Alfredo Machado gostava de levar seus autores para almoçar no restaurante panorâmico do Russell. Em 1987, a convidada foi Doris Lessing, que ganharia o Nobel de Literatura exatos 20 anos depois. Ladeada por Roberto Muggiati, Adolpho Bloch, Eduardo Francisco Alves e o grande Alfredo. Foto Arquivo Pessoal |
Comecei a traduzir livros em 1966 para complementar o magro salário de repórter da revista Manchete. Fiz duas ou três coisas para a Seleções do Reader’s Digest e também para as Edições Bloch, contos do Ian Fleming, que bombava com o seu 007. Meu grande hit foi Sexus, o romance do Henry Miller que é uma das traduções mais vendidas no país nas últimas sete décadas. As edições Bloch compraram os direitos da trilogia A Crucificação Encarnada: Hélio Pólvora traduziu Plexus e Nexus, coube a mim o mais chamativo Sexus. Mas – acreditem se quiserem – Adolpho Bloch abriu mão desse tesouro. Como emprenhava pelo ouvido, aconselhado por um pseudointelectual de plantão, começou a berrar na redação: “Não vou publicar essa porra cheia de palavrão, que merda! ” Para os judeus, palavrão boca afora é perdoável, mas palavrão impresso preto no branco é um pecado inadmissível.
A Bloch repassou a trilogia para o oportunista Hermenegildo de Sá Cavalcante, que ficou milionário. Autointitulado Presidente da Sociedade dos Amigos de Proust no Brasil, viajou com a família inteira – as duas filhinhas com aias exclusivas – para percorrer os roteiros de Em busca do tempo perdido. Era dinheiro a rodo, principalmente porque Hermenegildo se recusava solenemente a pagar direitos autorais. Um único autor os arrancou a forceps, Jean Genet, aquela Madame Satã literária da França. Quando veio ao Brasil, acampou dentro de uma sleeping bag no suntuoso hall do edifício de Hermenegildo e foi pago imediatamente, cash.
Em 1978 iniciei uma relação promissora com a Record traduzindo o romance Holocausto, de Gerald Green, que se tornou uma série de TV de repercussão mundial (foi até capa da Manchete). Mas o trabalho como editor da revista me ocupava demais, só quando senti que o Titanic Bloch ancorado na Rua do Russell seguia inexoravelmente para o naufrágio voltei a traduzir. Comecei com um ensaio da crítica A.S. Byatt sobre seis escritoras, Imaginando personagens. Foi para o selo Civilização Brasileira, que a Record tinha incorporado ao seu plantel. Com a falência final da Bloch Editores em 2000, passei a me dedicar quase integralmente à tradução de livros. Muito requisitado, pude me dar ao luxo de traduzir preferencialmente ficção, dos melhores autores em língua inglesa. Veteranos como Hemingway e Fitzgerald; contemporâneos como Doctorow, Vonnegut, Pat Conroy; e revelações como Michael Chabon, de quem traduzi o fabuloso As incríveis aventuras de Kavalier & Clay.
E coloquei em bom português ainda quatro livros de um de meus autores favoritos, o reinventor do romance de espionagem, John LeCarré, com destaque para O jardineiro fiel, que foi filmado pelo brasileiro Fernando Meireles.
Nos 35 anos em que trabalhei na Manchete, também conheci vários escritores. Almocei com E.L. Doctorow no restaurante do 3º andar em 1975, quando lançou Nos tempos do ragtime, que seria transformado em filme por Milos Forman. Mal podia imaginar que, trinta anos depois, eu traduziria três de seus romances. O primeiro, City of God, de extrema complexidade, deu um trabalho incrível na escolha do título. O óbvio seria Cidade de Deus, alusão à obra de Santo Agostinho. Mas acabara de ser lançado o filme Cidade de Deus, sobre a notória favela carioca, baseado no romance de Paulo Lins. A diretora editorial da Record, Luciana Villas-Boas, negociou, pessoal e penosamente, o título com Doctorow – Deus, um fracasso amoroso, confesso que não me agradou. De Doctorow traduzi ainda os romances A Marcha (ambientado na Guerra Civil) e Homer & Langley – calcado na história verídica de dois irmãos que moram sozinhos num casarão da velha Nova York juntando todo tipo de tralhas, até serem encontrados mortos no meio da sujeira, um deles comido pelos ratos. Identifiquei-me com esse cenário horrendo porque morava numa casa de vila em Botafogo que abrigava todo tipo de trastes deixados por acumuladores como eu: a ex-mulher e o filho e a filha, que foram morar na Europa.
