por José Esmeraldo Gonçalves - para a revista Contigo - (*)
O fotógrafo e documentarista Michael Ende, 55, frequenta a
maior ponte-aérea do mundo. Mora no Rio de Janeiro e trabalha logo ali, na
China, a 17.339 quilômetros. E seus próximos destinos são Rússia, Índia e
África do Sul. Isso mesmo, o roteiro Brics. Nascido em Liepizing, na então
Alemanha Oriental, em 1959 – quando ainda não existia Muro de Berlim – mudou-se
com a família para Wuppertal, na Renânia do Norte-Vestfália. Morando no Brasil
há quase trinta anos, tornou-se um
carioca adotivo. Casado há 18 anos com uma brasileira, a assistente social Isa
Vidinho, 55, Ende mora em Santa Teresa, no centro do Rio, e passa uma boa parte
do seu tempo em um sítio em Guapimirim, na região serrana fluminense. É onde
relaxa entre uma e outra viagem.
“Acordo cinco e meia da manhã, acendo
incensos, faço uma meditação, limpo a casa, faço minha comida, meu pão, e
estudo chinês”, conta.
Mas os dias na serra são agora pausas não muito longas desfrutadas
em meio à realização de um projeto fotográfico de vasto alcance. Depois de
vasculhar todas as regiões do Brasil trabalhando para revistas alemãs, como
Stern e Geo, Ende agora aponta suas câmeras para uma tarefa ambiciosa: retratar
os Brics e conceder à sigla uma imagem humana. Juntos, os países que fazem
parte do grupo reúnem uma população que supera três bilhões de pessoas. São
economias em busca de novas alternativas para crescer, como seus líderes
mostraram durante o 6º Encontro de Cúpula, em Fortaleza (CE), logo após a Copa.
Os números dos Brics são conhecidos. Representam 19% do PIB , 41,6% da população e 26% da área terrestre do planeta.
Michael Ende, contudo, busca as populações e culturas que estão por trás das
estatísticas impessoais. Mostra a cara e alma desses gigantes territoriais e transforma
em imagens suas semelhanças e diferenças. O trabalho – que faz parte do projeto
“Vizinhos Distantes” - é de grande dimensão e está apenas começando. Um
primeiro capítulo já pôde ser visto na mostra “Brasil-China: luz no lixo” que
esteve em cartaz no Centro Cultural da Justiça Federal, no Rio, durante a Copa
do Mundo, e que deverá ser levada a outras capitais. Em fotos e vídeos, Ende espelha
a atividade de catadores brasileiros e chineses. Mostra o lixo globalizado. Fará
o mesmo nos demais Brics e, em seguida, abrirá suas lentes comparativas também para
outros ângulos como a colheita não mecanizada, onde agricultores trabalham com
as próprias mãos, atividade ainda
predominante nos quatros países, ou a forma como cada povo se comporta ao
frequentar, por exemplo, uma praia, ou, ainda, revelará aspectos da culinária e
tipos de beleza em cada região.
Desvendar vizinhos distantes é quase uma
constante na trajetória aventureira do fotógrafo. Desde jovem, ele sinalizava
que queria ter o mundo na sua câmera. Nos anos 1980, quando a globalização nem
era vocábulo, decidiu que Wuppertal era pequena demais para suas objetivas.
“Escrevia
uma coluna no jornal da cidade. Tinha 19 anos, falava de política local e
outros acontecimentos. Fiz também matérias sobre música. Ainda na faculdade
publiquei na revista Stern uma reportagem sobre metaleiros”, diz, acrescentando
que é roqueiro e toca bateria. “Mal” – adverte. “Se tocasse bem seria músico”.
