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domingo, 4 de junho de 2023

O dia em que O Cruzeiro sequestrou a seleção brasileira de futebol e deixou JK, no Catete, esperando horas para homenagear os craques

 


1958: Brasil vence a Copa do Mundo, na Suécia, e revela um jogador de 17 anos que viria a ser, logo depois, considerado Rei de Futebol. Edson Arantes do Nascimento, ou melhor, Pelé, fazia sua estreia no mundo. 

por J.A. Barros 

Naquele ano,1958, eu trabalhava no Departamento de Arte da revista O Cruzeiro. A seleção, na Suécia, acabava de conquistar a Copa do Mundo e, ao voltar ao Brasil, desembarcou no aeroporto do Galeão. Os campeões, a bordo de um carro de bombeiros, desfilaram pela cidade até o Palácio do Catete, onde o presidente Juscelino Kubitschek os homenageou. 

Pois bem, diante desse fato, a direção de O Cruzeiro, também resolveu receber os jogadores no salão da sua sede, projetada por Oscar Niemeyer, na Rua do Livramento, Gamboa, no Centro do Rio de Janeiro. No espaço nobre, no oitavo andar, decorado com 12 obras em grandes formatos assinadas por Portinari (em cada quadro, um aspecto histórico do Brasil era contado pelo pincel desse grande artista). No salão, montaram mesas de finos salgados, champanhe, de batatas fritas a caviar, enfim, um bufê servido pela Confeitaria Colombo. Mas o problema era como conseguir sequestrar a Seleção, desviando o comboio do seu trajeto e conduzindo-o para o prédio da revista. Estava previsto que o cortejo passaria na Av. Rodrigues Alves, nas proximidades da Livramento. Rodolfo Brandt, que fazia parte do grupo de jornalistas da revista Cruzeiro, pilotava uma motocicleta. Assim que a comitiva saiu do Galeão, Rodolfo se posicionou à frente do carro dos bombeiros e passou a liderar a comitiva. O jornalista entrou na Rodrigues Alves e, na rua onde arqueólogos descobriram antigo cais do porto de desembarque dos escravizados, conduziu a moto em direção à sede da revista. Atrás dele vieram os bombeiros e os craques em caminhão aberto. Daí em diante foi fácil. Rodolfo pegou a Sacadura Cabral e, em seguida, a Rua do Livramento. Em  poucos minutos, a seleção entrou no salão de O Cruzeiro. Em princípio, o grupo de jogadores não entendeu muito o que estava acontecendo, mas resolveu relaxar e aproveitar o momento.  Nós, do Departamento de Arte, que estávamos trabalhando, corremos para o salão para conhecer os campeões Garricha, Newton Santos, Vavá, Orlando e todos os outros jogadores. Mas nos detivemos em um garoto que, um pouco tímido, passou a conversar com a gente e contou os gols que fez na Copa e lembrou das lindas moças de cabelos louros e olhos azuis. O garoto modesto nos disse o seu nome. Pelé. Ora, mal sabíamos que aquele menino seria o melhor jogador de futebol do Brasil e do Mundo. A seguir, a seleção retomou seu roteiro, afinal, um Presidente da República estava aguardando os campeões do mundo havia algumas horas. 

O "sequestro" não resultou apenas em comemorações: repórteres e fotógrafos da revista fizeram matérias exclusivas com os heróis do primeiro título mundial da seleção brasileira. Além disso, fomos os primeiros a ver de perto a Taça Jules Rimet. Em certo momento, o goleiro Gilmar foi para a rua e posou beijando a taça com a sede de O Cruzeiro ao fundo.

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Votar é preciso: 67 anos de urnas • Por Roberto Muggiati

“Dá teu voto inteiro, não uma simples tira de papel, mas toda tua influência. “ 

HENRY DAVID THOREAU (1817-1862)


No protetor plástico do título guardo 31comprovantes das últimas eleições:
de 1986, quando Moreira Franco foi eleito governador, até 2020, quando
Eduardo Paes venceu para prefeito do Rio de Janeiro. Foto Arquico Pessoal


A cédula única (1955) foi o protótipo analógico da urna eletrônica,
que entraria em ação 41 anos depois.


Na foto da campanha de JK, aparecem em primeiro plano o líder do PSD
almirante Amaral Peixoto e o deputado estadual gaúcho Leonel Brizola.
Foto: CPDOC

A primeira vez que votei foi na segunda-feira 3 de outubro de 1955. Votei em JK. Ganhou com 35,68% dos votos, seguido do general Juarez Távora (30,27%), de Adhemar de Barros (25,77%) e Plínio Salgado (8,28%). Foi a primeira vez que se usou a cédula única eleitoral. Uma tentativa de golpe em novembro contra a posse de JK, orquestrada por Carlos Lacerda, foi rechaçada pelo Ministro da Guerra, general Lott, que garantiu a posse do presidente eleito em 31 de janeiro de 1956.

Em 1962, trabalhando na BBC de Londres, fui prestar justificativa eleitoral no Consulado do Brasil. Excetuando o pessoal diplomático, apenas 60 brasileiros moravam então em Londres, uma diferença brutal para as hordas que invadiriam na década seguinte a London, London de Caetano e Gil.

De volta ao Brasil em 1965, transferi meu título do Paraná para o Rio de Janeiro. Fiz isso num posto eleitoral instalado num galpão da PM na Avenida Presidente Wilson, que logo seria derrubado para a construção do majestoso prédio anexo à Academia Brasileira de Letras. A eleição de Negrão de Lima – político vinculado a Getúlio Vargas e JK – para governador do estado da Guanabara desagradou a ditadura. Novamente Lacerda tentou instigar um golpe contra a posse de Negrão. Foram suspensas as eleições diretas para cargos mais importantes, como presidente, governador, prefeito e senador. Mesmo assim, todo cidadão continuou obrigado a votar nas eleições menores, manipuladas pela ditadura militar, de deputados federais, estaduais e vereadores, para não incorrer nas rigorosas penas aplicadas aos faltosos. Uma das sanções era a proibição de viajar para o exterior, um risco que – como jornalista profissional – eu não poderia correr.

Em 1982, depois da anistia, o país voltou a votar para governador e o Rio de Janeiro elegeu, no turno único de 15 de novembro, Leonel Brizola. Em segundo ficou Moreira Franco, o preferido dos militares. A vitória de Brizola, cunhado de Jango Goulart, que tinha como vice Darcy Ribeiro, foi um recado inequívoco de protesto contra a ditadura.

Mesmo com a volta dos militares para as casernas 21 anos depois do Golpe de 64, o primeiro presidente civil da Nova República, Tancredo Neves, foi escolhido por um Colégio Eleitoral em 1985. O Brasil só voltaria a ter votações diretas para Presidente em 1989, 29 anos depois da infeliz eleição de Jânio Quadros em 1960. Fernando Collor de Mello foi eleito na disputa com Lula no segundo turno. Outra escolha malograda: Collor sofreu impeachment e renunciou sem completar três anos de um governo amaldiçoado, que começou por confiscar a poupança do povo brasileiro. 

A era do "confirma". 
Foto : TSE
Nas eleições municipais de 1996 foram introduzidas as urnas eletrônicas. No Rio, no segundo turno, Luiz Paulo Conde elegeu-se prefeito derrotando Sérgio Cabral Filho. 

Nasci sob o signo das eleições. Em 6 de outubro de 2007 completei 70 anos de idade. Liberado do dever do voto, jamais abdiquei do direito ao voto. Segui comparecendo às urnas em cada eleição, como pretendo fazer no próximo 2 de outubro, às vésperas dos meus 85 anos. Mesmo descrente da política e dos políticos – neste país que ainda tem muito a amadurecer em matéria de democracia – podemos, através do voto consciente, buscar sempre o melhor caminho. Parafraseando a letra (“Aux armes, citoyens!”) da Marselhesa, “Às urnas, cidadãos!”

domingo, 24 de março de 2019

Fotomemória da redação - JK e Temer: a diferença entre o legítimo e o ilegítimo...

Ao desembarcar no Galeão, JK é intimado a depor. 

A multidão que o esperava cerca a viatura. 

