por José Esmeraldo Gonçalves (para a revista Contigo, abril de 2014)
A jornalista e escritora Marcia Peltier, 59, admite que precisou de uma boa dose de coragem para escrever “Todas as coisas visíveis e invisíveis” (Casa da Palavra). E olha que ela é autora de outros oito livros – três de poesias, quatro infanto-juvenis e um de crônicas. Talvez porque este que lança agora é resultado de um profundo mergulho interior rumo a momentos felizes, realizações e construção de vidas, mas também a incertezas, angústias e a um dos maiores dramas que uma mulher pode sofrer: a perda de um filho.
Durante alguns anos, a jornalista guardou no computador
alguns textos em que, de alguma forma, narrava acontecimentos marcantes de sua
vida. Eram, ao mesmo tempo, autobiográficos e reflexivos. Escrevia-os,
geralmente, sem objetivo de publicá-los. Eram conversas consigo mesma durante
madrugadas silenciosas, quando o celular não tocava e seus compromissos não a
alcançavam. “Um dia, redescobri esses textos no computador. Entendi que, de
alguma forma, tinha começado a contar minha história”, revela à Contigo!,
enquanto caminha entre as árvores do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. Mas o
impulso final que a levaria a tomar a decisão de enfrentar o passado – “Tentei
juntar meus pedaços”, diz - veio, de
forma inesperada, durante uma viagem à Provença, na França, quando visitou a catedral
gótica de Saint-Maximin. Católica fervorosa, Marcia quis conhecer a basílica
cuja figura central é Santa Maria Madalena. “Nunca
pensei muito em Maria Madalena. Nunca me detive na história dessa mulher que
foi tão injustamente retratada no Novo Testamento. Por séculos, ela foi
descrita como uma prostituta arrependida. Salva do pecado após encontrar o
Mestre Jesus”, conta no livro. Marcia, acompanhada de uma amiga, se
misturou a um grupo que assistia a uma missa e, em seguida, foi à cripta onde
estariam os restos mortais tidos como da santa. “Não sei explicar, racionalmente, o que se passou. A verdade é que fui
tomada, literalmente, por uma emoção avassaladora e sem nenhuma lógica”, escreveu
ela, que chorou muito naquele instante, a ponto de deixar os óculos embaçados. Ao
fim da visita, quando se preparava para ir embora, um jovem padre se aproximou,
colocou a mão no ombro da jornalista e começou a rezar. Quando quis saber
porque o padre rezara para ela, este respondeu: “Por que você tem tanto medo?
Você não precisa ter medo. Está tudo certo com você”. E falou que Maria
Madalena lhe concedera uma graça, que podia mudar sua vida pessoal ou
profissional. Marcia, que na hora não entendeu o gesto e as palavras do padre, acredita
que era um recado para que revisasse sua vida, decisão que tomou ao voltar para
o Brasil. “Eu tinha parado de escrever e de certa forma me sentia incompleta. Um
dia, senti uma necessidade enorme de começar a colocar todos aqueles textos que
havia escrito em uma perspectiva atual”, diz, com a certeza de que, por
caminhos inesperados, aquela experiência em Saint-Maximin lhe deu a coragem que
faltava para reencontrar suas incertezas. “O livro foi a forma que encontrei
para reencontrar momentos que estavam adormecidos. comecei a entender que foi
uma graça poder voltar a escrever, no ano passado. Foi uma descoberta, uma reordenação
interior. Ao abordar momentos difíceis, você acaba, vamos dizer assim,
arrumando aquele armário que está um pouco bagunçado, organizando coisas que me
deixaram muitas vezes perplexa, insegura, outras vezes sem saber o que fazer. E
consegui dar um seguimento, uma ordenação a todos aqueles momentos alegres e
tristes, encontrei um caminho e este caminho me trouxe a um momento muito bom
que é este que vivo agora, quando me sinto completa. O armário ficou mais arrumado. Ninguém está
completamente pronta mas me sinto uma pessoa muito inteira. Reencontrar aquelas
minhas histórias e escrever outras foi como se um filme voltasse à minha
mente”, compara.
