A Comissão da Verdade da Câmara de Vereadores de São Paulo acaba de divulgar relatório com depoimentos e indícios do assassinato de Juscelino Kubitschek. A apuração aponta como farsa montada pela ditadura a versão de que a causa da morte de JK teria sido um acidente. Segundo o relatório, Geraldo Ribeiro, motorista de JK, teria levado um tiro e perdido o controle do carro que atravessou a pista da Dutra, no dia 22 de agosto de 1976, e colidiu com uma carreta que vinha em sentido contrário. A suspeita do assassinato de JK foi levantada, já na época, quando os militares impediram a autópsia dos corpos do ex-presidente e do seu motorista. Algumas circunstâncias do velório, no hall do prédio da Manchete, no Russell, - como a imposição de caixões lacrados ainda no IML além de uma confusão proposital na movimentação dos esquifes e do cortejo que levou o ex-presidente até o Santos Dumont - foram anormais. Temendo que houvesse alguma manifestação, a polícia "acelerou" o cortejo, chegando a empurrar alguns funcionários da Manchete que ajudavam a levar, nos ombros, o caixão de JK. Em 2003, os jornalistas e escritores Carlos Heitor Cony e Anna Lee levantaram a questão no livro "O Beijo da Morte", que mistura ficção e reportagem.
por José Esmeraldo Gonçalves
(texto do autor extraído do livro "Aconteceu na Manchete, as histórias que ninguém contou" publicado pela Desiderata, em 2008)
Morre Juscelino Kubitschek no famoso acidente de carro da Rodovia Dutra. Domingo, fim de tarde, João Luiz Albuquerque, chefe de Reportagem da Manchete, convoca todos os repórteres. A notícia acabara de chegar. Estavam previstas edições especiais da Manchete e da Fatos&Fotos. Cheguei à Redação, ouvi as instruções e logo fui às ruas conversar com políticos, gente que trabalhou com JK e alguns dos seus melhores amigos, como Oscar Niemeyer. Creio que já passava da meia-noite quando voltei ao Russell. Era
por José Esmeraldo Gonçalves
(texto do autor extraído do livro "Aconteceu na Manchete, as histórias que ninguém contou" publicado pela Desiderata, em 2008)
Morre Juscelino Kubitschek no famoso acidente de carro da Rodovia Dutra. Domingo, fim de tarde, João Luiz Albuquerque, chefe de Reportagem da Manchete, convoca todos os repórteres. A notícia acabara de chegar. Estavam previstas edições especiais da Manchete e da Fatos&Fotos. Cheguei à Redação, ouvi as instruções e logo fui às ruas conversar com políticos, gente que trabalhou com JK e alguns dos seus melhores amigos, como Oscar Niemeyer. Creio que já passava da meia-noite quando voltei ao Russell. Era
madrugada
de 23 de agosto de 1976. Havia uma agitação no hall do
prédio. Tudo estava sendo preparado para o
velório de JK e de seu motorista, Geraldo Ribeiro, que também
morreu ao volante do Opala, mas logo ouvi que
tinha uma pedra no meio do caminho. Niomar Muniz Sodré
queria que o velório fosse no Museu de Arte
Moderna, instituição que presidia. Briga de foice na
madrugada pela honra de sediar as exéquias de JK. A Manchete
tinha um repórter que, em campo, era um trator. Era Tarlis
Batista, que tinha uma característica: era “entrão” e,
pelo seu temperamento, desempenhava as missões
mais difíceis. Se o acesso a determinado evento era
proibido, melhor escalar Tarlis. Ele dava um jeito de furar
esquemas e resistências. Era brigão também. Bom repórter.
Claro que o saudoso Tarlis foi enviado ao IML, onde o corpo de Juscelino era preparado. Àquela altura, a disputa
pelo velório já chegara às portas do Instituto Médico
Legal. Pressões políticas, uma palavrinha de amigos influentes, valia de tudo. Murilo Melo Filho, então um dos mais
importantes diretores da Bloch, contou recentemente
ao repórter Timóteo Lopes do antigo site No
Mínimo, que naquela madrugada teve até que subornar
funcionários para apressar a liberação do corpo de JK.