Depois de duas horas de depoimento, JK deixa o quartel da PE. 

Na frente do prédio onde o ex-presidente morava, o povo fez vigília.

Essas fotos mostram o contraste.

A última semana foi marcada pela prisão de Michel Temer, sob a acusação de corrupção, recebimento de propina, lavagem de dinheiro etc.

Temer chegou à presidente no embalo de um golpe jurídico-parlamentar. Sua prisão, após deixar o cargo, foi acompanhada pelas emissoras de TV a partir de helicópteros. Apenas uma imagem repetida à exaustão mostrava o político na rua, em um carro, ao ser abordado por policiais.

Uma solidão que a ilegitimidade explica.

Temer pegou carona em um golpe. Não havia multidões a defendê-lo. Nem mesmo aquelas que foram às ruas apoiar sua posse envergonhada.

Em 1965, outro ex-presidente, este legítimo, era vítima e não beneficiário de um golpe.

A quartelada de 1964 cassou Juscelino Kubitschek. Apesar disso, os militares não se conformavam com a sobrevivência política do ex-presidente e decidiram processá-lo. Alegavam que JK tinha responsabilidade na "deterioração do sistema de governo" e o acusavam em Inquérito Policial-Militar, vagamente, de corrupção. Nada foi provado, mesmo assim ele foi silenciado e perseguido pela ditadura até o fim da vida. Nos seus últimos anos, JK foi acolhido na Manchete em cujo edifício mantinha um escritório cedido pelo velho amigo Adolpho Bloch. Ao morrer, em 1976, deixou um patrimônio considerado modesto.

Mas naquele outubro de 1965, JK voltava de Paris, onde se refugiara após a cassação e ameaças, quando soube que ao desembarcar seria conduzido para depor no quartel da Polícia do Exército. Uma multidão o esperava à saída do Galeão. O depoimento durou pouco mais de duas horas. Ao sair, JK foi recebido por amigos e admiradores. No dia seguinte, seria novamente ouvido pelos funcionários da ditadura.




Sua detenção motivou protestos que repercutiram internacionalmente. O povo fez vigília na frente do prédio onde ele morava e volta e meia exigia sua presença à janela. Em um desses momentos, foi feita a capa da edição.

A Manchete publicou uma grande reportagem sobre o assunto, parcialmente reproduzida acima. Murilo Mello Filho era o repórter. Jáder Neves, Gervásio Baptista, Hélio Santos, Orlando Abrunhosa e Eveline Muskat formavam a equipe de fotógrafos.

JK não estava sozinho.


domingo, 16 de dezembro de 2018

Memória da propaganda: Em 1962, o Natal do consumo antes da crise...

O sonho de consumo. 

Os brinquedos analógicos, ainda quase artesanais. 

A anúncio da Coca-Cola apelando para Deus às vésperas de um ano de crises..

O presente de Natal da Seleções

Calça Lee nem pensar: o dólar alto deixava o sonho pra depois. O Brasil vestia Far-West.


A Varig oferecia o trenó aéreo para um White Christmas em Nova York.

Em 1962, o Brasil curtia um Natal de consumo marcado pela onda de industrialização que JK acelerou. O mineiro já não era presidente, mas os resultados da sua política repercutiam na mídia, que também se modernizava, e estavam nas páginas das revistas que passaram a receber centenas de páginas de anúncios.
Apesar do otimismo que a propaganda refletia, 1962 antecedeu uma ano de crise
econômica e política.
Pelo menos um dos anúncios - o da Coca Cola - apelava para Deus segurar a barra no Ano Novo que despontava. Não deu. A crise tornou-se aguda e acabou em golpe militar. 1963 foi último ano integralmente democrático antes da longa noite a partir de 1964 e que só começaria a clarear em 1985.

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

A Melhor da Galáxia era uma fábrica de apelidos. . .

Por Roberto Muggiati
Fotos Acervo RM

A arte de brincar com as palavras sempre foi uma verdadeira obsessão nas redações de Bloch Editores, em particular na Manchete (que sobrevive, 65 anos depois de sua criação, nesse apetitoso blog Panis Cum Ovum). Não saciados em escrever suas matérias e jogar conversa fora nos corredores, redatores e repórteres se aplicavam em criar apelidos, numa atividade tão espontânea e natural como o próprio ato de respirar.

Primeiro, preciso explicar a origem do apelido “a melhor da galáxia” para designar a Manchete.
Adolpho Bloch não suportava o sucesso de Justino Martins, embora Justino, um dos maiores
“revisteiros” do Brasil, tivesse tirado a Manchete do limbo em que ela viveu em seus primeiros oito anos e a transformado na maior revista do país. No final da década de 1960, Adolpho tirou o “Índio” – como chamava o Justino – da direção da revista, mas a manobra não deu certo. Justino voltou à direção da Manchete em alto estilo no início dos 1970. Em 1975, Adolpho defenestrou Justino de novo e colocou este que vos escreve na direção da revista. Para botar panos quentes na história, prometeu ao Justino uma tarefa maior – a direção de uma revista de decoração e jardinagem – e ofereceu-lhe uma megafeijoada de despedida no restaurante do terceiro andar, um evento para quatrocentos talheres. Entre os convidados de honra estava JK – o ex-Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira – que ganhara de Adolpho um escritório nobre no prédio da Manchete e ocasionalmente assinava resenhas de livros na revista. JK tomou a palavra e decolou: “És um homem feliz, Bloch. Tens a melhor revista do Brasil. Indisputavelmente da América Latina; tens a melhor revista do mundo – quiçá da galáxia!” O regabofe foi na terça-feira, um dia menos tenso: a Manchete fechava na segunda-feira e ia às bancas na quarta. Nas manhãs de quarta aguardávamos ansiosamente os exemplares da revista que vinham da gráfica em Parada de Lucas. No dia seguinte à feijoada, Alberto de Carvalho, nosso assistente de redação – título que não queria dizer nada e dizia tudo – adentrou a sala com aquela ginga de carioca do Estácio e perguntou: “Já chegou a melhor da galáxia?” A partir daí a Manchete ganhou um de seus codinomes mais nobres, cunhado por um ex-Presidente da República.

Alberto chamava a todos afetuosamente de Professor de Astúcia. Os apelidos eram incontáveis. Entre os contínuos, conhecidos como “siris”, havia o Sammy Davis Jr. – era até caolho como seu sósia – e o Tim Lopes, com seus cabelões à moda do famoso cantor Tim Maia. O rapaz saiu da Manchete, estudou jornalismo e, como Tim Lopes, se tornou o mártir da reportagem que todos conhecem.

Ainda outro contínuo foi apelidado de Pablito Cubano pelo chefe de reportagem João Luiz de Albuquerque. O João desconfiou que conhecia a cara do rapaz de algum lugar, fuçou umas revistas antigas e descobriu que ele era o menino que viajou clandestino no trem de aterrissagem de um avião do Galeão para Havana, por admiração a Fidel Castro, que tinha acabado de fazer sua revolução em Cuba.

A fotografia também tinha seus apelidos. Frederico Mendes – nosso Woody Allen de plantão – passou a ser O Encucadinho. Dois “retratistas” reconhecidamente bem dotados se tornaram Tromba e Tripé (apelido que se referia também a uma das ferramentas de trabalho). Jovenzinho, Ayrton Camargo Jr foi seduzido pela Márcia Ramalho e passou a ser chamado de Ayrton Ramalho; o mais incrível na sua trajetória e que tempos depois ele se juntou com uma mineira de Rio Casca que faria sucesso em Los Angeles como Rainha do Anal no cinema pornô com o nome de guerra de Elle Rio. E o laboratorista Claybom? Detestava margarina, mas era de origem francesa e se chamava Clement... O primeiro fotógrafo a fazer um selfie voando de asa delta, nos anos 70, tinha um sobrenome complicado: Paulo Scheuenstuhl virou Paulo Chuchu – aliás, era alto, atlético e agradava às moças. Voltando ao Tripé: ele viveu um episódio que acabaria em apelido, também. Foi designado para fotografar o ator e diretor teatral Ziembinski. A empregada o encaminhou para a biblioteca, imensa, onde Ziembinski estava pendurado no alto de uma escada à beira de um ataque de nervos. Viu o Tripé chegar e desabafou: “Meu filho, quando procuro um livro e não consigo encontrar, isso me dá uma vontade louca de dar o rabo...” O Tripé encontrou uma desculpa qualquer e se mandou. E essa versão masculina de TPM foi batizada por um intelectual da Manchete de Síndrome do Ziembinski. Outra grande figura era o Sérgio de Souza, o Serjão, um dos melhores fotógrafos de futebol. Certa vez recebeu duas ordens de serviço para o mesmo horário, 14 horas; uma em Niterói, outra na Barra. Indignado, Serjão correu para o chefe de reportagem com as ordens na mão: “Cara, olha só aqui, eu não sou onipotente, não!”