Marcia é casada há 16 anos com Carlos Arthur Nuzman, 72, presidente
do Comitê Olímpico Brasileiro. Ele foi o primeiro a ler o livro. “Ficou muito
emocionado”, diz ela. “Vocês conhecem o Carlos Arthur de outra maneira”,
explica, referindo-se à imagem pública do marido. Mas ele é um homem muito
sensível nas coisas da vida, presta muita atenção nas pessoas, é muito
religioso (Nuzman é judeu e Marcia diz
que a família é “totalmente ecumênica), então, ele ficou muito emocionado,
falou que não imaginava que a minha cabeça estivesse passando por tantas coisas”.
Entre estas, um drama tão intenso que
custou a Marcia muito anos para assimilar: a morte da filha Anna Rosa – do primeiro
casamento da jornalista, com o empresário Francisco Peltier, 63. A menina nasceu
no dia 11 de junho de 1984 e faleceu em 19 de junho do mesmo ano. E o livro ainda é parte deste processo de
sofrida absorção da tragédia. Anna Rosa nasceu com um raro e grave problema
cardíaco e pulmonar. Chegou a ser operada mas não resistiu. “Nunca fiquei
falando sobre esse assunto”, conta Marcia. “Quantas mulheres vivem isso também,
essas coisas acontecem na vida delas, são perdas muito dolorosas que independem
da idade da criança. Para mim, foi muito difícil lidar com essa perda. Perder
um filho é uma dor e uma presença que fica com você. Há época melhores, épocas
piores. Com o tempo você vai assimilando essa presença, transmutando a dor em
algo para você. Este foi o capítulo mais difícil. É difícil até hoje. Decidi
escrevê-lo porque com isso estou me irmanando a muitas mulheres, acho que é um
capítulo que vai levar um alento a muitas mulheres. Sinto-me, assim, parceira”.
Trinta anos após a morte de Anna Rosa, seu drama é contado em um capítulo
intitulado “Cálice de Sangue”, uma alusão à música que tocava no rádio pouco
antes da cirurgia que tentaria, sem sucesso, salvar a vida da filha. Marcia tem
mais duas filhas, a cineasta Anna Clara, 30, e a advogada Anna Rita, 31, também
do seu casamento com Francisco Peltier. Anna Rosa era a caçula. A primeira
linha do capítulo mais dramático registra a reação de uma das irmãs ao
tema -
“Você vai escrever sobre a Anna
Rosa, mãe?”, me perguntou Anna Rita” – Marcia conta, em seguida, que achava
que não escreveria sobre o fato. Pensava que estava curada daquela imensa dor. “Mas será que estava mesmo?”,
pergunta-se, antes de concluir com um “parece que foi ontem”. Ela revela no
livro que, nessas três décadas, nem sempre foi assim. Durante anos, sofreu uma
espécie de amnésia temporária. “Esquecia
o dia em que ela havia nascido, o dia em que ela morreu, e eu ia em frente
fazendo o que podia para não ser soterrada. (...) Antes, me lembrar dela era
sofrer. Nó na garganta, lágrimas e lágrimas derramadas durante anos. E a
dificuldade física de me aproximar de qualquer bebê. Posso dizer que aquele foi
o grande momento de decisão em minha vida. De quem eu era e quem eu queria ser.
Foi uma linha divisória, antes e depois de Anna Rosa”, escreveu.
