domingo, 14 de maio de 2017

Meninos eu vi - Maria Candelaria, o filme que ganhou o Grand Prix no primeiro Festival de Cannes em 1946




por Roberto Muggiati

Quarta-feira, 17 de maio, começa a 70ª edição do Festival de Cinema de Cannes. É bom explicar de saída por que o primeiro da série famosa aconteceu em 1946, mas os 70 anos só acontecem agora, um ano depois do que deveriam.

A edição de 1968 foi cancelada – atingida em cheio pela rebelião estudantil de maio e pela invasão da Cinemateca de Paris por forças policiais.

Outra explicação: o evento de 1946 se chamava Festival du Film de Cannes e concedeu dadivosamente o prêmio máximo, o Grand Prix (a designação Palma de Ouro só surgiria a partir de 1955) a 11 dos 44 filmes inscritos.

Apesar da quantidade de agraciados, a competição foi disputadíssima. O filme mexicano Maria Candelaria ficou entre os eleitos, ao lado de outros dez, como Farrapo humano (Billy Wilder), Roma Cidade Aberta (Roberto Rosselini), Desencanto (David Lean) e Sinfonia pastoral (Jean Dellanoy).
Ficaram de fora, vejam só, diretores da estatura de Alfred Hitchcock (Notorious/Interlúdio), Jean Cocteau (A bela e a fera), Alberto Lattuada (O bandido) e René Clement (A batalha dos trilhos).
Maria Candelaria é um melodrama mexicano de altíssima qualidade. ~

Pedro Armendáriz e Dolores del Rio
Um resumo da ópera: em 1909, pouco antes da Revolução Mexicana, um casal de camponeses de Xochimilco, María Candelaria (Dolores del Río) e Lorenzo Rafael (Pedro Armendáriz) não consegue viver o seu amor em paz. María sofre preconceito por ser filha de uma prostituta e Lorenzo Rafael, um jovem indígena, é hostilizado por amá-la. Nada dá certo para eles. Don Damián, um comerciante ciumento que assedia María, faz tudo para impedir o casamento dela com Lorenzo. Quando María contrai malária, Don Damián se recusa a vender ao casal a quinina necessária para combater a doença. Lorenzo invade o armazém e rouba a quinina e leva também um vestido de noiva para María. É preso e María concorda em posar para um pintor a fim de levantar dinheiro para pagar a fiança do amado. Quando o artista pede a María que pose nua, ela se recusa. Ele termina o quadro usando outra modelo para o corpo nu, mas preservando o rosto de María.

O diretor Emílio Fernandez
Quando a turba odiosa de Xochimilco vê a pintura, acha que María posou nua e a mata a pedradas, numa cena de uma selvageria revoltante.  Vi esse filme na flor dos meus doze anos e fiquei chocado: nunca imaginara que o mundo podia ser tão cruel e injusto.
O filme é em preto-e-branco, com a fotografia magistral de Gabriel Figueroa, que trabalhou em 235 filmes ao longo de cinquenta anos, ao lado de cineastas como Luís Buñuel, John Ford, John Huston e Emilio Fernández, o diretor de María Candelária. No filme anterior que fez com Dolores del Río, Flor silvestre, Fernández a submeteu a uma série de grosserias e humilhações. Só seu alto senso de profissionalismo impediu Dolores de abandonar as filmagens. Secretamente apaixonado pela atriz, Emilio teve uma oportunidade de reconciliação, um almoço com ela na Sexta-feira Santa de 1943, dia do aniversário de Dolores. Enquanto a esperava no restaurante, nervoso, Fernández escreveu o roteiro de um filme em treze guardanapos. O escritor David Ramón conta, em sua biografia da atriz:

Gabriel Figueroa, diretor de fotografia.
“Na hora de dar o presente a Dolores, Emilio Fernández praticamente jogou um monte de guardanapos na mesa e disse: ‘É o seu presente de aniversário, o roteiro de um filme. Espero que goste, pois é o seu próximo filme, Xochimilco. É propriedade sua, se alguém quiser comprar, vai ter que comprar de você.’ Apesar da generosa oferenda, Dolores foi irônica: ‘Primeiro fiz o papel de uma camponesa. Agora, uma índia, quer que eu interprete uma índia... descalça?’”

Vi María Candelária nas condições mais exóticas, num cinema improvisado no balneário paranaense de Guaratuba. Naquela época o cinema não se restringia às salas urbanas, mas se espalhava pelos cafundós do Paraná, onipresente como o nome das Casas Pernambucanas pintado a cal nas pedras que margeavam as estradas mais remotas. Bastava ter um projetor, algumas latas com rolos de filmes e uma tela, ou um simples lençol branco, que estava criada uma sala de projeção. Meu tio e padrinho, José Muggiati Sobrinho, com esse equipamento básico, promovia sessões de cinema em Guaratuba no início dos anos 50. Ao fim da sessão, as cadeiras eram encostadas às paredes e o galpão se transformava em pista de forró para os pescadores locais. Acostumado com a produção banal de Hollywood, eu achava que o cinema era apenas diversão inocente. Ignorava que filmes como María Candelaria – e Ladrões de bicicletas, que vi pouco tempo depois – além do prazer estético que traziam, podiam também ser agentes de transformação da consciência social.

AtualizaçãoAnônimo E como tudo no Brasil acaba em samba, o nome Maria Candelária entrou no nosso imaginário com a marchinha que foi sucesso no carnaval de 1952 na voz do General da Banda Blecaute.Os sucessos de Carnaval dos anos 50 eram Lava-jato pura, uma poderosa ferramenta de crítica e protesto social. Veja a letra da própria Candelária, de Armando Cavalcanti e Klecius Caldas, e ouça Blecaute. 

Maria Candelária / É alta funcionária
Saltou de páraquedas / Caiu na letra "O", oh, oh, oh, oh
Começa ao meio-dia / Coitada da Maria
Trabalha, trabalha, trabalha de fazer dó oh, oh, oh, oh
A uma vai ao dentista / As duas vai ao café / Às três vai à modista
Às quatro assina o ponto e dá no pé / Que grande vigarista que ela é.


Clique AQUI para ver e ouvir Blecaute cantando a marchinha de 1952

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