Adolpho Bloch, que no período em que JK era persona
non grata dos poderosos, o recebeu e o abrigou no
prédio do Russell, montando um gabinete onde o
ex-presidente pudesse se dedicar a escrever e receber
amigos, fazia questão de se despedir do velho amigo na
casa que foi sua referência derradeira. Tinha
razão. Se Murilo e Cony, que também foi ao IML, se
encarregavam do trabalho, digamos, diplomático, usando
luvas e persuasão para resolver o impasse, cabia a
Tarlis meter o pé na porta. E foi o que ele fez, atropelando
os procedimentos e convencendo uns e outros a
queimar etapas no ritual legal. Na madrugada, com o
Russell ainda com pouca gente, praticamente só os
funcionários da Bloch, uma Kombi estaciona na porta principal
do prédio. Sentado ao lado do motorista, Tarlis dava as
ordens. “Encosta mais e vai mais à frente, meu irmão,
assim fica melhor para desembarcar o caixão”, comandava. Esse era
Tarlis. Na Kombi, vinha o corpo de JK. Não sei se
havia um segundo veículo trazendo o caixão do Geraldo
ou se os dois vinham juntos. Sob as ordens de Tarlis, os
caixões de pinho envernizado, absolutamente iguais,
foram desembarcados e dispostos lado a lado. JK à esquerda,
seu motorista e fiel amigo à direita. O impacto atingira
bastante a parte superior dos corpos. Os dois
caixões estavam cobertos de cravos vermelhos que formavam
desenhos idênticos. A Fatos&Fotos publicou uma foto de
d. Sarah e de Márcia Kubitschek ao lado do caixão
fechado. As fotos, na época, não mostram os rostos, nem
de JK nem de Geraldo. A manta de flores que cobria os
caixões também tinha um detalhe semelhante: uma cruz de
cravos brancos. Aparentemente, não havia como
distingui-los. A dúvida era pertinente. Quem garantia que o
caixão da esquerda era mesmo o de JK e o da direita,
do Geraldo? Só o afoito e competente Tarlis, que comandara a ruidosa expedição de resgate desde o IML. Daí
nasceram a hipótese e a especulação jamais esclarecidas. O próprio
Cony já levantou essa bola em uma das suas
crônicas na Folha de S.Paulo sob o título Coisas que
Acontecem, publicada em 4 de junho de 2005. Estou levantando
outra. O posicionamento dos caixões semelhantes e
sem clara identificação foi aleatório? Apenas convencionou-se,
na pressa, ali no Russell ou à saída do IML, qual
era o ataúde que abrigava JK? Do prédio da Manchete, o
corpo de JK foi levado ao Aeroporto Santos Dumont, de
onde, com escala no Galeão para troca de avião,
foi transportado ao Campo da Esperança, em Brasília.
Anos depois, os restos mortais tidos como os de JK foram
exumados e levados para o Memorial, onde permanecem
em uma urna de mármore negro. Curiosamente, nenhum
membro da família Kubitschek, segundo apurou o
jornalista Timóteo Lopes, esteve presente à exumação.
Já o corpo de Geraldo foi enterrado no Cemitério São João
Batista, no Rio, e, depois, exumado e levado para Belo
Horizonte. Eis o mistério. Como diz Cony na sua
crônica, “quem quiser que acredite”. Quem cobriu
ou acompanhou o enterro de JK sabe que a
pressa e o afobamento marcaram a cerimônia. À
ditadura
não interessava que o enterro de um líder cuja influência
já parecia ter sido contida pelas fórmulas autoritárias, incluindo-se
aí o exílio, a cassação e as ameaças de morte,
se transformasse em manifestação política contra o
regime. De fato, policiais fardados e à paisana, infiltrados no meio da multidão no percurso entre o prédio da Manchete
e o Aeroporto Santos Dumont, apressavam ostensivamente
o cortejo. A ordem, assim parecia, era fazer o séquito
bater algum tipo de recorde de velocidade e chegar
logo ao aeroporto rumo a Brasília. Para os militares, o perigo
era o Rio, o tambor que repercutiria bem mais que
qualquer protesto político. Foi tamanha a pressa que não foi
permitido aos funcionários da Manchete estender sobre o
caixão a Bandeira Nacional. Acabei tendo uma
participação casual nesse episódio. O cortejo saiu, ou
disparou, e à altura do Hotel Glória um dos motoristas da Manchete
me pediu que entregasse ao sobrinho de Adolpho,
Pedro Jack Kapeller (conhecido como Jaquito), um envelope
pardo. Era a bandeira. Por várias vezes, tentei me
aproximar do caixão. Um cordão policial e a multidão compacta me
impediram. Além disso, era impossível naquelas
condições localizar Jaquito. Quando o cortejo já se
aproximava do Aterro do Flamengo, decidi furar o cordão de
policiais de qualquer jeito ou JK chegaria ao aeroporto desbandeirado.
Foi o que fiz. Rasguei o envelope, desdobrei a
auriverde e lancei-a sobre o caixão. O que era para ser um
simples favor ganhou pompa e circunstância. O cortejo
parou e a multidão cantou o Hino Nacional. A cena
virou notícia dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo.
Para quem tem uma biografia que cabe em poucas linhas,
como este que vos fala, o episódio já é alguma coisa. É
isso: se a História não me registra, nem deve, eu deixo
registrado aqui esse episódio. A morte e o
enterro de JK resultaram em uma edição especial da
Fatos&Fotos que nos custou pouco mais de vinte e
quatro horas de trabalho ininterrupto. Saímos cansados do
Russell, com a satisfação de colocar uma revista nas
ruas, e fomos parar no bar do Novo Mundo, point de
incontáveis happy hours.