Já
na época, Ende planejava abrir horizontes. “Tinha essa visão. Lembro-me de que
falei para os meus pais que um dia iria para o Brasil. Eles achavam que era
apenas mania de grandeza. Mas logo depois fui para Portugal, me apaixonei pela
cultura e pelo idioma e passei a estudar português”, relata. Enquanto
colaborava com publicações alemãs, ele registrava cenas da vida local, quase
sempre em preto e branco, o que levou um dos seus professores a identificar no
seu estilo algo de Cartier Bresson. Portugal, o “laboratório” onde se
desenvolveu como fotógrafo, acabou se tornando sua ponte para o Brasil. Lá o
jornalista conheceu muitos brasileiros até casualmente receber de um deles, em
1985, um convite para atuar em projetos da Associação Brasileira de Municípios,
em Brasília. “Meu primeiro contato com o Brasil foi uma maravilha. Tive que
fazer uma conexão no Rio, o voo em que vinha de Frankfurt estava atrasado. Eu
fui ao balcão da companhia aérea, agitado e supernervoso, temendo perder o
avião para Brasília. E a primeira brasileira que conheci sorriu e disse “meu
amor, calma, vai ter outro voo depois”. Tinha 25 anos e achei maravilhosa
aquela voz doce e o primeiro contato com o conceito de ‘nada- funciona-mas-no-final-tudo-se-resolve’”,
recorda-se Ende que, hoje, “com a
idade”, admite que já não leva tão na “esportiva’ situações como aquela. Logo
constatou que o tal trabalho que desenvolveria em Brasília era um desses casos
do tipo “nada funciona”. Não funcionou. “Parecia um cabide de emprego, era um
nada”, diz ele. Mas já fascinado com o país, o fotógrafo partiu para conseguir
um visto de permanência, retomou os contatos e “vendeu” para a Stern a ideia de
uma reportagem sobre a espiritualidade no Planalto Central, onde atuava a
médium Neyva Zelaya, líder de uma famosa comunidade mística conhecida como Vale
do Amanhecer. Foi a primeira de muitas reportagens. Requisitado pelos editores
das revistas ilustradas alemãs, fascinados com os temas que os trópicos
ofereciam, Ende acabou deixando Brasília e fixando-se no Rio, em 1988, onde
montou sua base. “Passei a fazer muitas reportagens e vídeos para revistas e
TVs da Alemanha. Percorri toda a América do Sul, todos os estados do Brasil,
reservas indígenas, fronteiras, viajei muito, muito, produzindo textos, fotos e
documentários”, conta. Ele destaca uma reportagem que fez na Amazônia sobre o
Santo Daime. Como uma espécie de tíquete para entrar naquele mundo místico em
plena selva, recomendaram-lhe que
experimentasse o chá ayuasca, que faz
parte do ritual do Daime e é feito de plantas nativas que potencializam a
percepção. “Foi um choque. Você se sente ligado ao universo, reflete sobre sua
vida. Pode ser doloroso. Não é um prazer, não recomendo. As pessoas falam que
uma sessão de ayuasca substitui um
ano de análise. Eu vejo dessa forma. É muito intenso, você direciona seus
pensamentos para seus problemas”, conclui Ende, que transformou a experiência
em um documentário de 116 minutos intitulado “O Vinho das Almas”. A relação com
o Santo Daime parou aí. Ende pratica o budismo. “Como filosofia, não é uma
religião propriamente. É uma maneira de ver a vida, um ensinamento, não me
defino como budista. Mas acredito que existe uma coisa que não
entendemos, não percebemos. Tenho um lado espiritual, uma ligação com
natureza”, explica. Tráfico de drogas, bailes funks, travestis da Lapa, a
perigosa rotina dos pilotos dos pequenos aviões que cruzam a imensidão da
Amazônia foram outros temas nos quais o repórter-fotográfico mergulhou em
dezenas de reportagens. “Eu adorava. Ao lado daqueles pilotos, por exemplo,
conheci o voo “espanta macaco”, quando a pista é tão curta que o avião decola
raspando nas árvores”, ri. Uma das motivações para abrir o horizonte rumo à
China é, de certa forma – explica Ende- sentir ter esgotado o Brasil. “Já estive em
todo lugar. Tenho a impressão de que o Brasil muda muito devagar. As fotos que
fiz há alguns anos, de carnaval, baile funk, por exemplo, podem ser publicadas
hoje, quase nada mudou. Só apareceu mais um piercing
na barriga da menina funkeira. Como fotógrafo, também não tenho mais
curiosidade sobre a Alemanha. Hoje acho que uma realidade como a da China é
mais excitante”, admite.
Curiosamente, o interesse pela China nasceu de uma motivação
jornalística – a crescente importância do país – e ganhou um impulso afetivo
extra. “Há alguns anos, eu havia recomendado à Bárbara , 29, filha do primeiro casamento da Isa, que
estudasse chinês. ‘Esquece o inglês’, brinquei. Ela até começou as aulas mas
logo desistiu. Um dia Isa me deu como presente de Natal uma gramática chinesa
toda riscada. Achei estranho, parecia só um presente barato. Era o livro que a
filha tinha deixado de lado. Só que eu comecei a estudar. Isa se surpreendeu,
não imaginava que iria levar tão a sério”. Ende admite que aprender o idioma
foi fundamental para se movimentar na China já em busca de personagens locais e
suas circunstâncias. “Estou no nível intermediário, escrevo meus emails, falo,
me viro em qualquer situação. Continuo estudando todos os dias”. Desde a
primeira visita – em 2008 - Ende foi aos poucos aprendendo a se movimentar na
China. “Trabalhar no Brasil é mais fácil porque o meu português é bem melhor. O
chinês, por outro lado, é mais aberto. Para mim isso foi uma surpresa. Em
geral, as pessoas têm prazer em serem fotografadas. Lá não tem risco de
segurança, a desconfiança é zero. Apenas uma vez tive problema com a polícia.
