terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Notícias de Resende

Por ROBERTO MUGGIATI
Um documento raro: este é o famoso "olho" que carimbava as sugestões de matérias temporariamente arquivadas ou colocadas na "geladeira" após as reuniões de pauta da revista Manchete. Eram assuntos que ganhavam o rótulo "ficar de olho". O símbolo implacável foi  clonado de um "olho" do quadro Guernica, de Picasso. Foto: Acervo Muggiati.

Apesar do nome pomposo em latim, este Panis existe para compartilharmos o pão nosso de cada dia das boas memórias e das amizades que desfrutamos nos anos da Bloch, apesar de vivermos a maior parte do tempo naquilo que, num texto do século passado, batizei de “o inferno das redações”.
O Panis Cum Ovum se tornou também um farol na noite escura dos relacionamentos que se esfacelaram com o fim da Bloch. Outro dia, soubemos da morte de uma figura querida, o Gastão René Friedman, vulgo UFO. E, quem deu a triste notícia foi o João Resende, outra figura querida, alegrando-nos com a boa notícia de que está vivo e passa bem em Minas Gerais. Em suas próprias palavras:
“Me aposentei na Funarte (ex-Embrafilme, ex-Fundação do Cinema) há uns 15 anos, como redator da Assessoria de Imprensa. Agora coço o saco aqui em Juiz, com meus cachorros. Retornei à cidade meio que por inércia, Juiz de Fora é muuuito feia, embora ‘prática’ para se viver. O Rio ficou inviável...”
O João fala em cachorros, mas, se não me falha a memória, quando o conheci ele tinha um destes minipinchers ou chihuahuas que contrabandeava para dentro da redação numa bolsa de ginástica. Não era inglês, mas era excêntrico (o Resende, não o cachorro), talvez por conta da sua mineirice. Que ele volta e meia invocava. Certa vez, candidatou-se a um posto na Rádio Canadá, país onde morava sua irmã, quando o Jaquito resolveu promovê-lo da noite para o dia. A Manchete tinha perdido o titular de uma sucursal importante – não sei se Nova York ou Salvador da Bahia – e Jaquito adentrou a redação com a ordem:
– Resende, vai fazer as malas, amanhã você viaja para assumir a sucursal de X!...
– Uai, sô, Jaquito! Eu sou mineiro. Com mineiro a coisa não é assim, tão atropelada. . .
Talvez por isso ele tenha recebido outra ordem do Jaquito, tempos depois:
– Pode esvaziar as gavetas. . .
Em meados de 1975, quando Adolpho Bloch tirou o Justino Martins da direção da Manchete e me botou no lugar do “Índio”, que ele não conseguia engolir, assumi o cargo mais prestigioso e mais perigoso de toda a empresa. Para fazer uma boa revista que esgotasse nas bancas toda semana eu contava com a figura fundamental do chefe de reportagem, na época o João Luiz de Albuquerque. João Luiz formava com dois fieis escudeiros – João Resende e Suzana Tebet – a troika que se contrapunha ao trio Karamabloch: Adolpho, Oscar e Jaquito. (Para os não-iniciados, nascido em Kiev, Adolpho sempre foi ligado aos assuntos russos e era fascinado pela troika que comandava o Kremlin, na verdade um troika de araque, porque quem mandava mesmo era o Leonid Brejnev, assim como quem mandava na Bloch era só o Adolpho.)
De um diretor novo exigiam-se novas atitudes. Na verdade, todo mundo queria mandar na Manchete e plantar suas matérias na importante revista. Logo me impuseram uma reunião de pauta “monstro” – um pleno ampliado – em que editores de todas as revistas da Bloch davam palpite. O editor da Agricultura de Hoje sugeria uma reportagem sobre a febre aftosa; o da Tendência, outras sobre “insumos”; e por aí vai. Como diretor da Manchete, eu era obrigado a me pronunciar sobre cada sugestão de matéria. João Luiz, João Rezende e Suzana Tebet anotavam tudo. Às matérias brochantes – que não venderiam revista nemporumca (para adotar um palavrão cifrado do Ney Bianchi) – eu dizia, com a maior solenidade: “Interessante, vamos ficar de olho...” Acabava a reunião com 60 a 70% das sugestões destinadas ao insondável olho do Muggiati.
