terça-feira, 17 de abril de 2018

Memórias da redação: o "Forrest Gump" que viveu no Brasil...


Revista Fatos & Fotos/Reprodução



por José Esmeraldo Gonçalves

Acontece com todo jornalista. Algumas matérias entram na rotativa e logo são esquecidas, são perecíveis. Outras permanecem impressas na memória do repórter.

Em 1976, Justino Martins vivia um dos recorrentes litígios editoriais com Adolpho Bloch e havia sido afastado da direção da Manchete. Depois de uma breve temporada à frente de edições especiais, o gaúcho foi escalado para editar a Fatos & Fotos/Gente. O "Gente" fora acrescentado ao logotipo da revista por conta de uma parceria com a People, então o mais novo e badalado sucesso editorial do mercado americano.

Justino ficou pouco mais de um ano à frente da FF/Gente, mas deixou muitas lições para os jovens repórteres da revista. Lembro que as reuniões de pauta eram marcantes, quase um happening, tantas as histórias pessoais que ele intercalava entre uma e outra sugestão de pauta da equipe. Outra característica do "revisteiro", um dos maiores do Brasil, era chamar os repórteres à mesa para comentar cada texto, mais como aula do que como crítica. Talvez tivesse tempo para fazer isso apenas na sua fase de Fatos & Fotos, semanal que era, digamos, da segunda divisão da Bloch e, embora vivesse em crise, estava longe de ser a panela de pressão que mantinha a Manchete sob eterna vigilância e permanente ebulição.

Depois de uma daquelas reuniões, fomos escalados, eu e a fotógrafa Isabel Garcia, para entrevistar Jean-Gérard Fleury. Justino viajou de Paris para o Rio pelo Concorde, da Air France, e Fleury estava no mesmo voo. Voando a 20 mil metros de altura, à velocidade de 2.500km/h, o jornalista e piloto francês comentou com Justino que não podia deixar de lembrar do Breguet 14, o monomotor da Primeira Guerra com o qual cruzara o Atlântico. Foi desse encontro no Concorde que surgiu a pauta para a F&F.

Na grande mesa de edição em formato "L", no 7° andar do prédio da Rua do Russell, Justino deu instruções para a entrevista enquanto traçou sobre uma folha de diagramação, com uma lapiseira vermelha, a "foto de abertura". Ele sempre fazia esse tipo de storyboard. Raramente era possível conciliar a expectativa com a realidade, mas os fotógrafos até se esforçavam para replicar o tal desenho e, principalmente, voltar com coisa melhor.

Além de receber o desenho, ouvimos de Justino um briefing sobre Jean-Gérard Fleury - jornalista e escritor apaixonado por aviação, autor de livros como "A Linha", e "Caminhos do Céu" e de várias reportagens sobre a Aéropostale, a lendária companhia aérea que teve entre seus pilotos Saint-Exupéry, Jean Mermoz e Henri Guillaumet. Assim abastecidos, partimos para a casa do entrevistado, no Jardim Botânico.

Simpaticíssimo, vê-se pelo sorriso aberto captado por Isabel Garcia, o jornalista-aviador, como se definia, morava no Rio havia muitos anos e era, na época, correspondente do France Soir. Dedicou-nos uma tarde inteira recheada de fatos e fotos. E não podia ser diferente. Não comparei no texto Fleury a um Forrest Gump real porque a entrevista aconteceu em 1976 e o filme com o personagem vivido por Tom Hanks só seria produzido em 1994. Mas seria pertinente. Fleury estava no último voo do Hindenburg para o Rio de Janeiro (logo depois o dirigível foi transferido para a rota do Atlântico Norte e se incendiou em Lakehurst); cobriu a Guerra Civil Espanhola, fez reportagens na URSS de Stalin, conheceu Roosevelt, entrevistou Herman Goering; e denunciou o rearmamento da Alemanha e da Itália antes da Segunda Guerra.