Mas eles chegaram falando “com licença, o que vocês estão fazendo aqui”. Eu
estava acompanhado da minha assistente e expliquei que registrava imagens de
reciclagem. “Não pode. Posso convidar vocês para irem até a delegacia?”, disse
o policial. Fomos, nos ofereceram chá. O delegado pediu para ver as fotos,
explicou que a cidade, Yanji (na província de Jili, fronteira da Coréia do
Norte), estava em campanha para melhorar a imagem. Perguntou se eu podia
deletá-las. Deletei. Mais chá, pedidos de desculpas e saímos. Já na rua, minha
assistente na China e na Rússia, a arquiteta e designer Daria Lisaya, que é
filha de uma russa, o pai é da Moldávia, e trabalha comigo nem projetos nos
dois países, reclamou: “’Você é burro. Podia ter deletado uma foto só. O
delegado só queria mostrar serviço diante dos seus subordinados”. No dia
seguinte, voltei ao local. Fiquei na cidade por duas semanas e não fui mais
incomodado”, conta. São lições do “jeitinho chinês” que se acumulam desde 2008,
quando Ende foi à China pela primeira vez. “Viajei com um grupo de estudantes
brasileiros. Ficaria apenas quatro semanas mas logo nos primeiros dias mostrei
fotos de uma série que chamei de “Rio by Night” e logo me convidaram para fazer
uma exposição. Liguei para Isa e disse: ‘amor, vou te falar uma coisa, tá muito bom aqui, vou ficar uns meses’.
Tudo aconteceu com uma rapidez enorme. Fiz a exposição, exibi o filme do Daime.
Passei a ficar seis meses lá, seis meses aqui. Dei aulas de fotografia na
Nanquim Communication University, por dois anos. E agora fui chamado pela
Kennedy School, que leva mestres de várias áreas para ensinar na China”,
revela.
Em setembro, Ende embarca de novo na ponte-aérea para a
China. Embora entusiasmado com mais um capítulo do projeto “Vizinhos
Distantes”, admite que passar tanto tempo não é fácil, sobretudo em relação ao casamento.
“É difícil. De um lado é bom porque não cai na rotina. Isa é mais tranquila. Eu
gosto de descobrir coisas novas, me sinto deslumbrado por viver a cultura do
país. Mas Isa já foi à China umas cinco vezes. E esteve ao meu lado no aterro
sanitário de Gericinó. Gosta da Bola Preta mas sacrificou o carnaval e me
ajudou muito na produção das fotos”, finaliza.
(*) Texto com trechos extras
7 comentários:
O Brasil não usa o lixo nem tira riquezas dele como fazem alguns paises. Em Terezina um lixao chama urubu prejudica aeroporto e pode dar em acidente.
Esmeraldo,
essas matérias já foram publicadas na "Contigo "?
Sim, Barros, são da Contigo.
Uma maneira criativa de abordar os Brics. Quase sempre só falam deles sobre economia, números. E são países de grandes populações
A India, um dos Brics, deve ter muito lixo. Já li que lá é difícil encontrar merda sòlida. A caganeira é uma paixão nacional.
E a Índia tem a bomba atômica e foguetes lançadores de ogivas nucleares, apesar de sua contradição social, dividida em castas há séculos, onde a miséria popular é por demais visível a olho nu.
Das vacas sagradas e dos milhões de pobres que vão cagando nas ruas.
Um dia desses vi uma reportagem em que, hoje, uma modelo famosa, quando criança era uma das centenas de meninas que recolhiam as fezes nas casas de seus moradores, porque não existia saneamento em centenas de cidades na Índia, A reportagem mostrava com fotos os locais nas casas onde defecavam e claro urinavam. As meninas recolhiam as fezes numa cesta de vime e as carregava sobre as cabeças até o local de despejo que poderia ser num terreno vazio qualquer.
Isso se torna um horror no mundo atual. Na Idade Média, na Inglaterra por exemplo, os pisos das casas eram cobertas por palhas porque seus moradores urinavam e defecavam sobre elas, e uma ou duas vezes por mês as palhas eram trocadas porque eles mesmos não aguentavam mais o cheiro que se tornava insuportável depois de alguns dias.
Fico perguntando a mim mesmo como a humanidade conseguiu sobreviver e chegar forte e saudável nos dias hoje depois de tanta imundice, pragas, a peste negra que matou mais de 20 milhões de pessoas na Idade Média e outras doenças como o tifo que matava milhares por ano, a tuberculose enfim sem falar nas guerras tribais, nas guerras de cidades contra cidades, nas guerras de etnias, nas guerras de nações contra nações e apesar de todas essas desgraças o homem sobreviveu e a humanidade está perto de chegar ao alarmante número de 9 bilhões de seres humanos habitando este planetinha. Se o planeta aguentar esse número de habitantes é o que os que sobreviverem vão dizer.
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