terça-feira, 4 de setembro de 2018

"Uma foto de capa roubada – Fatos & Fotos, abril de 1968” - Por Armando Rozário

Em 19 de março de 2013, Armando Rozário escreveu para Clínica Literária o artigo abaixo, também reproduzido no Observatório da Imprensa. 


por Armando Rozário

"Tudo aconteceu há 45 anos. Era o dia 4 de abril de 1968, eu trabalhava para a revista semanal Fatos & Fotos, cobrindo a missa de 7º dia, na Igreja da Candelária, para o estudante Edson Luís de Lima Souto. (O estudante secundarista brasileiro assassinado pela Polícia Militar durante um confronto no restaurante Calabouço, centro do Rio de Janeiro, em 28 de março de 1968. Edson foi o primeiro estudante assassinado pela ditadura militar. Sua morte marcou o início de um ano turbulento de mobilizações contra o regime militar que endureceu até decretar o chamado AI-5.)

Levei uma câmara Leica M3 e três objetivas de diferentes distâncias focais: uma 35mm, uma 50 mm e uma 135mm. Também levei, em minha mochila, uma unidade compacta de flash eletrônico, uma Mighty Lite, que pode ser recarregada rapidamente a cada descarga. Tinha comigo quatro rolos de filmes Tri-X, cada um com 36 exposições, e dois rolos de Ektachrome, cada um com 20 exposições.

Milhares de pessoas estavam no entorno da igreja, no centro do Rio, quando eu cheguei, meia hora antes de começar a cerimônia religiosa. A igreja já estava lotada, centenas de pessoas aguardavam a missa começar. Cliquei um rolo inteiro em preto & branco (Tri-X), enfocando principalmente as expressões de tristeza estampadas nas faces dos estudantes que estavam dentro da igreja. Utilizei a objetiva normal de 50mm e a tele de 135mm. Quando terminei de clicar o primeiro rolo, decidi aguardar do lado de fora da igreja. Estava curioso, queria ver a chegada da polícia.

Não precisei esperar muitos minutos, ouvi alguém gritar que a cavalaria da Polícia Militar já se aproximava da intersecção da Avenida Rio Branco com a Avenida Presidente Vargas.

Olhei naquela direção e vi uma coluna de montarias a aproximadamente 100 metros da igreja. As condições de luz estavam reduzindo, mesmo assim carreguei minha Leica com um rolo de Ektachrome (64 ASA), adaptei na câmara a objetiva angular de 35mm. A conectei também com a minha unidade de flash. Ajustei a posição “F” da objetiva da câmara para 3.5 (abertura total) e ajustei a velocidade para 1/50 avos de segundo. Pré-ajustei a distância da objetiva para 3 metros. E aguardei ansiosamente.

De repente ouvi algumas vozes, movi meus olhos para a esquerda e vi uma linha de padres e estudantes saindo da igreja. Movi os olhos para a direita e vi a coluna da cavalaria, dúzias de policiais militares, armados com espadas em seus cinturões. Os padres marchavam pacificamente com seus braços interligados… Estavam a aproximadamente 20 metros à minha esquerda. Os policiais montados à minha direita trotearam decididamente na direção da linha de pessoas que saiam da igreja. Apenas uns 50 metros separavam os dois grupos oponentes.

Tomei uma decisão. Decidi fotografar o exato momento do confronto iminente. Dei um passo à frente, esperando no espaço onde o encontro pudesse acontecer. Minha câmera e o flash estavam prontos para disparar. Os dois grupos se aproximaram. Os padres e estudantes gritavam alto que aquilo era uma marcha pacífica.

De repente, os policiais montados galoparam e fecharam o espaço entre os dois grupos. O oficial no comando, um tenente, gritou alto para que as pessoas dispersassem. Dentro de poucos segundos o oficial estava cara a cara com a linha de protestantes. Ele olhou para baixo e viu um padre a sua frente, com os braços abertos, implorando pela segurança das pessoas. O policial montado desembainhou sua espada da cintura, levantou a espada com um gesto ameaçador, e ameaçou dar um golpe na cabeça do padre.

Nesse decisivo momento eu estava a aproximadamente 4 metros da cena. O padre estava no canto esquerdo do meu visor e o policial montado, no canto direito. Pressionei o obturador naquele exato momento. Senti que aquela imagem poderia ser a capa da próxima edição da Fatos & Fotos.

