quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

A rivederlo, paesano • Por Roberto Muggiati

Foto Twitter City Lights Books

Se Jack Keroauc, Allen Ginsberg e William Burroughs são os Três Mosqueteiros da geração beat, Lawrence Ferlinghetti é o seu D’Artagnan. Nascido há 101 anos em Yonkers, Nova York, filho de imigrantes ítalo-portugueses, Ferlinghetti mudou-se em 1955 para São Francisco, onde morreu ontem, atraído pela atmosfera vibrante da cidade, que foi a capital cultural dos beats. Lá ele fundou com Peter D. Martin em 1953 a primeira livraria só de paperbacks, iniciando um movimento de democratização da cultura. 

Ferlinghetti  concebia a livraria como um “ponto de encontro literário”, onde escritores e leitores se congregassem para trocar ideias sobre poesia, ficção, política e arte. Dois anos depois, ele iniciou a editora City Lights Publishers, com o objetivo de provocar uma “fermentação dissidente internacional”. 

Seu lançamento inaugural foi o primeiro volume da série City Lights Pocket Poets, que abriu novos caminhos para a poesia norte-american. Em 1956, publicou o revolucionário Howl, de Allen Ginsberg, que foi confiscado pelas autoridades americanas, dando início a uma histórica campanha de resistência que acabaria derrubando a censura.  Autor de um dos livros de poesia mais vendidos de todos os tempos, A Coney Island of the Mind/Um parque de diversões da cabeça, Ferlinghetti – como outros poetas beats – criou uma forma híbrida e inovadora de arte, em que os poemas eram recitados ao acompanhamento de música de jazz, e muitas vezes improvisados, como ela.


Foto Reprodução Wikipedia

PS
• Quando eu morava em Paris no início dos anos 60, tive a felicidade de comprar quase tudo da City Lights numa pequena livraria da rive gauche, defronte à Notre Dame, Le Mistral, que correspondia à imagem de livraria concebida por Ferlinghetti. No andar de cima, George Whitman – que a fundara em 1951 – hospedava de graça viajantes, a maioria mochileiros, com uma condição: todo hóspede pagaria a estadia com a leitura de um livro. George gabava-se de que, ao longo dos anos, 40 mil pessoas teriam dormido nos treze leitos de Le Mistral, que ele chamava de "uma aventura socialista disfarçada de livraria”. Em 1964, George mudou o nome de Le Mistral  para Shakespeare and Company, em homenagem à livraria da americana Sylvia Beach, que publicou o romance Ulysses de James Joyce. Na verdade, Sylvia Beach, que fechou sua livraria quando os nazistas invadiram Paris em 1940, havia doado o nome a George Whitman. Ele morreu em 2011, aos 98 anos, mas sua filha, Sylvia Beach Whitman, segue a tradição, tocando uma das livrarias mais queridas de Paris. Onde o leitor pode ter a certeza de encontrar o catálogo completo da City Lights Books. Em tempo: Ferlinghetti conheceu a incipiente livraria de George Whitman em Paris no início dos anos 50 e foi ela que o inspirou a abrir a City Lights Books em São Francisco. 

O POETA

Lawrence Ferlinghetti

Correndo risco constante

de absurdo e morte

toda vez que atua em cima

das cabeças da audiência

o poeta sobe pela rima

como um acrobata

para a corda elevada que ele inventa

e equilibrado nos olhares acesos

sobre um mar de rostos

abre em seus passos uma via

para o outro lado do dia

fazendo além de entrechats

truques variados com os pés

e gestos teatrais da pesada

tudo sem jamais tomar uma

coisa qualquer

pelo que ela possa não ser

Pois ele é o superrealista

que tem de forçosamente notar

a verdade tensa

antes de ensaiar um passo ou postura

no seu avanço pressuposto

para o poleiro ainda mais alto

onde com gravidade a Beleza

espera para dar

seu salto mortal


E ele um pequeno

homem chapliniano

que poderá ou não pegar

aquela forma eterna e bela

projetada no ar

vazio da existência 

(Tradução: Leonardo Fróes)


2 comentários:

Maria A. Saito disse...

Muitas livrarias hoje são saudade. Que mundo as dispensa? E que saga maravilhosa a do poeta Ferlinghetti e seu tempo, sua obra, seu legado.

Larissa Oliveira disse...

Que bela história!!! Vivíssima♥