terça-feira, 25 de setembro de 2018

Eu vi (e vivi) o Exército... e não gostei • Por Roberto Muggiati

Com minha mãe no baile da Sociedade Thalia


Confraternização na caserna com o cadete das Agulhas Negras Pimpão
(o nome diz tudo), veja minha cara de tédio.


Por Roberto Muggiati
Fotos: Arquivo Pessoal

Arrastando-me de noites insones pela manhã de Botafogo, depois de – num gesto de cortesia e para fazer algum exercício – passear os cachorros Belo e Linda, de minha doce amiga e vizinha Dona Irinéia, 92 anos, costumo tomar o café da manhã tardio – já tem gente chegando para o almoço à quilo, sim com crase mesmo, é mais gostoso – na Lanchonete Kemp’s (preciso perguntar se é homenagem ao herói argentino da Copa de 78). Média meio-a-meio com pão-na-chapa tostadíssimo, o melhor do Rio, apenas seis 'real', servido por uma garçonete mignon fofíssima - a Gabriela, de Carnaubal, CE -  com um sorriso que já me faz ganhar o dia.

A capa da biografia do patrono da Arma  de Engenharia.

Atravessando a Rua das Palmeiras, esquina com Voluntários, tem um xexelento sebo de rua ao qual não resisto. Hoje mesmo encontrei – e comprei – um livro sobre o patrono da arma de engenharia, Vilagran Cabrita – um uruguaio, imaginem só – biografia assinada pelo General A. de Lyra Tavares – o Aurélio que não era o Aurélio e cometia poesias sob o pseudônimo um tanto suspeito de Adelyta, imortal da ABL.

Abro mais um parêntese. Fui colega de vestibular do Itamaraty em 1965 dos irmãos Alfredo e Mário Grieco, cujo pai também diplomata, Donatelo, era filho do velho Agripino Grieco. Não passei no Itamaraty e tive de me consolar com a Manchete, acho que até foi melhor assim. Com seu invejável “QI”, Alfredo foi designado, nos Anos de Chumbo, para seu primeiro cargo no exterior, na Embaixada do Brasil em Paris, avenue Montaigne, uma rua de nobreza excepcional. Ao chegar, o embaixador, Aurélio de Lyra Tavares, designou-lhe uma mesa no posto mais nobre da grande sala no andar térreo. “Mas, embaixador,” contestou o Alfredo “por que está me colocando na mesa mais hierárquica da sala, que deveria caber ao embaixador?” O general-embaixador respondeu: “Com todas estas bombas explodindo por aí, este lugar, perto da janela dando para a rua, é o mais visado...” Por estas e outras, Alfredo não ficaria muito tempo na carrière. Em 1985, foi colaborador da revista Fatos, da Bloch, um projeto que, vinculado a Tancredo Neves, começou sua vida já na UTI e fecharia pouco mais de um ano depois.

Voltando à manhã de hoje. No livro sobre Vilagran Cabrita é transcrito o hino da engenharia – que eu era forçado a suportar no CPOR – e, justamente, as letras são “versos do tenente A. Lyra Tavares.” Uma pequena amostra; “Companhia de louros e de glória/ Das vanguardas impávido cruzeiro/ Pois a estrada do triumpho e da victoria/ É feita pelo sapador mineiro.”

Transcrevo a seguir uma memória da minha experiência castrense, encerrada sete anos antes do golpe militar de 1964. O texto foi publicado em 2016 na revista da Academia Paranaense de Letras.


DIREITA, VOLVER! 

1955-1957: Memórias do quartel

Por ROBERTO MUGGIATI

Quartel do CPOR, em Curitiba, hoje: a moldura foi preservada,
o miolo transformado em shopping. Foto: Reprodução


Em dezembro de 1955, terminado o curso científico no Colégio Estadual do Paraná, vesti pela primeira vez a farda. Começava meus dois anos de CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva) no imenso quartel que ocupava uma quadra inteira diante da Praça Oswaldo Cruz, em Curitiba.

Naqueles tempos você só escapava do serviço militar obrigatório se fosse cego ou aleijado. Jovens que se destinavam à universidade podiam fazer o CPOR e fugir do castigo e humilhação de passar dois anos encarcerados como soldado raso na caserna. A coisa funcionava assim: nos meses de férias (dezembro a março e julho), o aspirante a oficial da reserva comparecia ao quartel todo dia (menos domingo) e, no fim da tarde, voltava para casa. Havia marchas forçadas e acampamentos fora de Curitiba nesses períodos. Quando as aulas na faculdade recomeçavam, você só precisava comparecer ao CPOR aos sábados. Como ia fazer vestibular para engenharia, incorri no erro de me inscrever na arma de engenharia. Arrependo-me dessa escolha até hoje. Podia ter-me alistado na cavalaria e pelo menos uma coisa útil aprenderia – a montar – além de conviver com um animal que sempre admirei, o cavalo.