Dos seus arquivos, ele nos cedeu várias imagens desses momentos "Forrest Gump". E posou para a foto de abertura segurando um desenho que Saint-Exupéry lhe dera, que mostra o avião do autor do  "Pequeno Príncipe" perseguido por um caça alemão. Na dedicatória: "Ah! Jean-Gérard Fleury, si se conchon m'attrape, je ne te reverrai plus! - Antoine Saint-Exupery".



Quanto a mim, também saí de lá com uma amável dedicatória (ganhei do entrevistado uma antiga edição do seu livro "Peregrinações Sul-Americanas", lançado no Brasil em 1944) e essa lembrança que a rotativa não apagou. 

5 comentários:

J.A.Barros disse...

Como não podia deixar de ser o "Collector "José Esmeraldo nos surpreende com algumas relíquias de sua coleção, nesse caso uma belíssima e rica coleção.

bqvMANCHETE disse...

Roberto Muggiati enviou ao blog, por email, o seguinte comentário:

Recentemente foram encontrados indícios de que St. Ex teria começado a escrever Voo noturno num hotel da Cinelandia, veja aí trecho de matéria da Istoé: 
 
"Até agora, a passagem de Exupéry pelo Brasil seguia envolta em mistérios. Sobram relatos de parentes de testemunhas que teriam tido contato com ele antes da fama, ocorrida a partir de 1943, com o lançamento de O pequeno príncipe. Mas não há nenhum registro fotográfico da época. Em 22 de abril, em pleno Ano da França no Brasil, Sheila abre uma exposição e lança dois livros sobre o escritor e o principezinho, em São Paulo. Um deles, Antoine de Saint-Exupéry – a história de uma história (Pedra N’água), reúne as pegadas deixadas pelo aviador no País. Entre elas está um trecho do manuscrito de Voo noturno (1931), rabiscado num papel com a logomarca do Hotel Itajubá, no Rio. O documento foi encontrado por Sheila numa biblioteca de Paris. Era no Itajubá, onde havia uma bela vista da Baía de Guanabara, que os pilotos da Aeropostale descansavam."
 
Em 1966, repórter da Manchete - devidamente pautado pelo grande Justino - fui à casa do Fleury, no Alto Jardim Botânico, para entrevistar a viúva de Saint-Exupéry, Consuelo, que viajava pelo Brasil. Saíu uma daquelas matérias de uma página, com a foto dela, a seção tinha uma rubrica, não lembro qual. Infelizmente não tenho cópia da matéria. Agradeceria se alguém tivesse.
Saint-Exupéry gera sempre muito interesse. Se der, transcreva no Panis esta matéria de capa do Guia da Folha de 26/9/2015.
À propos, ouvi dizer que nos voos noturnos da Latecoère os pilotos comiam pão com ovo. . .
Um abraço,
Muggiati 
 

bqvMANCHETE disse...

Sobre St Exupery: da Folha de São Paulo
'Piloto de Guerra' mostra que Saint-Exupéry não foi autor de uma obra só
O sucesso de "O Pequeno Príncipe" parece não ter fim, ainda mais agora que o livro caiu em domínio público e as editoras oportunamente lançam novas traduções para disputar espaço nas listas de mais vendidos. As edições mais recentes -da Zahar, da Companhia das Letrinhas e da Autêntica (com tradução de Gabriel Perissé, resenhado no "Guia" de 30 de maio de 2015)- valorizam o texto com posfácios e apêndices que explicam a gênese do mito. A da Companhia das Letrinhas tem um apêndice com fotos, redigido pela tradutora Mônica Cristina Corrêa, e as informações irão encantar quem já conhece o livro e informar o novato.Tanta evidência pode, entretanto, condenar seu autor, o escritor francês Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), ao papel de autor de uma obra só. Quando escreveu esse que veio a ser o livro de cabeceira de tanta gente, ele já era um piloto-escritor famoso. Como sua obra é toda marcada pela profunda relação com o cotidiano da aviação, é muito difícil dissociar o escritor de suas experiências nos céus.De família aristocrática, católica e tradicionalista, ele sempre quis ser desenhista, mas em 1921 descobriu o avião. Pouco depois, se tornaria um dos pioneiros da aviação civil, como um dos responsáveis pela implantação do sistema de entrega de correspondência via aérea, com passagens inclusive pelo Brasil, onde ganhou o carinhoso apelido de "Zeperri". Dizem, até, que por aqui deixou sementes de baobás hoje frondosos.A profissão lhe propiciou experimentar múltiplas aventuras e riscos, aos quais se juntaram a vivência da liberdade e a busca da identidade, como fica claro nos livros que escreveu. Seu livro de estreia é "O Aviador", publicado em 1926, mas Saint-Exupéry ficou conhecido com "Correio Sul" (1928) e, mais tarde, com "Terra dos Homens" (1939), um relato escrito durante o período de convalescença depois de sofrer um grave acidente aéreo.A eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 1939, põe um ponto final em sua carreira civil. Alistou-se, então, na aeronáutica militar francesa e passou a exercer missões militares em que fotografava, de seu avião, as regiões invadidas pelos alemães. Após a queda e a subsequente ocupação da França pelo poderio militar nazista, ele parte para os Estados Unidos. O motivo "oficial" da viagem seria receber um prêmio por "Terra dos Homens", que fora traduzido no país, mas, de fato, ele queria aproveitar sua popularidade para tentar convencer os americanos a intervirem no conflito. Seu plano inicial era ficar duas semanas e acabou permanecendo quase dois anos. (continua)