Depois da Revolução dos Cravos em Portugal, Adolpho acolheu na empresa vários lusitanos desgarrados, entre eles um fotógrafo de origem aristocrática, Antônio D‘Atoughia, que ficaria conhecido como o Conde; e Lúcio Macedo, apelidado de Salazar por ter sido o fotógrafo oficial do ditador deposto. Um destes era um senhor gordote e pedante que cuidava da portaria e, por sua semelhança física com o ratinho famoso, ganhou o apelido de Topo Giggio. Tempos depois, a Bloch contratou um plano de saúde barato para os funcionários do baixo escalão, praticamente inaugurado com a morte do Topo Giggio.

Alguns redatores já vinham com apelido: desconheço a origem do Jacaré do Irineu Guimarães; já o Pato Rouco do Ivan Alves era mais fácil de detectar.

Eremita, Cony e Tia Zeffa. 

Quando Adolpho Bloch presidiu a Fundação dos Teatros do Rio de Janeiro, promoveu a apresentação de uma série de óperas famosas, coroada pela Traviata dirigida por Franco Zeffirelli, que gostava de frequentar a redação. Já nos primeiros dias, ganhou a alcunha afetuosa de Tia Zeffa. Eu mesmo, como editor da revista e mergulhado em problemas de venda, gestão e jornalismo, passei a ser o Muggi das Crises (a cidade de Mogi das Cruzes, não lembro por que, estava em evidência na época). Nos tempos da longa barba, o Alberto me chamava também de Eremita. Já o Justino era o Lafra – de “lafranhudo”, xingamento do arco da velha com que foi brindado, sob golpes de guarda-chuva, pela crítica de ópera Maria Teresa Dal Moro, por não ter publicado um texto dela.

Alberto tinha uma sensibilidade especial para a música das palavras. Quando o Durval Ferreira, repórter de São Paulo, trouxe uma matéria sobre a Revolução Constitucionalista de 1932, pontificou o nome do coronel Palimércio de Rezende, um dos primeiros oficiais negros do exército brasileiro. Meu filho estava para nascer, ainda não tinha um nome escolhido, e o Alberto perguntou: “Quando é que chega o Palimércio?” A partir daí, todo bebê da redação passou a ser Palimércio ou Palimércia.

Outro apelido, altamente sofisticado, que saiu para fazer sucesso fora da Manchete, foi o do senador Marco Maciel: Mapa do Chile.

O Adolpho vivia às turras com um funcionário dos orçamentos gráficos chamado Possidônio. Da noite para o dia, ele virou Pseudônimo. Na época, as notas mais descontraídas e curtas da seção Leitura Dinâmica eram assinadas por pseudônimos, para evitar repetição de assinatura do mesmo redator. Lembro de alguns desses codinomes, que na verdade eram verdadeiros autoapelidos: Niko Bolontrim (Ney Bianchi), José Bálsamo (Cony), Jean-Paul Lagarride (Justino Martins), Acácio Varejão e, o mais curto de todos, Ed Sá (Ruy Castro). [O Ruy foi justamente interpelado por uma redatora nova, Marilda Varejão, sobre a escolha daquele codinome. “E existe algum Acácio Varejão?”, retrucou ele na defensiva. E Marilda, indignada: “Existe, sim! É o nome do meu pai.”] Um dia, um delator premiado (a Bloch foi pioneira também nessa instituição do momento) emprenhou o Adolpho pelo ouvido, alegando que pseudônimo não era jornalismo. O capo investiu então com toda fúria na redação: “Quero que parem imediatamente com esses possidônios!...”

Festa de meus 40 anos com Moët-Chandon: Layrton Cabral (Lalá), Antonio Rudge,
o Eremita, Justino, Wilson Cunha, ao fundo Murilinho. 

Adolpho dizia para o Alberto: “Você é inteligente, porra! Se tivesse diploma seria diretor da Manchete...” De meados dos anos 60 até o amargo fim da revista, em agosto de 2000, Alberto foi sempre a sombra (benfazeja) do diretor da Manchete, fosse quem fosse. (Eu fui o que mais tempo se sustentou no pau de sebo, para lá de vinte anos.). Ele sugeria títulos de matérias instantâneos e
vencedores. Para uma reportagem científica sobre bebês que eram botados para nadar assim que saíam do ventre materno: QUEM NÃO NADA, NÃO MAMA. No auge da fama do Rei da Canção e do Rei do Futebol, reunimos os dois numa capa. Desta vez, o título do Alberto não foi publicado, por ser politicamente incorretíssimo: O REI E O PERNA-DE-PAU.

No Santa Genoveva, com direito a escultura de Krajcberg, 1997.
A arte do Alberto não se restringia a apelidar só pessoas. Em 1996, fui destituído da direção da Manchete e ganhei um novo cargo com o nome pomposo de Editor de Projetos Jornalísticos. O afastamento também foi geográfico: me exilaram para uma sala imensa, um andar inteiro, a cobertura da terceira fatia do prédio do Russell, à qual se tinha acesso através de uma escada em caracol (que, felizmente, impedia a visita da chatos idosos ou lesados...). Mauro Costa, também destituído da chefia de reportagem da TV, foi ocupar um espaço daquele latifúndio. Pois o Alberto apelidou o local imediatamente de Santa Genoveva – alusão ao asilo de idosos que praticava maus tratos contra os pacientes, fato que chocou o Brasil e só foi descoberto por acaso no rastro de uma daquelas grandes enchentes cariocas.

eresópolis, 8-10-1977, sábado, aniversário do Adolpho: Machadinho,
Wilson Cunha, Heloneida Studart, o Eremita, Flávio de Aquino,
Ceres Feijó, Célio Lyra.

O próprio Adolpho Bloch dava a sua contribuição aos apelidos, às vezes de forma indireta ou
involuntária. Uma dia chegou da gráfica em Parada de Lucas e plantou um jovenzinho franzino na sala de redação: “Ele é um gênio. Vai trabalhar com vocês. Como escreve!” E, exagerando nos elogios: “É um verdadeiro Machado de Assis!” Antônio Roberto é conhecido até hoje como “Machadinho” e colegas da época ainda não esqueceram sua estreia literária. Fã ardoroso de Carlinhos de Oliveira, ele escreveu uma crônica sobre um operário que vinha todo dia cedo para trabalhar na cidade. Logo no início do texto, mencionou a “hedionda marmita”. Até hoje não perdoaram a Machadinho o hediondo adjetivo. Em pouco tempo, ele passou a competir com o maître Severino Ananias Dias fazendo discursos nas grandes ocasiões da casa – discursos que o Cony, com sua ironia de sempre, dizia que eram comissionados “em nome da redação da Manchete”. Foi num destes, um aniversário do Adolpho, que o Severino cunhou um adjetivo inolvidável, referindo-se à “figura inevolúvel de Adolpho Bloqui”. . .

Ruy Castro (Ed Sá) e Narceu de Almeida (Capelinha) em 19-12-72.
Pedro Bloch, que na verdade apelidou a própria revista – sugeriu a Adolpho que a chamasse de
Manchete, lembrava uma manchete de jornal e também imitava a sonoridade de Paris-Match, a maior revista da época. Teatrólogo e fonoaudiólogo, Pedro cuidou de um fotógrafo com problemas de fala que Adolpho mandou para se tratar com ele – e, de saída, o apelidou de João Farofa.