Pôr o ponto final no livro foi, segundo diz a jornalista,
algo como voltar a viver. Marcia Peltier conta que as filhas até brincam: “Mãe,
agora você está você”, revela, rindo, acrescentando que Anna Rita e Anna Clara
são, além de tudo, suas grandes amigas. Esse “voltar a viver” não é exagero mas
tem uma implicação muito íntima e interior. Na prática, externamente, Marcia
teve forças para manter sua intensa atividade profissional. Foi “musa do
telejornalismo, viajou e cobriu Copas do Mundo e Olimpíadas. Atualmente, assina
a coluna diária “Livre Acesso”, no Jornal do Commércio, faz o programa semanal
“Marcia Peltier Entrevista”, na CNT, e supervisiona a ONG “Entre Amigas”, que
fundou há cinco anos e que faz um trabalho de assistência e de reinserção da
mulher no mercado de trabalho. A ONG é um projeto do qual ela fala com extremo
interesse e carinho. “Através da “Entre Amigas” procuro ajudar muitas mulheres,
mas na verdade elas me ajudam porque me dão uma alegria enorme. A ideia foi dar
uma segunda chance a mulheres que precisam trabalhar, estudar, que têm
problemas de saúde. É uma instituição autossustentável, totalmente privada,
onde há cursos profissionalizantes, biblioteca, palestras, tem cozinha-escola,
aulas de corte e costura, apoio psicológico para egressas do sistema prisional,
dos abrigos do governo do estado, das comunidades. Já formamos milhares de
pessoas”, conta.
Marcia se diz vaidosa, “como toda mulher”, mas sem
“neuroses” quanto ao corpo. “Eu faço dança, meditação, ando na praia e procuro
ter uma alimentação saudável. Não quero ficar magérrima, quero me sentir bem
com o meu corpo. Sei que não vou ter meu corpo de 20 anos, 30 anos, mas tenho
que está feliz com ele. Busco o bem-estar, principalmente”. E não teme
envelhecer. “Acho que a vida passar é um movimento ao qual temos que nos
acostumar. Cada momento da vida traz uma alegria diferente”, conclui. Marcia
vive uma dessas alegrias. Ganhou há seis meses seu primeiro neto, Rafael, filho
de Anna Rita.
3 comentários:
Se recordar é viver, na palavras do poeta, essa reportagem é a prova de que o poeta tem razão. Só você, Esmeraldo, poderia contar.– como você contou – um pouco da vida e da experiência porque passou essa mulher corajosa e jornalista, Márcia Peltier. Todas nós temos uma história em nossas vidas. algumas mais tristes outras menos, mas sempre uma história. Márcia Peltier, não tenho dúvida, foi tocada por Deus que lhe abriu um novo caminho.
Nada acontece por acaso na vida e Marcia Peltier, iluminada, pela graça de Maria Madalena vai trazer outros livros cheios de emoção e histórias da vida humana.
A Márcia, que só conheci na Manchete, pelos corredores dos andares do Russel, sempre me passou a imagem de uma pessoa simpática e tímida (além se muito bonita). Nos telejornais, era a apresentadora segura que os espectadores esperam encontrar. Diferente das de hoje, mais preocupadas com o seu visual do que com a informação. Nunca falei com ela e desconhecia este lado sofrido que a acompanhava, de quem perdera sua primeira filha. Por coincidência, minha filha Andréa, que foi "Chiquita" no programa da Xuxa, na Manchete, também perdeu seu primeiro filho em iguais circunstâncias. Acho que através deste livro, vamos conhecer um pouco mais da Márcia, brilhante jornalista e apresentadora e que ainda vai nos brindar por muitos anos com sua imagem. Excelente o texto do Esmeraldo, outro remanescente da Bloch que, um dia, foi nossa casa.
A Márcia, que só conheci na Manchete, pelos corredores dos andares do Russel, sempre me passou a imagem de uma pessoa simpática e tímida (além se muito bonita). Nos telejornais, era a apresentadora segura que os espectadores esperam encontrar. Diferente das de hoje, mais preocupadas com o seu visual do que com a informação. Nunca falei com ela e desconhecia este lado sofrido que a acompanhava, de quem perdera sua primeira filha. Por coincidência, minha filha Andréa, que foi "Chiquita" no programa da Xuxa, na Manchete, também perdeu seu primeiro filho em iguais circunstâncias. Acho que através deste livro, vamos conhecer um pouco mais da Márcia, brilhante jornalista e apresentadora e que ainda vai nos brindar por muitos anos com sua imagem. Excelente o texto do Esmeraldo, outro remanescente da Bloch que, um dia, foi nossa casa.
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