João Luiz, Resende e Suzana, mais do que as reportagens em si, adoravam o jogo que cercava todo o andamento da coisa, adoravam monitorar o follow-up, eram também fascinados por artigos de papelaria, compravam os últimos fichários de acrílico, pranchetas transparentes de cores ácidas (uma influência retardada da revolução psicodélica no universo burocrático) e inventaram então um carimbo para chancelar todas aquelas sugestões mandadas para “o olho”. João Luiz deu uma de gênio e arrancou o olho da Guernica do Picasso e o transformou em carimbo. Guardo até hoje a matriz em ferro pregada num pedaço de madeira e o próprio carimbo de borracha, dos tempos em que se usava aquela almofada de tinta. Há pouco, por motivos sentimentais, mandei fazer um destes carimbos modernos (o meu é Made in Taiwan) com o olho da Guernica, que transformei em meu ex-libris, principalmente porque o quadro de Picasso foi pintado no ano em que nasci, 1937, e porque é o primeiro quadro-reportagem da História, e casa com o título do meu livro de memórias (brevemente, nas melhores livrarias) A vida é uma reportagem.
João Resende é uma figura que daria um daqueles perfis da Seleções do Reader’s Digest intitulado “Meu tipo inesquecível”. Fazia uma dupla dinâmica com o Jorge Aquino Filho, do clã dos Aquino de São João da Barra, produtores do famoso Conhaque de Alcatrão. Não me contenho e transcrevo esta história do Patriarca:
“Tudo começou em 1908, quando Joaquim Thomaz de Aquino Filho iniciou a produção da bebida que, até então, se chamava Cognac de Alcatrão da Noruega. Rapidamente, o atual Conhaque de Alcatrão São João da Barra - feito de destilado de cana e extrato de alcatrão - ganhou popularidade, virando tradição nacional e adquirindo a fama de "Conhaque do Milagre". O criador do "santo remédio" foi pai de 23 filhos com a primeira mulher e ainda teve outros dois, no segundo casamento.”
Como o Patriarca, o Conhaque de Alcatrão também deu filhotes, entre eles a cachaça Praianinha e a vodca Kovak. Como um dos primeiros clientes de Gráficos Bloch, que imprimia seus rótulos, e depois anunciante forte da Manchete, colocou muitos herdeiros para trabalhar como jornalista na Bloch. Ruth de Aquino, por exemplo, que se tornaria a primeira mulher diretora de jornal no Brasil (O Dia, do Rio).
Assim, Jorge de Aquino Filho foi trabalhar como repórter na Manchete. Uma das crianças sobreviventes do terrível incêndio do Gran Circus Norte-Americano em Niterói, em 1961 (500 morreram), Aquino era gordo, por conta de sequelas das queimaduras que sofreu.Usava sempre calça jeans e um daqueles blusões claros com fechamento de zíper que chamavam de slacks.
João Resende era muito desligado, só sabia que precisava abastecer seu carro com álcool quando o carro parava, por absoluta falta de combustível. Providencialmente, o Aquino forrava sempre o porta-malas do carro do Resende com meia dúzia de vodcas Kovac. Era só abrir a tampa do tanque e desovar dois litros que a máquina pegava de pronto e levava até o posto mais próximo.
Resende martirizou-se a escrever durante um ano uma matéria genial que só ele desencavara, não sei de onde, talvez de suas aulas de planador em Juiz de Fora. Sim, planador, sabem o que é? Um avião sem motor. Só o João Resende, mesmo. . . A matéria tinha a ver com um plano secreto dos nazistas para invadir o Brasil com uma frota de zepelins, ou coisa parecida. Um belo dia, com toda a solenidade que o evento exigia (só faltou o champanhe), João Resende deitou sobre a mesa do editor a decantada matéria: “Evém zepelim,” começava, no melhor estilo mineiro à Guimarães Rosa. Sequer lembro também se a matéria chegou a ser publicada.
Ave, Resende, apareça por aqui, vamos rachar um panis. . . de queijo. . .