Quando o redator Narceu de Almeida resolveu largar tudo e partir para a vida alternativa na Região dos Lagos, sob a égide dos colegas Cabral e Maciel, ambos Luís Carlos, Jaquito sabia que não ia dar certo e comentava conosco: “O Narceu foi jogar pingue-pongue contra o vento...” Depois de um tempo, Narceu voltou e Jaquito o colocou em regime de free-lancer: o pagamento por matéria redigida, em vez do trabalho assalariado, tornava o redator mais produtivo e mais ágil. Orgulhoso da sua artimanha, Jaquito dizia: “Agora sim, o Narceu está correndo atrás!” E o apelidou de Capelinha, em alusão à marca dos taxímetros da época.

Havia uma recomendação aos novatos que fazia sucesso na redação da Manchete e devia ser escandida, com ênfase nos trocadilhos, em ligeiro sotaque iídiche:  "Se você desobedecer a ordem que Adolpho deu, e aquela que Jaquito havia dado, o Oscar ralha.”

Entre os autores de chistes mais antigos da Manchete, o repórter Ronaldo Bôscoli, que Nelson Motta chamou de “a língua mais rápida de Ipanema, um gênio da maledicência”, notabilizou-se pelos apelidos corrosivos que dava aos seus desafetos. Alguns exemplos: Sérgio Mendes (“compota de monstro”), Antônio Maria (“eminência parda da MPB”), Maysa (La Gorda), Elis Regina (“Vesguinha”). O apelido do próprio Bôscoli era Veneno. É bom lembrar também o fabuloso Nelson Rodrigues, que escrevia na Manchete Esportiva e criava apelidos os mais exóticos. Chamou Cláudio Mello e Souza, editor de Fatos&Fotos, de O Remador de Ben-Hur. Um dia eu vejo o Nelson adentrando a redação e saudando Adolpho Bloch como “Como vai este Cecil B. DeMille das revistas!” (pronunciando o DeMille como DeMaille). Sérgio Porto, colunista da Manchete, que apelidou a si mesmo de Stanislau Ponte Preta, fez do redator Raymundo Magalhães Jr um alvo predileto. O escritor e acadêmico fazia questão de assinar seus escritos como R. Magalhães Jr. Sempre que Sérgio entrava na redação e via o Magalhães batucando com dois dedos na Remington, gritava: “Erre, Magalhães Jr!” Ou gozava da sua baixa estatura: “Toda vez que o Magalhães pega uma caixa de fósforo as pessoas pensam que ele vai
viajar...”

Raul Giudiccelli, outra das línguas mais ferinas da Bloch, fez toda uma catilinária em cima do Ledo Ivo, poeta e redator. Só lembro esta: “O professor deu zero para o Ledo Ivo e ele foi se queixar que a nota não era justa. O mestre explicou-se com o Ledo: – Desculpe, meu filho, mas não tinha nota mais baixa do que o zero...” Ainda em relação ao Ledo Ivo, o Cony retificou o clichê “ledo engano” para “ledo e ivo engano”, usado até hoje por Cony e outros escribas.

A Santa Ceia em cor: Alberto, Ivan, Cunha, Flávio, ao fundo Sammy Davis Jr,
Eremita, Heloneida, Magalhães, Passos, Argemiro, Pedrão, Ney, Cony, Irineu.

Voltando ao Alberto: lendo agora o livro de contos inéditos de Scott Fitzgerald, I’d Die For You,
publicado 77 anos após a morte do autor, encontrei uma personagem – típica serelepe dos anos 30 – chamada Trouble, que só se poderia traduzir, é claro, por Encrenca. Pois sempre que aparecia na redação uma daquelas que a gíria do malandro chamava de “chave de cadeia”, o Alberto se referia a ela como Encrenca.

Almoço para Lula no Russell na véspera da votação do 2º turno, sábado 16-12-89.
Teria sido na Manchete que Brizola pela primeira vez chamou Lula de "sapo barbudo". 

Não faltaram encrencas na história da Manchete. Uma que mais fez jus ao apelido foi a produtora de moda de sobrenome Guerra que deu um tiro no recém-chegado diretor de arte Serge Elmalan. O
coitado do Serge acabara de chegar da França com mulher e cachorro e se instalara num
apartamento no Lido. Sofreu o imediato assédio e atração fatal da Guerra e levou um balaço.
A bala ficou alojada num ponto melindroso da região do ombro e teimava em não sair. Adolpho não hesitou: mandou o Serge para Houston aos cuidados do Dr. Michael DeBakey, o cirurgião que revolucionou a medicina na Segunda Guerra, levando o atendimento para a própria zona de combate (procedimento satirizado pelo filme M*A*S*H). Nem um craque como o Dr. DeBakey conseguiu retirar a bala guerreira que acompanhará o Serge em suas andanças pelo mundo até o fim dos seus dias. Um parêntese para dar uma ideia de quem era Serge Elmalan. Convidou-me uma noite para uma reuniãozinha en petit comité no seu apartamento. Quando adentrei a sala, lá estavam a romancista Françoise Sagan (Bonjour Tristesse), a Begum Aga Khan (viúva de um dos homens mais ricos do século), o cineasta Jacques Deray (dirigiu Alain Delon em La Piscine) e Gilberto Tumscitz e sua mãe (Serge adivinhou já no jovem repórter o futuro autor de telenovelas de sucesso, Gilberto Braga).

Outra Encrenca que fez nome na Manchete foi Marisa Raja Gabaglia (1942-2003). Fomos colegas na reportagem de Frei Caneca em 1966. Inteligente, neurótica, sedutora, fez sucesso como cronista, seu livro Milho Para a Galinha Mariquinha virou best seller. Foi repórter da TV Globo por dezoito anos, fez novela com Tônia Carrero. Marisa teve uma paixão fulminante pelo cirurgião plástico Hosmany Ramos, ex-assistente de Ivo Pitanguy, que de repente partiu para uma surpreendente carreira criminosa e, depois de várias fugas, está preso até hoje. Marisa foi pioneira do Amor bandido, título do livro que publicou em 1982 sobre sua relação com Hosmany.

Vou parando por aqui, porque “a melhor da galáxia” é como aqueles vampiros velhos que – mesmo com bala de prata e estaca no peito – se recusam a morrer.
 

terça-feira, 16 de maio de 2017

Memórias da redação - Com bandejão gourmet na antiga gráfica, em Parada de Lucas, Fatos & Fotos comemora seu primeiro aniversário


Foi em 1962. Terá sido pelo prestígio das revistas, importantes na época (naquele ano a Fatos & Fotos rodava 200 mil exemplares), pela qualidade da comida servida no restaurante da Bloch, na gráfica de Parada de Lucas, ou pelo prazer do encontro em pleno verão carioca.

Era um janeiro sufocante, apesar dos paletós e gravatas à mesa. O cardápio era feijoada. Dá para imaginar a volta da caravana, a 40 graus, após a incursão ao bairro distante, na fronteira com a cidade de Caxias, sonolenta de carne seca, costela, pé, lombo e orelha da porco. O cerveja só podia ser Antarctica ou Brahma, que eram anunciantes e usavam os serviços de impressão de Lucas.

Lançada em 1961 e apontada como "o maior acontecimento jornalístico" daquele ano, a Fatos & Fotos celebrava seu primeira aniversário. O bandejão gourmet reuniu "tout le Rio".  O ex-presidente Juscelino Kubitscheck, o acadêmico Austregésilo de Athayde, recebidos por Adolpho Bloch e pelo diretor da F&F, Alberto Dines, além de socialites, empresários, publicitários e banqueiros, esta uma categoria historicamente fundamental para a liquidez da Bloch.

Sorridente, o ex-presidente Juscelino Kubitscheck estava animado. Certamente já sonhava com a campanha para a volta ao Planalto. Tinha até slogan: JK-65.

Dois meses depois, a Fatos & Fotos faria sua primeira grande cobertura internacional: a visita de João Goulart à Casa Branca, então sede da corte de John Kennedy, a Camelot reeditada.

Os três personagens não sabiam, mas os seus destinos já estavam sendo escritos, e bem longe dos seus projetos.