Poucos segundos mais tarde, os policiais montados haviam dispersado a multidão com as suas espadas em punho. Cliquei algumas imagens desse acontecimento, mas o mais importante já estava em minha câmara. Uma imagem latente, uma imagem ainda não revelada. A imagem composta verticalmente do encontro do oficial com o padre.

Então decidi ir para a redação da Bloch Editores o mais rápido possível, com minha valiosa imagem na câmera. Caminhei até a Lapa, uns dois quilômetros, e com sorte consegui tomar um táxi. Ele me levou diretamente para Rua Frei Caneca, 511. Lá eu entreguei os dois rolos de filmes diretamente no laboratório, para serem revelados, apontando que o filme colorido era o mais importante. Dentro de 70 minutos eu pude ver o resultado. A mais importante imagem havia sido perfeitamente enquadrada na posição vertical, o foco era perfeito e a exposição, também.

Cortei o filme em tiras de seis exposições cada e mostrei a melhor para o editor da revista. O diretor de arte me acompanhou ao laboratório. A fotograma/slide foi colocada em um suporte de negativos/slides do ampliador Leitz Focomat Ic, e projetada em uma folha de layout da capa da revista.

A foto foi aprovada pelos editores e enviada para os scanners para preparar a separação de cores, os fotolitos e as chapas de impressão da gráfica. Meia hora mais tarde eu fui informado de que os “cromos” de minha foto haviam sumido (sic). Não apenas a foto, mas as chapas de impressão haviam também desaparecido.

Quem eram os meus colegas, editores e diretores da Bloch Editores em abril de 1968? Eram, entre outros, Adolpho Bloch, Arnaldo Niskier, Justino Martins, Raul Giudicelli, Richard Sasso, Wilson Passos, Aaron Weissman, Sérgio de Souza, Hélio Santos e Gervásio Baptista. Alguns deles talvez se lembrem do que aconteceu naquela noite na Rua Frei Caneca, 511.

É importante mencionar que alguns (uns poucos) jornalistas da Bloch Editores foram informantes da Marinha e do Exército em 1968.

Fatos & Fotos de 4 de abril de 1968: minha foto de capa ficou desaparecida para sempre."

(*) Armando Rozário faleceu no último domingo, aos 86 anos. 

Fotomemória: Fatos & Fotos com a cobertura da missa de Sétimo Dia para Edson Luís, da qual Armando Rozário participou. Faltou a imagem mais dramática, que a redação escolheu para capa e... sumiu na gráfica. 








Atualização em 12/9/2018 - O delator que premiava... Como adendo aos fatos narrados por  Armando Rozário, sobre a foto de capa escamoteada da redação da Fatos & Fotos, o blog recebeu pelo menos duas manifestações sobre os anos de chumbo, e não apenas os das emanações das linotipos. Uma, lembra que um dos grandes clientes da Bloch, na época, era a Embaixada americana, que encomendava à editora coleções de livros que distribuía como propaganda em escolas e instituições brasileiras. Havia um funcionário da representação dos Estados Unidos que praticamente dava plantão na diretoria da empresa. O sujeito tinha passe livre, circulava pelas redações e bisbilhotava o que ia ser publicado. Quando encontrava alguma inconveniência - geralmente textos com críticas aos EUA, mesmo em matérias internacionais, ou à ditadura -, acionava diretamente a superintendência que, em geral, vetava as matérias apontadas pelo delator que, afinal, premiava a Bloch com encomendas gráficas. São grandes as chances de que a foto de capa afanada tenha sido levada pela mão leve do turista nada acidental, que excursionava na redação em nome da embaixada. Mas, como Rozário lembra, havia outros. Um deles, recorda outro leitor, viu sobre a mesa de edição da Fatos & Fotos, em 1976, um texto que voltava a focalizar o caso que envolveu Wilson Simonal e seu contador cinco anos antes (em 1971, o cantor desconfiou que seu funcionário estava desviando dinheiro e acionou amigos no temido Dops que sequestraram e torturam o rapaz. Simonal acabou condenado por "extorsão mediante sequestro" e ganhou a fama de dedo-duro). Poucos minutos depois da incursão do xereta, o então editor, Justino Martins teve que retirar a reportagem da pauta. Eram tempos difíceis, quando as redações de jornais e revistas conviviam com a censura oficial e também com aqueles cheerleaders do regime, geralmente íntimos das respectivas direções. 


Um comentário:

Wedner disse...

Para quem está pedindo a volta da ditadura é uma lembrança necessária. As redações assim como colégios, sindicatos e universidades tinham seus dedos duros que trabalhavam para os militares, foram responsáveis por muitas prisões, torturas e assassinatos.