terça-feira, 17 de março de 2020

1960, na Paris do Acossado • Por Roberto Muggiati

Exclusivo para o Panis Cum Ovum 

Eu estava lá. Tinha 23 anos, quatro a menos que Michel Poiccard, um a mais que Patricia Franchini. Cheguei a Paris numa sexta-feira de outubro de 1960, as árvores queimando em tons amarelo, laranja, vermelho, ferrugem. Joguei as malas na Maison du Brésil e fui correndo a um concerto de jazz com Bud Powell.

No Acossado, Godard não faz um comentário político ou social sequer – coisa que faria obsessivamente nos filmes seguintes. Apenas uma piadinha cínica: quando quer levar Patricia para a cama, Michel alega que seria em nome da maior aproximação franco-americana, Naquele momento o Presidente Eisenhower visita Paris e Godard sacaneia o espectador com cenas do desfile captadas por entre as arvores: justo quando o carro presidencial embica na tela. uma árvore oculta a visão de Eisenhower e De Gaulle...

Na primavera de 61, outro presidente americano desfilava pelos Champs Élysées, os franceses se orgulhavam da ascendência de Jacqueline Bouvier Kennedy. Mas, um mês antes, JFK sujara sua biografia com a desastrada invasão da Baía dos Porcos em Cuba. Num café de calçada em Saint Germain, lembro a indignação do amigo Gregory Corso, o poeta beat.

Place Dauphine
Troquei a periférica Cité Universitaire pelo centro histórico de Paris, a Île de la Cité. Morava no 29, Place Dauphine – que o jornalista Jacques Lanzmann chamou “A Vagina de Paris” – numa mansarda do City Hôtel, onde o “Pai do Surrealismo” André Breton se acoitou nos anos 1920. Estudava no Centre de Formation des Journalistes, no 29, rue du Louvre, ia a pé, atravessava toda noite o fabuloso mercado Les Halles, que Zola chamou “O Ventre de Paris” (completando as metáforas fisiológicas da cidade: a Place de la Concorde, exaltada por Michel Poiccard em Acossado, é “O Umbigo de Paris”, lá o cutelo da guilhotina teve seu dia de glória na Revolução Francesa. Toda vez que passava pelos Champs Élysées, comprava o New York Herald Tribune, na esperança vã de que a vendeuse fosse Patricia Franchini, sem sutiã debaixo da camiseta amarela – Michel Poiccard aponta isso, com um dedo lascivo,  no Acossado.

Um comentário:

J.A.Barros disse...

Roberto Muggisti, se tornou hoje o nosso"memorialista " do brasil. Suas histórias nos levam àqueles melhores anos de nossas vidas, em que. andar de bonde era o melhor passeio para se conhecer uma cidade. Ah, o bonde! que o europeu jamais abriu mão deles, apenas o desenhou para um designer de acordo com o mundo moderno, mas continua bonde. Ao citar velhos nomes de um passado brilhante e contestador nos faz entristecer com a falta daqueles nomes para a luta diária das sociedades humanas contra
a vaidade, o egoismo, a falta de vergonha e a aptidão para o desvio do dinheiro do povo para os seus ávidos bolsos, dos dias de hoje
Será que na humanidade nao surgirão mais nomes como aqueles citados pelo Roberto Muggiati?