Kennedy não veria o fim de 1963, Jango, derrubado, partiria para o exílio em abril de 1964, a reeleição de JK-65 seria atropelada pelo golpe militar e o ex-presidente também se exilaria dois meses depois de a ditadura se instalar em Brasília.

A Fatos & Fotos continuou saindo, semanalmente, até março de 1985. Depois disso, voltou às bancas apenas em edições especiais de Carnaval ou de acontecimentos marcantes.  A Bloch faliu em 2000. O salão visto na reprodução acima foi ocupado por famílias de sem-tetos, até ir a leilão.

O mundo girou e só a Lusitana continuou rodando.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Memórias da redação: Há 40 anos, morria JK. Ficaram a história e dois grandes mistérios ligados à Manchete...

Há 40 anos, no dia 22 de agosto de 1976, um domingo, todos os repórteres da Manchete e Fatos & Fotos foram convocados às pressas para ir às redações, na Rua do Russell, onde diretores e editores das revistas iriam distribuir pautas para a cobertura da morte, velório e enterro de Juscelino Kubitscheck. Tudo era urgente, estavam previstas edições especiais que deveriam ir para as bancas em cerca de 48 horas.
Com o país sob o impacto da morte do ex-presidente em um acidente na Via Dutra, as tiragens se esgotaram. Quatro décadas depois, em tempo de Rio 2016 e turbulências políticas, a data não foi registrada pela mídia. JK é história, seu legado político já foi visto e revisto.
O que não se desvendou foram certas e misteriosas circunstâncias que cercaram seu velório no antigo prédio da Manchete. Os jornalistas Carlos Heitor Cony e José Esmeraldo Gonçalves descrevem, abaixo, os estranhos e insondáveis compassos da marcha fúnebre do ex-presidente na madrugada de 23 de agosto no hall do prédio da Manchete. São dois os mistérios: um envolve um surpreendente terceiro caixão que chega à rua do Russell mas se perde na madrugada. O outro levanta a suspeita de uma inesperada troca de caixões.


A edição especial da Fatos & Fotos e as equipes que cobriram o acidente, velório e enterro de JK.
(Clique na imagem para ampliar)



JK: O MISTÉRIO DO RABECÃO SEM RUMO

por Carlos Heitor Cony (*)


No dia 22 de agosto de 1976, fui com o Murilo Melo Filho ao Instituto Médico Legal no Rio de Janeiro, levar o recado de Sarah Kubitscheck, que desejava que  o velório do seu marido acontecesse no hall do edifício da Manchete, uma vez que o Museu de Arte Moderna, no Aterro do Flamengo, fora o local prévia e e apressadamente escolhido. No carro da empresa, ao passarmos pelo MAM, Murilo e eu vimos pessoas varrendo o enorme hall do térreo e cuidando dos primeiros preparativos para o velório.
Chegamos ao IML O carro com o logotipo da Manchete chamou a atenção da reportagem. Queriam saber o que dois diretores da revista estariam fazendo ali. Evidente que não estávamos ali como jornalistas, mas como emissários de Sarah às autoridades do Instituto sobre as últimas providências a respeito do velório e do traslado no corpo de JK para Brasília.
O repórter Tarlis Batista, o mais furão e devastador que conheci, valeu-se da condição de colega, afastou-se dos demais repórteres e quis saber o que nos levara até lá. Pertencendo a uma revista semanal, não furaria ninguém, nem rádio, TV e jornais que sairiam no dia seguinte. Se fôssemos raptar o corpo de JK ou verificar se ele havia mesmo morrido, Tarlis só poderia dar o furo depois de toda a mídia ter furado o furo dele.
Para resumir, disse que Sarah pedira que o corpo de JK e do motorista, Geraldo, fossem levados ao hall da Manchete, apenas isso. Até aí, a responsabilidade desse relato é minha, Carlos Heitor Cony, brasileiro, portador da carteira de identidade número tal etc.
Entra agora o espírito de porco do vidente cego Allan Richard Way. Ao ouvir o que lhe comunicara, Tarlis disse o famoso "deixa comigo", expressão generalizada em todo o mundo ocidental, mas que parece ter sido inventada por ele. E sumiu na multidão que se espremia na calçada do IML.
Subimos, Murilo e eu, atravessamos corredores sinistros, embaciados por lâmpadas mortiças que iluminavam corpos e pedaços de corpos. Fomos à sala onde estavam o genro do ex-presidente, Rodrigo Lopes, e o médico Guilherme Romano, cuja presença ali me causou tamanha estranheza que, anos depois, me levaria a escrever um livro com a repórter Anna Lee (O Beijo da Morte, Objetiva, 2004). Neste livro, colocamos em questão as diversas versões sobre a morte de JK, embora não assumindo nenhuma delas por falta de provas realmente comprovadas.
Demoramos no IML cerca de 15 ou 20 minutos.Ao sairmos e entrarmos no carro da Manchete que nos esperava, notei que o rabecão do próprio IML descia por uma das rampas laterais que dão para a Avenida Mem de Sá. Espantei-me ao ver Tarlis na boleia, ao lado do motorista. Com largos e enérgicos gestos, batendo com a mão na lataria da porta do veículo, como se marcasse o compasso imaginário de uma ordem policial, ele mandava que o pessoal ali aglomerado abrisse passagem para a viatura, tinha pressa: ele só realizava grandes missões e todas elas tinham pressa.
Na manhã de 23 de agosto de 1976, filas se formam
em frente ao prédio da Manchete para
o adeus a JK.
Reprodução da edição especial de Fatos & Fotos.
Nâo dei importância a Tarlis estar na boleia do rabecão. Já o vira em condições e situações mais transcendentes. Conhecia todo mundo em todos os lugares, diziam que ele comera a atriz Bo Derek e que o Julio Iglesias só fazia o que ele mandava, fora o único jornalista brasileiro que tivera acesso a Frank Sinatra na suíte ocupada pelo cantor no Rio Palace, hoje da rede de hotéis Sofitel. Nada demais que arranjasse carona num rabecão que ia para onde ele desejava ir naquela noite.
Murilo e eu voltamos a Copacabana para dar conta a d. Sarah de que havíamos transmitido sua vontade ao genro, que ali representava a família de JK. Ao passarmos pela Manchete, cerca de 3 horas da manhã, mesmo estando numa pista distante da portaria, vi que havia um rabecão e movimento de caixões. Confesso que não vi Tarlis, mas o adivinhei nas proximidades, ele sempre se anunciava à distância, como os tornados e as baterias das escolas de samba.
Confesso também que tive uma suspeita cruel, uma suspeita formidável, mas nada disse ao Murilo, que estava tenso e comovido com os últimos acontecimentos, que mexiam tão de perto com ele, amigo íntimo de longa data de JK.
Horas depois, voltei sozinho para a Manchete, levando dinheiro para comprar panos pretos a fim de montar no hall alguma coisa parecida com aquilo que os franceses chamam de les pompes funèbres. Dei o dinheiro ao Marechal, continuo especial do Adolpho, que percorreu as lojas da Rua do Catete, que esgotaram todos os estoques de panos pretos.
Armaram duas urnas simples, sem qualquer suntuosidade, cobriram com os panos pretos, que também foram espalhados aleatoriamente pelo hall, e o velório já estava em processo, com pessoas chorando junho aos caixões, inclusive Tarlis, que a lenda garante que estava chorando no caixão errado (era o único que não podia fazer isso).
Por volta das 5 ou 6 horas da manhã, o dia amanhecendo já com bastante gente espremida no hall e outras chegando, inclusive Elio Gáspari, vi entrar, em marcha lenta, um rabecão do IML Por Júpiter! Poucas vezes vi tamanhas caras de estupefação. Tanto o motorista quanto o ajudante que ia ao lado dele olhavam pasmos o velório em marcha, os dois caixões sendo pranteados, tudo nos modos e cômodos de um velório pungentemente sofrido e chorado.
O rabecão quase parou na porta principal, mas os funcionários do IML vendo, como Cristo, que tudo estava consumado, decidiram ir embora, levando a carga não sei para onde - acredito que nem eles sabiam. Pegaram o retorno da Rua Silveira Martins com a praia, junto ao Palácio do Catete, passaram em marcha lenta do outro lado da pista, vi ainda a cara pasmada do motorista olhando para o hall e não querendo acreditar no que via. Como os motoristas de ônibus que atropelam transeuntes e se evadem. O rabecão tomou rumo ignorado.
Não ouso acrescentar mais nada, tampouco concluir. Perdi contato com o vidente cego Allan Richard Way, de maneira que no momento em que lembro esses fatos não posso consultá-lo.


