domingo, 13 de março de 2016

Memórias da redação: Fatos & Fotos faz bullying com anunciante, que se queixa a Adolpho Bloch, e Cony (90 anos, amanhã) evita demissões

por José Esmeraldo Gonçalves (*)

Entre numerosas funções na Bloch, Carlos Heitor Cony foi diretor da Fatos & Fotos. Acho que nenhum outro editor nos deu tanta liberdade para escrever. Foi no começo dos anos 1980. A ditadura já dava sinais de que não se segurava nos coturnos. Depois da campanha pela anistia, o movimento pelas Diretas-Já apontava no horizonte.

A F&F não estava bem. Circulação caindo, poucos anúncios, parcos recursos. As atenções e os investimentos da Bloch já se voltavam para a TV Manchete. Cony criou uma seção chamada Sete Dias e deu espaço para que Nei Bianchi e eu escrevéssemos, em revezamento, os artigos que abriam a revista e abordavam os principais acontecimentos da semana.

Beleza. Gostamos da ideia e, nas edições seguintes, falamos bem de uns poucos, mal de muitos e incomodamos outros tantos “amigos” da Bloch.

Com Carlos Heitor Cony, na Livraria da Travessa, em 2008: lançamento
do livro 'Aconteceu na Manchete, as histórias que ninguém contou".
Foto Alex Ferro
Os artigos eram, em geral, irônicos.Toda semana alguém reclamava. Cony matava no peito e não dava bola para o adversário. Até que um dia Adolpho entra na sala com uma carta na mão.

E não era um coringa.

Senta-se à frente da mesa do Cony, me chama - eu era, então, chefe de redação -, e vai logo disparando o seu bordão: “E como é que o senhor faz isso comigo”.

Era curioso esse bordão que o Adolpho usava com frequência. Era um misto de bronca e lamento, de reclamação e de decepção.

Ele me pediu que lesse a carta em voz alta. Não podíamos rir, jamais desrespeitaríamos o Adolpho que falava sério, mas que dava vontade de rir, dava.

A carta intentava ressaltar um "drama", mas as entrelinhas passavam involuntariamente um humor quase irresistível, puro Irmãos Marx. Um empresário do setor de materiais de construção queixava-se de que a F&F o ridicularizara perante sua família e os funcionários da sua fábrica.

Logo entendi a razão da reclamação.

Com Ney Bianchi, na redação, anos 80.
O Rio, na época, em função da cotação do dólar muito favorável ao turista americano, estava cheio de gringos. E gringo remediado. Com relativamente pouco dinheiro, um americano de classe média baixa podia se dar ao luxo de adquirir um pacote turístico, passar uma semana no Rio, hospedar-se em um hotel cinco estrelas e tirar uma onda de rico em férias nos trópicos. Copacabana estava cheia desses tipos. E naquela semana, o artigo da seção Sete Dias era exatamente sobre o tal fenômeno. Sob o título "Gari em NY, Rei no Rio", a crônica  - um texto do sempre brilhante Ney Bianchi - ironizava um sujeito fictício que atrasava o pagamento da hipoteca e dava um tempo no duro ofício de recolher o lixo do Bronx em troca de uma temporada nas terras cariocas, com direito a mulatas, caipirinha, sol e samba. Até aí, tudo bem.

O problema aconteceu na hora de ilustrar a página.

Ao editar a matéria, ao lado do chefe de Arte J.A. Barros, pedi ao saudoso e querido amigo Evaldo Vasconcelos, o boa-praça secretário de redação da F&F, que buscasse no arquivo fotos de turistas típicos. Havia centenas de cartelas de plástico com cromos 6x6 que mostravam visitantes em várias épocas. A maioria, claro, não identificada.

Escolhi uma foto de um sujeito que mais turista típico não podia ser. Um cidadão cinquentão, rosto vermelho, de tênis, bermuda estampada, meias branquíssimas no meio das canelas idem, boné, sentado, solitário, em um dos bancos de cimento da orla. Só faltava estar escrito na camiseta: “Mim ser de Long Island”. Botei lá, no meio da página, com destaque, a foto que simbolizava o “gari” que reinava no Rio e comia mulatas adoidado.

Foi mal: o “gari” era um rico empresário, judeu como o Adolpho, amigo da família Bloch e ainda por cima anunciante em algumas publicações da casa. “Isso não se faz”, repetia Adolpho, enquanto que eu continuava a ler carta.

Cony, como hábil mediador, procurava controlar a situação, antes que o Adolpho pedisse cabeças ou cabeça.

O empresário, a vítima do Sete Dias, pegava pesado na reclamação. Apelava para suas origens, o sofrimento do seu povo, colocava-se como alvo de preconceito. Relatava que ao chegar à sua fábrica tivera o desprazer de ver colada a página da revista em uma parede. Sentira-se ridicularizado, humilhado, mas apesar disso não pedia retratação.

Na carta pessoal dirigida a Adolpho dizia-se tão somente decepcionado com o tratamento que a revista lhe dera.

Assumi o erro, disse-lhe que, obviamente, não havia a intenção de ridicularizar o reclamante. Para nós, o "turista" era um genérico, entre tantos outros assim arquivados.

Adolpho pegou o telefone, ligou para o arquivo e disse que, a partir daquele dia, todas as fotos, inclusive as antigas, tinham que ser identificadas. Tarefa àquela altura impossível, eram milhões de imagens.

Ninguém foi demitido.

Com o tempo, a gafe caiu no esquecimento.

(*) Texto originalmente escrito para o livro "Aconteceu na Manchete, as histórias que ninguém contou"

2 comentários:

Rose disse...

Seria o dono de um empresa de construção?

Jana disse...

Gosto das falas dele na CBN. Adoro as comparações com História e Bíblia. Tem muita cultura.