Vivi também nessa casa uma situação do tipo “a vida imita a arte” durante o ano de 2004, ao fazer para a Record a terceira tradução brasileira de A Leste do Éden, de John Steinbeck, um catatau de quase 700 páginas. Envolvi-me com uma paciente da psicanalista da casa vizinha, uma mitômana patológica que se dizia grávida de gêmeos e atribuía a paternidade a mim. A vilã da história de Steinbeck, Cathy, trai o marido, Adam, com o irmão dele, dá à luz os gêmeos Aron e Caleb (não fica claro se são filhos biológicos de Adam ou do irmão) e, sentindo sua liberdade cerceada por Adam lhe dá um tiro no ombro e foge de casa, abandonando-o com os meninos. (O livro inspirou o filme de estreia de James Dean, Vidas amargas). Sabendo que eu traduzia A leste do Éden, a mitômana Kátia vai monitorando nosso relacionamento segundo o enredo do livro. O problema é que, oito meses depois – sua barriga um tanquinho perfeito – não dá mais para sustentar a farsa. Sufocado, rompo radicalmente a relação. Kátia não se conforma e começa a assediar minha casa. Um dia chamo a PM – o 2º Batalhão ficava a uma quadra de distância – e ligo para sua mãe, que se limita a explicar: “É por isso que a colocamos em psicanálise cinco dias por semana. A Kátia é muito convincente, basta ela dar uma ordem que vai a torcida do Flamengo toda atrás...”
De 1999 até 2019 – quando a crise editorial provocada pelo calote das grandes livrarias – veio travar o meu ganha-pão, devo ter traduzido cerca de cem livros, ou mais. A grande maioria para a Record, mas também para a Ediouro, a Zahar e a Intrínseca, além das biografias do Chet Baker e do John Lennon para a Companhia das Letras. Na gestão da Maria Amélia Mello na José Olympio traduzi Pergunte ao pó e outros seis ou sete títulos de John Fante. Para o selo da cerejinha traduzi o ensaio de Henry David Thoreau Caminhando, acrescido de um perfil do autor e de um texto meu A Arte de Andar. Vendeu bem.
Em 2002 e 2003, tentei uma jogada diferente. Organizei as antologias A selva do dinheiro/Histórias clássicas do inferno econômico e A selva do amor/Contos clássicos da guerra dos sexos, com autores da minha predileção: Poe, Jack London, Conrad, Stevenson, Lawrence, Virginia Woolf, Joyce, Kafka, Proust, Henry James, Fitzgerald, Tchecov, Dostoievski, Tólstoi, entre outros. Propus abrir mão do pagamento pela tradução e me tornar o detentor dos direitos autorais, já que todos eram autores em domínio público. Não foi o best-seller que eu esperava, mas me orgulho muito destas duas “selvas”. Outro trabalho que me gratificou foi a tradução de O grande Gatsby, a partir da edição restaurada dos 75 anos. Explico: Fitzgerald escreveu o romance em meio a uma crise conjugal com Zelda e fez a revisão das provas tipográficas em meio a férias etílicas na Riviera francesa. As provas iam e vinham de navio, em meio a duras críticas do editor do livro, o exigente Maxwell Perkins. Resultado: o romance foi publicado em 1925 cheio de erros e inconsistências. Tempos depois, numa fase de rara sobriedade, o próprio Fitzgerald rabiscou correções a mão num exemplar do livro. Isso, somado ao trabalho de décadas de renomados scholars fitzgeraldianos, resultaria na edição restaurada que eu traduzi para a Record em 2003.
Um tradutor não é uma máquina. Pessoalmente, sempre me senti, nessa função, como uma espécie de estivador das palavras, carregando arduamente frase após frase e revivendo as emoções – as alegrias e os sofrimentos – do enredo e dos personagens. Foi assim, de modo marcante, com os dois últimos trabalhos. Uma Vida Pequena, de Hanya Yanagihara, conta a história de quatro amigos, centrada na figura atormentada e trágica de Jude, bebê abandonado na porta de um convento, adotado pelos padres e abusado sexualmente por eles, que se pune pelos pecados que não cometeu através da automutilação.