Os caixões de JK e Geraldo Ribeiro eram absolutamente iguais. Reprodução da edição especial de Fatos & Fotos


SURGE A DÚVIDA: QUEM GARANTE QUE O CAIXÃO 
DA ESQUERDA É MESMO  O DE JK? 


por José Esmeraldo Gonçalves (**)


Morre Juscelino Kubitschek no famoso acidente de carro da Rodovia Dutra. Domingo, fim de tarde, João Luiz Albuquerque, chefe de Reportagem da Manchete, convoca todos os repórteres. A notícia acabara de ser confirmada. Estavam previstas edições especiais da Manchete e da Fatos&Fotos. Cheguei à Redação, ouvi as instruções e logo fui às ruas conversar com políticos, gente que trabalhou com JK e alguns dos seus melhores amigos, como Oscar Niemeyer. Creio que já passava da meia-noite quando voltei ao Russell. Era madrugada de 23 de agosto de 1976. Havia uma agitação no hall do prédio. Tudo estava sendo preparado para o velório de JK e de seu motorista, Geraldo Ribeiro, que também morreu ao volante do Opala, mas logo ouvi que tinha uma pedra no meio do caminho. Niomar Muniz Sodré queria que o velório fosse no Museu de Arte Moderna, instituição que presidia. Briga de foice na madrugada pela honra de sediar as exéquias de JK. A Manchete tinha um repórter que, em campo, era um trator. Era Tarlis Batista, que tinha uma característica: era “entrão” e, pelo seu temperamento, desempenhava as missões mais difíceis. Se o acesso a determinado evento era proibido, melhor escalar Tarlis. Ele dava um jeito de furar esquemas e resistências. Era brigão também. Bom repórter. Claro que o saudoso Tarlis foi enviado ao IML, onde o corpo de Juscelino era preparado. Àquela altura, a disputa pelo velório já chegara às portas do Instituto Médico Legal. Pressões políticas, uma palavrinha de amigos influentes, valia de tudo. Murilo Melo Filho, então um dos mais importantes diretores da Bloch, contou recentemente ao repórter Timóteo Lopes do antigo site No Mínimo, que naquela madrugada teve até que subornar funcionários para apressar a liberação do corpo de JK. Adolpho Bloch que, no período em que JK era persona non grata dos poderosos, o recebeu e o abrigou no prédio do Russell, montando um gabinete onde o ex-presidente pudesse se dedicar a escrever e receber amigos, fazia questão de se despedir do velho amigo na casa que foi sua referência derradeira. Tinha razão. Se Murilo e Cony, que também foi ao IML, se encarregavam do trabalho, digamos, diplomático, usando luvas e persuasão para resolver o impasse, cabia a Tarlis meter o pé na porta. E foi o que ele fez, atropelando os procedimentos e convencendo uns e outros a queimar etapas no ritual legal. Na madrugada, com o Russell ainda com pouca gente, praticamente só os funcionários da Bloch, uma Kombi estaciona na porta principal do prédio. Sentado ao lado do motorista, Tarlis dava as ordens. “Encosta mais e vai mais à frente, meu irmão, assim fica melhor para desembarcar o caixão”, comandava. Esse era Tarlis. Na Kombi, vinha o corpo de JK. Não sei se havia um segundo veículo trazendo o caixão do Geraldo ou se os dois vinham juntos. Sob as ordens de Tarlis, os caixões de pinho envernizado, absolutamente iguais, foram desembarcados e dispostos lado a lado. JK à esquerda, seu motorista e fiel amigo à direita. O impacto atingira bastante a parte superior dos corpos. Os dois caixões estavam cobertos de cravos vermelhos que formavam desenhos idênticos. A Fatos&Fotos publicou uma foto de d. Sarah e de Márcia Kubitschek ao lado do caixão fechado. As fotos, na época, não mostram os rostos, nem de JK nem de Geraldo. A manta de flores que cobria os caixões também tinha um detalhe semelhante: uma cruz de cravos brancos. Aparentemente, não havia como distingui-los. A dúvida era pertinente. Quem garantia que o caixão da esquerda era mesmo o de JK e o da direita, do Geraldo? Só o afoito e competente Tarlis, que comandara a ruidosa expedição de resgate desde o IML. Daí nasceram a hipótese e a especulação jamais esclarecidas. O próprio Cony já levantou essa bola em uma das suas crônicas na Folha de S.Paulo sob o título Coisas que Acontecem, publicada em 4 de junho de 2005.
Estou levantando outra. O posicionamento dos caixões semelhantes e sem clara identificação foi aleatório? Apenas convencionou-se, na pressa, ali no Russell ou à saída do IML, qual era o ataúde que abrigava JK? Do prédio da Manchete, o corpo de JK foi levado ao Aeroporto Santos Dumont, de onde, com escala no Galeão para troca de avião, foi transportado ao Campo da Esperança, em Brasília. Anos depois, os restos mortais tidos como os de JK foram exumados e levados para o Memorial, onde permanecem em uma urna de mármore negro. Curiosamente, nenhum membro da família Kubitschek, segundo apurou o jornalista Timóteo Lopes, esteve presente à exumação. Já o corpo de Geraldo foi enterrado no Cemitério São João Batista, no Rio, e, depois, exumado e levado para Belo Horizonte. Eis o mistério. Como diz Cony na sua crônica, “quem quiser que acredite”. Quem cobriu ou acompanhou o enterro de JK sabe que a pressa e o afobamento marcaram a cerimônia.
À ditadura não interessava que o enterro de um líder cuja influência já parecia ter sido contida pelas fórmulas autoritárias - incluindo-se aí o exílio, a cassação e as ameaças de morte - se transformasse em manifestação política contra o regime. De fato, policiais fardados e à paisana, infiltrados no meio da multidão no percurso entre o prédio da Manchete e o Aeroporto Santos Dumont apressavam ostensivamente o cortejo. A ordem, assim parecia, era fazer o séquito bater algum tipo de recorde de velocidade e chegar logo ao aeroporto rumo a Brasília. Para os militares, o perigo era o Rio, o tambor que repercutiria bem mais que qualquer protesto político na capital federal. Foi tamanha a pressa que não foi permitido aos funcionários da Manchete estender sobre o caixão a Bandeira Nacional. Acabei tendo uma participação casual nesse episódio. O cortejo saiu, ou disparou, e à altura do Hotel Glória um dos motoristas da Manchete me pediu que entregasse ao sobrinho de Adolpho, Pedro Jack Kapeller, o Jaquito, um envelope pardo.
Cortejo de JK. Reprodução

Era a bandeira. Por várias vezes, tentei me aproximar do caixão. Um cordão policial e a multidão compacta me impediram. Além disso, era impossível naquelas condições localizar Jaquito.
Quando o cortejo já se aproximava do Aterro do Flamengo, decidi furar o cordão de policiais de qualquer jeito ou JK chegaria ao aeroporto desbandeirado. Foi o que fiz. Rasguei o envelope, desdobrei a auriverde e lancei-a sobre o caixão. O que era para ser um simples favor ganhou pompa e circunstância. O cortejo parou e a multidão cantou o Hino Nacional.
A cena virou notícia dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo. Para quem tem uma biografia que cabe em poucas linhas, como este que vos fala, o episódio já é alguma coisa. É isso: se a História não me registra, nem deve, eu deixo registrado aqui esse episódio. A morte e o enterro de JK resultaram em uma edição especial da Fatos&Fotos que nos custou pouco mais de vinte e quatro horas de trabalho ininterrupto. Saímos cansados do Russell, com a satisfação de colocar uma revista nas ruas, e fomos parar no bar do Novo Mundo, point de incontáveis happy hours.

