprano e improvisando por mais de meia hora sobre o tema My Favorite Things, do musical da Broadway The Sound of Music. 

Tive a sorte naquela noite de presenciar um espetáculo extramusical no intervalo dos shows. Numa épicerie ao lado do Olympia, num smoking bem cortado, Coltrane exercitava os dedos e os dentes num ovo duro. Do lado de fora, uma pequena multidão se comprimia para assistir ao espetáculo – os fãs mais açodados com o nariz colado à vitrina. Flagrar o ídolo numa atividade banal é um privilégio raro. Guardo com carinho a lembrança daquela noite, principalmente porque os dois gênios se foram cedo: Dolphy em 1964, aos 36 anos; Coltrane em 1967, aos 40.

Ao voltar, encontrei o horizonte brasileiro sobrecarregado com as nuvens do golpe militar iminente. Ainda guardava, intensas em mim, as memórias de Paris e daqueles tempos tumultuados, mas felizes, em que as águas do Sena assistiam a tudo impassíveis e soberanas. Ninguém descreveu o rio lendário melhor do que o poeta Jacques Prévert, nascido em Neuilly-sur-Seine: “La Seine n’a pas de soucis/Elle se la coule douce/Le jour comme la nuit/Et s’en va vers le Havre/Et s’en va vers la mer/En passant comme un rêve/Au milieu des mystères/Des misères de Paris". Em tradução literal: “O Sena não tem apreensões/ Ele corre docemente/De dia e de noite/E segue rumo ao Havre/E segue rumo ao mar/Passando como um sonho/Em meio aos mistérios/Às misérias de Paris.”