A arma de engenharia era um horror. A maioria dos oficiais frequentava a Faculdade de Engenharia em anos mais avançados – eu ainda nem havia passado no vestibular. Eram cursos tão puxados e áridos quanto os da própria faculdade. Passados vinte anos da data em que deixei o CPOR, eu ainda tinha pesadelos recorrentes em que era reprovado e ficava condenado a repetir eternamente o ano. O objetivo da engenharia militar era construir pontes e outras estruturas juntando pesadas partes de madeira e metal que pareciam aquelas peças de montar Mecano, precursoras do Lego. Mas uma das atividades mais importantes da nossa arma era também destruir e demolir todo tipo de estrutura e aprender a lidar com explosivos.

 A partitura do Sapador Mineiro com versos
do então tenente Lyra Tavares

Daí o hino da engenharia exaltar o sapador mineiro em meio a toda aquela patriotada (“Lança pontes e estradas, nunca falha,/E em lutas as suas glórias ressuscita,/Honrando, em todo o campo de batalha,/As tradições de Villagran Cabrita./O castelo lendário, da Arma azul-turquesa/Que a tropa ostenta, a desfilar, com galhardia/É um escudo de luta, é o brasão da grandeza/E da glória sem fim, com que forja a defesa/E é esteio, do Brasil, a Engenharia.”)

Não pensem que basta enrolar umas bananas de dinamite ao redor de uma pilastra. Toda explosão, para funcionar, precisa ter rigorosamente calculada a quantidade exata de explosivo e sua localização precisa. Só lamento não ter me dedicado a fundo a essa arte e ciência para usar aqueles conhecimentos doze anos depois, nos Anos de Chumbo, e explodir com a ditadura.

Curioso: quando deixei o CPOR, estávamos a sete anos do golpe, mas as relações entre civis e militares eram mansas. Não senti naqueles homens de farda nenhum açodamento pelo poder, nenhuma noção de que a classe militar fosse ungida da missão de “salvar o país”. Na verdade, em 1964 foi a própria sociedade civil que empurrou os militares para o poder: as ilusões de uma esquerda despreparada (estimulada pelo exemplo de Cuba) e o reacionarismo da classe média apavorada pelo fantasma do comunismo (El paredón de Fidel era assustador...)

Apenas um oficial da Engenharia não ia com a minha cara. Usando uma palavra atual, eu poderia dizer que o capitão Castilho praticava bullying contra mim. Eu era jornalista, portanto – na cabeça dele – comunista. Baixote, com um bigodinho brega, o capitão Castilho me escalou para dar guarda na noite do Ano Novo de 55 para 56. Aquela era uma das datas que eu mais prezava, quando ia com a família ao Réveillon do Graciosa Country Club, os homens de smoking, as mulheres de longo, o acontecimento social mais chique da cidade. Lá pelo fim da tarde de 31 de dezembro apresentei-me no quartel para a infausta obrigação. Troquei a farda pelo uniforme de serviço e preparei-me para o pior. Ao lado da guarita havia um quartinho infecto com um catre pulguento onde você dormia enquanto o companheiro fazia a vigília. De repente, uma novidade: o comandante determinou que apenas as guaritas da frente e dos fundos ficariam abertas; as guaritas laterais seriam fechadas. Quatro sentinelas seriam dispensadas. O capitão Castilho decidiu que seria por sorteio. Pediu que eu escrevesse em oito retalhos de papel os nomes dos guardas escalados. Papeis dobrados, jogados dentro de um capacete, mandou que eu fosse o primeiro a sacar. Pincei um papel e desdobrei-o: MUGGIATI. Para desgosto supremo do capitão Castilho. Eu estava liberado para o Réveillon do Graciosa. Da farda de serviço infecta para o requintado smoking. Foi minha primeira epifania castrense.