(*) (**) Textos extraídos do livro Aconteceu na Manchete, as histórias que ninguém contou - Desiderata, 2008)

domingo, 28 de agosto de 2016

Escultor sugere que estátua de Vinícius seja erguida ao lado da escultura de Tom Jobim, no Arpoador, completando a cena da foto clássica de Carlos Kerr para a revista Manchete, publicada em 1958...

A matéria do Globo sobre a foto da Manchete que inspirou a estátua de Tom Jobim, no Arpoador. Creditada como "Arquivo", a foto hoje clássica é de autoria de Carlos Kerr.

A escultora Christina Motta revelou em entrevista que se baseou em foto da Manchete para homenagear Tom Jobim.
Foto de Ricardo Cassiano/PMRJ

Há cerca de dois anos, o Rio homenageou Tom Jobim com uma estátua no Arpoador.
Na época, a escultora Christina Motta ressaltou em entrevistas que se baseou em uma foto da Manchete.
Na imagem, com o violão ao ombro, Tom parece caminhar no  calçadão de um dos seus locais preferidos na cidade que tanto amou.
No Globo de hoje, na coluna Gente Boa, outro escultor, Edgar Duvivier sugere que Vinicius de Moraes, ao lado de Tom, na foto, também deveria ser lembrado em uma escultura que o mostraria andando, tal qual a cena original da Manchete.
De autoria do fotógrafo Carlos Kerr, essa imagem já clássica foi publicada na Manchete inúmeras vezes. A edição especial Manchete 45 anos destacou e o livro "Aconteceu na Manchete, as histórias que ninguém contou" reproduziu a encontro.
O Globo, infelizmente, credita a foto ao "Arquivo". Embora "Arquivo" seja um "fotógrafo" muito atuante e, provavelmente, um dos que mais assinam mais fotos na mídia e em livros, registre-se que Tom e Vinícius posaram para Carlos Kerr em Brasília, em 1958, nas imediações do Catetinho, uma construção em madeira que era a casa e escritório de JK quando o então presidente visitava a capital em obras.
Em fevereiro de 1958,  JK havia encomendado a Tom e Vinícius uma peça musical em homenagem a Brasília. Logo depois, Oscar Niemeyer convidou a ambos para conhecer a cidade em construção, que seria a fonte de inspiração de "Brasília - Sinfonia da Alvorada".
Manchete cobriu com exclusividade o tour do músico e do poeta, que gravaram a sinfonia em 1960. A peça deveria ter sido apresentada na solenidade de inauguração de Brasília em uma grandioso espetáculo de som, luzes e efeitos especiais. Às vésperas da festa, o espetáculo foi cancelado. Conta-se que JK já acossado pela oposição por denúncias de corrupção durante as obras da nova capital recusou-se a pagar o alto preço cobrado pelos produtores franceses do megashow de "son et lumière".
O público só viria a conhecer trechos da "Sinfonia de Brasília durante um programa na TV Excelsior, em São Paulo, em 1966.
Com o golpe que implantou a ditadura militar, JK e tudo o que a ele se referia caíram no limbo da intolerância política.
Só em 1986, com a saída dos generais-ditadores, Brasília conheceu sua música em um concerto na Praça dos Três Poderes.
Assim aconteceu e assim viraram história Tom, Vinícius e a foto de Carlos Kerr.

Segundo a nota do Globo, o escultor Edgar Duvivier sugere que uma estátua de Vinícius seja colocada ao lado de Tom, completando a cena da foto original e histórica de Carlos Kerr para a Manchete

Em outra foto de Carlos Kerr publicada pela Manchete (reproduzida a edição especial Manchete 45 anos) Vinicius e Tom, na mesma ocasião, recostados em uma árvore do cerrado do Planalto Central. 

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Fernando Brant, JK, O Cruzeiro, Manchete: fototravessia em Minas Gerais...

Foto de Juvenal Pereira, da revista O Cruzeiro, publicada no blog Images&Visions (link abaixo). Milton Nascimento, Fernando Brant e JK, que era o foco de uma matéria para a Manchete, em Diamantina (MG), 1971.

José Carlos Jesus, ex-chefe de reportagem da Manchete, nos enviou a foto acima, que foi publicada pelo fotojornalista Fernando Rabelo no blog Images&Visions, (link abaixo), com o seguinte texto, no destaque: "Este é um belo registro do encontro do ex-presidente Juscelino Kubitschek com Milton Nascimento e Fernando Brant na cidade de Diamantina, em Minas Gerais. A foto é de Juvenal Pereira, que trabalhava com Fernando Brant na Revista O Cruzeiro. Os dois estavam em Diamantina para fazer uma matéria com Milton Nascimento e Lô Borges. "Durante as fotos, encontramos casualmente o ex-presidente Juscelino Kubitschek com a equipe de reportagem da revista Manchete, que era concorrente de O Cruzeiro. A equipe da Manchete concordou em nos ‘emprestar' JK para algumas fotos”, afirmou Juvenal. 
A lembrança que o blog replica vem a propósito de Fernando Brant, jornalista, compositor, parceiro de Milton Nascimento, que fez sua travessia aos 68 anos, no sábado, 13, em Belo Horizonte, vítima de complicações após um transplante de fígado. Com Milton. Lô Borges e Tavinho Moura, Brant escreveu mais de 200 canções, entre as quais a antológica "Travessia".  A foto feita em um tempo que em que uma equipe de uma revista "emprestava" um personagem de uma matéria exclusiva para os colegas da concorrência (isso é algo quase inimaginável, hoje). José Carlos chama atenção para um detalhe: gravado na porta da Variant da equipe, o logo da Manchete. Milton e Brant, eles próprios simbólicos, aparecem aí cercados de ícones de um tempo: JK, Manchete, Cruzeiro, Variant...
VEJA A MATÉRIA NO BLOG IMAGES&VISION, CLIQUE AQUI

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Estátua de Tom Jobim no Arpoador: homenagem ao compositor e uma bela lembrança da Manchete...

Foto Ricardo Cassiano/PMRJ

Foto Ricardo Cassiano/PMRJ

Tom e Vinicius em Brasília, 1958. Foto Carlos Kerr. Reprodução
por José Esmeraldo Gonçalves
O Rio presta uma justa homenagem a Tom Jobim, 20 anos após sua partida, e de quebra lembra a Manchete. Christina Motta, autora da escultura, disse que se baseou em uma foto em que Tom estava com Vinicius de Moraes. Uma feliz inspiração. A foto aí está: foi publicada na Manchete e reproduzida no livro "Aconteceu na Manchete, as histórias que ninguém contou". É de autoria de Carlos Kerr, mostra Tom e Vinícius em Brasília, em 1958, nas proximidades do Catetinho, como eram chamados a casa e o gabinete de JK na futura capital. Naquele mesmo ano, a dupla compôs a "Sinfonia de Brasília". Christina Motta é, entre outras obras, autora da escultura da atriz francesa Brigitte Bardot, em Búzios. 