Já O bom pastor, de C.S. Forester – levado ao cinema por Tom Hanks no filme Greyhound: Na mira do inimigo – narra a travessia de um comboio de suprimentos da América do Norte até Liverpool durante a 2ª Guerra num Atlântico Norte infestado de submarinos alemães. O comandante do comboio de 37 navios – quatro apenas dotados de bombas de profundidade para se defender dos temíveis U-boats – é assolado sem trégua ao longo da travessia pelos submarinos inimigos, mal lhe sobra tempo para fazer as necessidades ou comer um sanduíche e beber uma xícara de café. Mestre da literatura marítima, Forester me fez sentir na pele cada momento de perigo da sua narrativa.
A alma da Record foi a figura telúrica de Alfredo Machado. Iniciou com Décio de Abreu a editora em 1942, como uma distribuidora de tiras de jornal e outros serviços de imprensa, a primeira syndicate brasileira de quadrinhos. A partir dos anos 60 começou a publicar livros, traduções de ficção estrangeira. O catálogo atual do grupo é de mais de 6 mil títulos, e reúne mais de 4000 autores, entre eles 22 ganhadores do Prêmio Nobel, como Gabriel García Márquez, Herman Hesse, Albert Camus, Pablo Neruda, Ernest Hemingway, John Steinbeck, Camilo José Cela, William Faulkner, Rudyard Kipling, Nagib Mahfuz, Eugenio Montale e Günther Grass, além de gigantes brasileiros como Graciliano Ramos (Vidas secas é o campeão de vendas), Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Fernando Sabino e Dalton Trevisan.
Alfredo orgulhava-se da sede própria, um prédio sólido plantado no meio de um grande terreno próximo à barreira do Vasco, em São Cristóvão. E do Sistema Poligráfico Cameron, um moderno equipamento de impressão capaz de produzir até 100 livros de 200 páginas por minuto. Astuto relações-públicas, Alfredo descobriu o lugar ideal para entreter seus grandes autores internacionais: o restaurante da Manchete, defronte ao cartão-postal da entrada da baía de Guanabara e do Pão de Açúcar. Adolpho Bloch dizia: “Somos um grande restaurante que, por acaso, também imprime revistas. ” Participei de alguns destes almoços, notadamente com o best seller Sidney Sheldon e a prestigiada Doris Lessing, que ganharia o Nobel de Literatura em 2007.
Corria na Manchete uma anedota típica do humor carioca de Alfredo. Numa viagem com um amigo a Roma, foram pegar as malas no hotel antes do meio-dia para não pagar outra diária. O quarto fora ocupado por duas freiras de uma cidadezinha do Wisconsin que saíram correndo para conhecer a Praça de São Pedro no Vaticano. Entre seus pertences estava uma máquina fotográfica destinada a registrar flagrantes de sua santa peregrinação. “Peraí, falou Alfredo para o amigo, ou vice-versa, vamos bater umas chapas sacanas, e arreou as calças para ter sua genitália fotografada.” E os dois ficaram a imaginar o que aconteceria quando as freirinhas fossem buscar suas fotos reveladas na lojinha da esquina do Wisconsin.
Alfredo morreu em 1991 e foi sucedido pelo filho Sérgio Machado, que fora devidamente preparado para o cargo, mas morreu prematuramente em 2016, aos 68 anos. Quem preside atualmente o grupo é sua irmã Sônia Machado Jardim, 66 anos. Ela relutou por muito tempo em entrar para o negócio da família. Formou-se em engenharia civil e seguiu seu próprio caminho. Só com a morte do pai, ouviu do irmão que não fazia sentido ela não trabalhar na Record, onde só chegaria em tempo integral a partir de 1995, depois de fazer mestrado em Administração. Com Sérgio no departamento editorial, Sônia passou a cuidar do financeiro. Além das perdas do pai e do irmão, Sônia sofreu um sequestro de 27 dias em 1997, que deixou suas marcas, mas também a fortaleceu. Ao assumir abruptamente a presidência do grupo em 2016, aos 60 anos, entregou-se totalmente ao trabalho e amadureceu na luta. Com ferramentas técnicas para a grandiosidade da tarefa, mas se permitindo também um toque de humanidade: “Um fenômeno vai além dos influencers e da redes sociais, ele só se sustenta se for sincero. É preciso que o livro tenha qualidade para o seu leitor.”