8 comentários:

Nilton Muniz disse...

Olá, Muggiati, tudo bem? Adorei os "recuerdos". A Manchete é pródiga em produzir histórias engraçadíssimas. A Boa do José Resende foi quando chegou ao 11º andar para ocupar uma sala no andar da diretoria. Lá estando, e como não conhecia nada, na hora que sentiu vontade de se aliviar, perguntou ao vizinho Zevi. Este não perdeu a sacanagem e prontamente indicou um armário na mesma sala. E não é que ele desabotoou e mandou ver ali mesmo? E a melhor do Jorge de Aquino, para mim, continua sendo a da banheira que ele mandou colocar na vaga do carro que tinha direito no prédio que morava, para que ninguém a usasse...Mas hilário mesmo foi o que o saudoso Alberto fez com o pobre do Aquino quando tomou conhecimento do caso. Um primor. E aí, o Sax continua afiado?

Abraços.
Nilton Muniz

Esmeraldo disse...

Aquino tinha um estoque de vodca Kovak muito apreciado na redaçao

Nilton Muniz disse...

Esmeraldo, melhor que o estoque de Vodka do Aquino era o do Célio Lyra ( um armário com excelente estoque de uisques, vinhos de boas safras e ricas iguarias) que foram "confiscados" descaradamente pelo Raul Giudicelli após o desterro daquele.

Esmeraldo disse...

Pôxa, não fui apresentado a esse bar do Célio Lyra. Já a adega do Aquino ficava em uma caixa, na redação. O pessoal ia bebendo em copos de café, as "provas do crime", as garrafas vazias, eram passadas para o fundo do armário

Nilton Muniz disse...

Bom dia, Esmeraldo. Pergunte a Jussara. Ela era uma das responsáveis pela chave que escondia um verdadeiro "butim" acumulado e nunca compartilhado...Grande abraço.

Esmeraldo disse...

Bom dia, Nilton, pois é, um "butim" perdido, não há de ser nada, rs rs rs

João Resende disse...

Somente hoje li o comentário do Nilton. Parece que confundiu os Resende: ele cita um José Resende, que evidentemente não sou eu, João - aliás nunca frequentei o 11 andar... Talvez se refira ao Zé Rezende Peres, diretor da Agricultura Hoje.
Costumavam me donfundir também com outro João Resende (ou Rezende), que andou pela Manchete como colunista social e depois se casou com a Hildegarde Angel...
Corrigindo o Mugiatti: a reportagem sobre os zeppelins não tinha nada a ver com invasão nazista ou coisa assim. Comemoravm-se os 50 anos da primeira viagem do LZ 127 "Graf Zeppelin" ao Brasil, em 1930. Eu conseguira reunir um vasto material fotográfico inédito sobre as viagens transatlânticas periódicas que o "Graf" e, posteriormente, o seu irmão mais novo LZ-129 "Hindenburg" fizeram ao na rota Frankfurt-Recife-Rio. Chegamos a entrevistar quatro passageiros ainda vivos, entre eles Gustavo Capanema, ministro da Educação e Cultura de Getúlio Vargas.
Infelizmente a matéria foi reduzida a três ou quatro páginas (creio que pelo Justino Martins). Havia realmente uma questão delicada: embora o peseoal da Companhia Aérea Zeppelin vivesse às turras com o governo nazista, os dois dirigíveis passaram a ostentar enormes suásticas na cauda. Penso que isso melindrou os editores da Manchete...

Nilton Muniz disse...

Prezado Senhor João Resende, tens total razão. A pessoa em questão era o Zé Rezende Peres. Desculpe o transtorno. Bem, esclarecido a confusão entre João e Josés, mantenho a história, prá lá de boa, para a quem a vivenciou. Um dia contarei algumas outras protagonzadas no mesmo andar por Dr. Dirceu Nascimento, o mau humorado Oscar Bloch e outros.