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Da Via Dutra ao Russell, verdades e mistérios em torno do trágico fim de JK

Rua do Russell, agosto de 1976. O cortejo deixa o prédio da Manchete e conduz JK ao aeroporto Santos Dumont, de onde o corpo seguiu para o Campo da Esperança, em Brasília. Anos depois os restos mortais do ex-presidente seriam transferidos para o Memorial em sua homenagem, na capital federal. Foto; Reprodução Fatos & Fotos.
A Comissão da Verdade da Câmara de Vereadores de São Paulo acaba de divulgar relatório com depoimentos e indícios do assassinato de Juscelino Kubitschek. A apuração aponta como farsa montada pela ditadura a versão de que a causa da morte de JK teria sido um acidente. Segundo o relatório, Geraldo Ribeiro, motorista de JK, teria levado um tiro e perdido o controle do carro que atravessou a pista da Dutra, no dia 22 de agosto de 1976, e colidiu com uma carreta que vinha em sentido contrário. A suspeita do assassinato de JK foi levantada, já na época, quando os militares impediram a autópsia dos corpos do ex-presidente e do seu motorista. Algumas circunstâncias do velório, no hall do prédio da Manchete, no Russell, - como a imposição de caixões lacrados ainda no IML além de uma confusão proposital na movimentação dos esquifes e do cortejo que levou o ex-presidente até o Santos Dumont - foram anormais. Temendo que houvesse alguma manifestação, a polícia "acelerou" o cortejo, chegando a empurrar alguns funcionários da Manchete que ajudavam a levar, nos ombros, o caixão de JK. Em 2003, os jornalistas e escritores Carlos Heitor Cony e Anna Lee levantaram a questão no livro "O Beijo da Morte", que mistura ficção e reportagem. 
por José Esmeraldo Gonçalves 
(texto do autor extraído do livro "Aconteceu na Manchete, as histórias que ninguém contou" publicado pela Desiderata, em 2008)
Morre Juscelino Kubitschek no famoso acidente de carro da Rodovia Dutra. Domingo, fim de tarde, João Luiz Albuquerque, chefe de Reportagem da Manchete, convoca todos os repórteres. A notícia acabara de chegar. Estavam previstas edições especiais da Manchete e da Fatos&Fotos. Cheguei à Redação, ouvi as instruções e logo fui às ruas conversar com políticos, gente que trabalhou com JK e alguns dos seus melhores amigos, como Oscar Niemeyer. Creio que já passava da meia-noite quando voltei ao Russell. Era
madrugada de 23 de agosto de 1976. Havia uma agitação no hall do prédio. Tudo estava sendo preparado para o velório de JK e de seu motorista, Geraldo Ribeiro, que também morreu ao volante do Opala, mas logo ouvi que tinha uma pedra no meio do caminho. Niomar Muniz Sodré queria que o velório fosse no Museu de Arte Moderna, instituição que presidia. Briga de foice na madrugada pela honra de sediar as exéquias de JK. A Manchete tinha um repórter que, em campo, era um trator. Era Tarlis Batista, que tinha uma característica: era “entrão” e, pelo seu temperamento, desempenhava as missões mais difíceis. Se o acesso a determinado evento era proibido, melhor escalar Tarlis. Ele dava um jeito de furar esquemas e resistências. Era brigão também. Bom repórter. Claro que o saudoso Tarlis foi enviado ao IML, onde o corpo de Juscelino era preparado. Àquela altura, a disputa pelo velório já chegara às portas do Instituto Médico Legal. Pressões políticas, uma palavrinha de amigos influentes, valia de tudo. Murilo Melo Filho, então um dos mais importantes diretores da Bloch, contou recentemente ao repórter Timóteo Lopes do antigo site No Mínimo, que naquela madrugada teve até que subornar funcionários para apressar a liberação do corpo de JK. Adolpho Bloch, que no período em que JK era persona non grata dos poderosos, o recebeu e o abrigou no prédio do Russell, montando um gabinete onde o ex-presidente pudesse se dedicar a escrever e receber amigos, fazia questão de se despedir do velho amigo na casa que foi sua referência derradeira. Tinha razão. Se Murilo e Cony, que também foi ao IML, se encarregavam do trabalho, digamos, diplomático, usando luvas e persuasão para resolver o impasse, cabia a Tarlis meter o pé na porta. E foi o que ele fez, atropelando os procedimentos e convencendo uns e outros a queimar etapas no ritual legal. Na madrugada, com o Russell ainda com pouca gente, praticamente só os funcionários da Bloch, uma Kombi estaciona na porta principal do prédio. Sentado ao lado do motorista, Tarlis dava as ordens. “Encosta mais e vai mais à frente, meu irmão, assim fica melhor para desembarcar o caixão”, comandava. Esse era Tarlis. Na Kombi, vinha o corpo de JK. Não sei se havia um segundo veículo trazendo o caixão do Geraldo ou se os dois vinham juntos. Sob as ordens de Tarlis, os caixões de pinho envernizado, absolutamente iguais, foram desembarcados e dispostos lado a lado. JK à esquerda, seu motorista e fiel amigo à direita. O impacto atingira bastante a parte superior dos corpos. Os dois caixões estavam cobertos de cravos vermelhos que formavam desenhos idênticos. A Fatos&Fotos publicou uma foto de d. Sarah e de Márcia Kubitschek ao lado do caixão fechado. As fotos, na época, não mostram os rostos, nem de JK nem de Geraldo. A manta de flores que cobria os caixões também tinha um detalhe semelhante: uma cruz de cravos brancos. Aparentemente, não havia como distingui-los. A dúvida era pertinente. Quem garantia que o caixão da esquerda era mesmo o de JK e o da direita, do Geraldo? Só o afoito e competente Tarlis, que comandara a ruidosa expedição de resgate desde o IML. Daí nasceram a hipótese e a especulação jamais esclarecidas. O próprio Cony já levantou essa bola em uma das suas crônicas na Folha de S.Paulo sob o título Coisas que Acontecem, publicada em 4 de junho de 2005. Estou levantando outra. O posicionamento dos caixões semelhantes e sem clara identificação foi aleatório? Apenas convencionou-se, na pressa, ali no Russell ou à saída do IML, qual era o ataúde que abrigava JK? Do prédio da Manchete, o corpo de JK foi levado ao Aeroporto Santos Dumont, de onde, com escala no Galeão para troca de avião, foi transportado ao Campo da Esperança, em Brasília. Anos depois, os restos mortais tidos como os de JK foram exumados e levados para o Memorial, onde permanecem em uma urna de mármore negro. Curiosamente, nenhum membro da família Kubitschek, segundo apurou o jornalista Timóteo Lopes, esteve presente à exumação. Já o corpo de Geraldo foi enterrado no Cemitério São João Batista, no Rio, e, depois, exumado e levado para Belo Horizonte. Eis o mistério. Como diz Cony na sua crônica, “quem quiser que acredite”. Quem cobriu ou acompanhou o enterro de JK sabe que a pressa e o afobamento marcaram a cerimônia. À
ditadura não interessava que o enterro de um líder cuja influência já parecia ter sido contida pelas fórmulas autoritárias, incluindo-se aí o exílio, a cassação e as ameaças de morte, se transformasse em manifestação política contra o regime. De fato, policiais fardados e à paisana, infiltrados no meio da multidão no percurso entre o prédio da Manchete e o Aeroporto Santos Dumont, apressavam ostensivamente o cortejo. A ordem, assim parecia, era fazer o séquito bater algum tipo de recorde de velocidade e chegar logo ao aeroporto rumo a Brasília. Para os militares, o perigo era o Rio, o tambor que repercutiria bem mais que qualquer protesto político. Foi tamanha a pressa que não foi permitido aos funcionários da Manchete estender sobre o caixão a Bandeira Nacional. Acabei tendo uma participação casual nesse episódio. O cortejo saiu, ou disparou, e à altura do Hotel Glória um dos motoristas da Manchete me pediu que entregasse ao sobrinho de Adolpho, Pedro Jack Kapeller (conhecido como Jaquito), um envelope pardo. Era a bandeira. Por várias vezes, tentei me aproximar do caixão. Um cordão policial e a multidão compacta me impediram. Além disso, era impossível naquelas condições localizar Jaquito. Quando o cortejo já se aproximava do Aterro do Flamengo, decidi furar o cordão de policiais de qualquer jeito ou JK chegaria ao aeroporto desbandeirado. Foi o que fiz. Rasguei o envelope, desdobrei a auriverde e lancei-a sobre o caixão. O que era para ser um simples favor ganhou pompa e circunstância. O cortejo parou e a multidão cantou o Hino Nacional. A cena virou notícia dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo. Para quem tem uma biografia que cabe em poucas linhas, como este que vos fala, o episódio já é alguma coisa. É isso: se a História não me registra, nem deve, eu deixo registrado aqui esse episódio. A morte e o enterro de JK resultaram em uma edição especial da Fatos&Fotos que nos custou pouco mais de vinte e quatro horas de trabalho ininterrupto. Saímos cansados do Russell, com a satisfação de colocar uma revista nas ruas, e fomos parar no bar do Novo Mundo, point de incontáveis happy hours.