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por LENEIDE DUARTE-PLON*, de Paris (link para a RED)
Trabalho histórico, só pode ser bem sucedido sem anistia nem amnésia.
24 de Março. Mais memória, mais verdade, mais justiça. Faixa como esta – exibida por jogadores argentinos, entre eles Messi, em foto não datada, na qual eles vestem uniforme preto com o logotipo da Coca-Cola e da YPF, a companhia de petróleo argentina – nunca foi vista num campo brasileiro com jogadores brasileiros. Vale informar que a YPF foi privatizada pelo governo Menem, em 1999, para satisfazer a ganância do neoliberalismo mundial e pertence hoje a uma empresa espanhola. Alguém imagina jogadores brasileiros abrindo uma faixa semelhante no campo de futebol? 31 de março. Mais memória, mais verdade, mais justiça. Aqui, a amnésia foi cultivada, louvada e empurrada goela abaixo pelos militares. A sociedade nunca conseguiu impor uma justiça de transição que julgasse militares e civis culpados de crimes contra a humanidade: tortura e desaparecimento de opositores políticos, considerados pelo direito internacional como imprescritíveis.
Não devemos esquecer que a Comissão Nacional da Verdade, parida a forceps no governo Dilma Rousseff, foi amputada das palavras Memória e Justiça por imposição dos militares que nunca admitiram que fosse feita Justiça contra os crimes da ditadura.
Temos muito a aprender com a Argentina, que soube levar ao banco dos réus e à prisão os responsáveis pela barbárie do regime militar que lá vigorou de 1976 a 1983. Nunca esqueçamos que o general Videla morreu na prisão. No Brasil, os presidentes-ditadores morreram no conforto de suas casas ou em hospitais sem nunca ter sido julgados. Seus crimes permanecem impunes.
Itália e Alemanha: como lidar com o passado
Há dois meses, o Le Monde fez uma série de reportagens sobre o fascismo para marcar os 100 anos da Marcha sobre Roma, na qual o primeiro fascista inaugura o fascismo na Itália. O formidável trabalho de pesquisa histórica e de investigação jornalística do jornal revela um país que não virou totalmente a página do fascismo. O Le Monde qualifica a atitude dos italianos pós-guerra como um laxismo pois enterrou o fascismo sem punir os fascistas. A consequência é o governo pós-fascista de Giorgia Meloni.
Na Alemanha, o trabalho de Memória e de Justiça foi concretizado no Tribunal de Nuremberg, que julgou e puniu os nazistas por crimes contra a humanidade, num trabalho que ficou conhecido como desnazificação. Depois de Nuremberg, a História alemã, assim como as leis, garantem uma espécie de cordão sanitário contra o nazismo.
Na França, depois da guerra, a Justiça julgou e condenou todos os que colaboraram com o ocupante nazista. Épuration foi o nome que se deu a esta justiça de transição. O ensaísta e jornalista Georges Suarez – biógrafo de Pétain, de Aristide Briand e de Georges Clemenceau – casado com a tia-avó de meu marido, foi o primeiro fuzilado por ter colaborado estreitamente com os alemães. Fora inclusive à Alemanha encontrar Hitler, com outros intelectuais franceses, como diretor do jornal de extrema-direita Aujourd’hui, sob controle alemão. Georges Suarez foi julgado, condenado e fuzilado em novembro de 1944, poucos meses depois da Libertação de Paris.
Que tipo de documentos o Trump dos trópicos, como o chama a imprensa francesa, pode estar escondendo ou mesmo queimando para continuar impune e até mesmo para trazer prejuízo ao novo governo Lula?
Esperemos que os Juristas pela Democracia e outros grupos de defesa do Estado de Direito agirão na Justiça em nome dos interesses de todos os brasileiros.
O filósofo e psicanalista Vladimir Safatle escreveu :
A amnésia construída nos mínimos detalhes por uma Lei de Anistia dos crimes da ditadura – prisões políticas, tortura e desaparecimento de corpos de assassinados pelos agentes da ditadura – explica em parte a eleição de um nostálgico dos 21 anos de chumbo que o Brasil viveu. Como na vida psíquica do sujeito, na vida social o que ficou recalcado sem ser devidamente retrabalhado retorna inexoravelmente, numa explosão de devastação e sofrimento.
O trabalho de memória é pré-condição da reconstrução. Esquecer ou forçar o esquecimento é preparar a volta do que foi recalcado.
Eufemismos e distorções de quem reescreve a História
Acostumado a chamar o golpe de 1964 de “movimento”, o ministro da Suprema Corte do Brasil, Dias Toffoli criticou a Argentina por julgar e punir os carrascos da ditadura militar. Inacreditável, vindo de um homem que, presume-se, deve defender a punição de crimes contra a humanidade.
Os argentinos já condenaram 1.088 responsáveis por crimes contra a humanidade. As declarações do magistrado revelam desconhecimento sobre a História e o papel da justiça de transição.
Toffoli, aquele que nomeou dois generais como assessores, se faz porta-voz dos militares que cometeram crimes durante o governo do capitão-fantoche e prega, de maneira velada, a impunidade para os cúmplices do futuro ex-presidente do Brasil. Para isso, precisa criticar o magnífico trabalho feito pela justiça argentina.
Qualquer tentativa de perdão a Bolsonaro é apostar no fracasso da democracia, na falência das instituições e na frustração das expectativas de que o país consiga se reerguer, escreveu o jornalista Bernardo de Mello Franco.
Não preciso listar os crimes de Bolsonaro. Cabe à Justiça investigar.
Mas Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional da USP, citou alguns : “Abuso de poder político, econômico e religioso; orçamento secreto, auxílios eleitoreiros não revogados por apatia do STF; coação pública (por lideranças locais, como no escândalo de Coronel Sapucaia, revelado por Caco Barcellos) e assédio privado (de empresários sobre empregados, por exemplo), que atualizaram o voto do cabresto; a insurreição da Polícia Rodoviária Federal para atrapalhar votos do nordeste”.
Conrado Hübner Mendes resume :
A impunidade de Bolsonaro não só permitirá que ele se reeleja mais adiante, como fará brotar clones tão ou mais perigosos. Para desbolsonarizar o futuro é indispensável reparar o passado e não subestimar a ameaça do presente.
Para concluir, evoco o grande poeta chileno Pablo Neruda:
Por estes mortos, nossos mortos, peço castigo. Para os que salpicaram a pátria de sangue, peço castigo. Para o verdugo que ordenou esta morte, peço castigo. Para o traidor que ascendeu sobre o crime, peço castigo. Para aquele que deu a ordem de agonia, peço castigo. Para os que defenderam este crime, peço castigo. Não quero que me dêem a mão empapada de nosso sangue. Peço castigo. Não vos quero como embaixadores, tampouco em casa tranquilos. Quero ver-vos aqui julgados, nesta praça, neste lugar. Quero castigo.
(De “Os Inimigos”, no livro ‘Canto Geral’ (1950), de Pablo Neruda – Tradução de Paulo Mendes Campos (1979).
*Jornalista internacional, moradora de Paris. Autora de livros como A Tortura Como Arma de Guerra (Civilização Brasileira, 2016).