bqvMANCHETE disse...

Ainda sobre ST Exupery (da Folha de São Paulo)
(...)
Foi durante esse período que concebeu sua obra mais célebre e também "Piloto de Guerra", que ora retorna numa nova tradução sob os cuidados de Mônica Cristina Corrêa, especialista na obra do autor. O livro, dedicado a narrar a experiência trágica da derrota francesa, é um relato vibrante dos voos de reconhecimento sobre a cidade de Arras, na fronteira da França com a Bélgica, em que se sacrificavam "tripulações como se jogassem copos d'água no incêndio de uma floresta". É um livro-relato em que os fatos misturam-se com as lembranças da infância do narrador-piloto, pois, para ele, esse é o único caminho possível para aliviar o sofrimento.A obra tem em comum com o "O Pequeno Príncipe" o fato de ser um "livro de guerra". Em ambos, há o mesmo movimento em relação ao conflito. A diferença é que, no primeiro, o autor nos oferece um relato realista, enquanto o segundo é uma fábula que "ilumina com luz indireta". A trama desse livro ilustrado quase todo mundo já conhece: um aviador que tem de fazer um pouso forçado no deserto se encontra com um menino vindo do asteroide B-612. É um planeta minúsculo com três vulcões em que germinam sementes de uma planta perigosa, os baobás.

Ele vive sozinho com uma rosa que tosse, germinada de uma semente trazida sabe-se lá de onde. Mas ela lhe dá tanto trabalho e gera tantas dúvidas, que ele se aproveita de uma migração de pássaros e parte para visitar outros asteroides, cada um habitado por um personagem adulto caracterizado por um tipo de mania. É o último deles, um geógrafo, quem lhe sugere visitar a Terra. Ele aterrissa, então, no Saara, onde encontra uma cobra e uma raposa.Saint-Exupéry decidiu também ilustrar sua fábula. Pedia aos amigos para posarem para ele de dia, fazia os desenhos com lápis-aquarela e escrevia o texto à noite. Eles ficaram mais famosos do que o romance. O enorme sucesso de "O Pequeno Príncipe" extrapola o âmbito da literatura. Ao mesmo tempo, impede que o vejamos além dos "excertos que ganharam a redundância dos clichês".O autor não pôde ver o fenômeno em que seu livro se transformou, pois desapareceu no mar Mediterrâneo durante uma missão de reconhecimento, provavelmente abatido por um caça alemão. Em 6 de abril de 1943, o livro foi lançado em Nova York em inglês e, numa tiragem menor, em francês. Só em 1946 foi publicado na França.

Gláucia disse...

Aqui em Natal temos o Baoba do Morro do Careca. Foi plantado por africsnos. Saint-Exupery conheceu essa arvoár aqui quando fazia escalas nos voos postais.Ela ainda pode ser visitada. E chamada Deca Árvore do Poeta.