Cartum autocrítico publicado na Revista do CPOR de Curitiba de 1957. 
A segunda ocorreria no sábado de Carnaval, 11 de fevereiro de 1956. Naquele verão do meu descontentamento, eu andava às voltas com dois problemas: amigdalites que minavam meu sistema imunológico e me botavam de cama com muita frequência; e o vestibular para a Faculdade de Engenharia, no final  de fevereiro. Nos primeiros dias do mês, partimos para o primeiro grande acampamento na cidade de Porto União, Santa Catarina, onde ficava o 5º Batalhão de Engenharia de Combate Blindado. Éramos 44, na turma da Engenharia – de Álvaro Doubek a Werner Zulauf. Domingo, sete da manhã, embarcamos num trem na Estação Ferroviária de Curitiba. Era uma composição da RVPSC (Rede Viação Paraná-Santa Catarina) – sigla com uma irônica sugestão de convite social: Répondez S’il Vous Plait (RSVP). Embora menos de 200 quilômetros separassem Curitiba de União da Vitória – a cidade do Paraná geminada com Porto União – a viagem levou o dia inteiro, o trem levantando poeira ao longo do percurso, para agonia do meu aparelho respiratório. Já era noite quando acampamos em barracas às margens do rio Iguaçu, que separava as duas cidades. O Iguaçu (“Água Grande” em guarani) nasce como um filete d’água nos arredores de Curitiba e, seguindo o sentido geral leste a oeste, vai terminar, mais de mil quilômetros depois, nas espetaculares cataratas de Foz do Iguaçu. Em muitos pontos, o rio faz a divisa natural entre Paraná e Santa Catarina.

Entre União da Vitória e Porto União, o Iguaçu ostenta uma largura superior a trezentos metros. Já naquela primeira noite eu conheceria na pele a força de suas águas: às três da madrugada o Iguaçu transbordou e invadiu nosso acampamento. Acordamos dentro das barracas boiando em suas águas. Um temporal a montante, em poucas horas engrossara o fluxo do rio. Escorraçados pela cheia, batemos em retirada para o quartel do 5º B.E. Fomos levados a uma grande sala sem móveis com assoalho de tábuas. Os mais rápidos ocuparam os armários vazios que cobriam as paredes laterais. Tínhamos lençóis e cobertas, mas nenhum colchonete para aliviar o lombo do contato com a madeira dura do piso.

Na manhã seguinte, exaustos, iniciamos as manobras às margens do inflado Iguaçu, com a montagem de pontes, em que éramos obrigados a carregar pesados módulos de madeira e ferro como burros de carga. Ao meio-dia, os trabalhos eram interrompidos para a hora do rancho. Entra em cena o versátil capacete de aço, que protege nossa cabeça das balas inimigas, mas não protege o nosso estômago da boia hedionda. É no bojo do capacete que os taifeiros despejam grandes porções de salada de tomate com cebola crua, macarrão com carne assada e arroz com feijão, tudo misturado num caldeirão infernal que ingerimos a duras penas, valendo-nos da colher de alumínio que carregamos na mochila com o cantil. A enchente, o trabalho pesado, o sono perdido, o rango infecto acabaram me derrubando: baixei enfermaria. E, o que é pior, num fim de semana. Embora já estivesse recuperado no sábado, eu e o colega Aramis Meyer Costa – à falta de um médico autorizado para nos dar alta – ficamos encarcerados na enfermagem sábado e domingo, olhando as nuvens brancas desfilarem num céu azul, reduzidos a uma sopinha rala como refeição. Companheiros solidários cataram espigas de milho das redondezas do quartel e as jogaram pela janela. E lá foram eles pimpões para os embalos de sábado à noite de Porto União, antecipando a dança de rosto colado com as donzelas locais, descendentes germânicas e eslavas de boa cepa. E eu tinha uma cantada irresistível. Os catarinenses são chamados de “barrigas verdes” por causa de sua heroica participação nos Voluntários da Pátria, durante a Guerra do Paraguai, ostentando na barriga uma faixa verde. Eu pediria à lourinha de olhos azuis: “Posso ver se a sua barriga é verde mesmo?” 

A volta a Curitiba estava prevista para a sexta-feira antes do Carnaval e eu contava em sair no sábado tocando tamborim no bloco dos Capetas, formado por uma turminha do Clube Curitibano. Mas temporais, quedas de barreiras e descarrilamentos na linha da RVPSC ameaçaram, de repente, nos deixar ilhados em Porto União até depois do Carnaval. Na manhã de sábado fui à estação em busca de informações. Na rua principal, esbarrei com o irmão mais velho do meu vizinho Nilson, acompanhado da noiva. Estava de carro, prestes a voltar para Curitiba. Uma carona salvadora fez toda a felicidade do meu Carnaval.

Passei em vigésimo lugar no vestibular de engenharia. Como recompensa, extraí as amídalas e convalesci tomando sorvete e lendo O velho e o mar. Nas férias de julho, encarei outro acampamento insólito, nas campinas do Primeiro Planalto, às margens da estrada para Joinville, a rota do balneário de Guaratuba, que eu costumava frequentar em meus tempos de liberdade. Garotas, amigos desobrigados do serviço militar, famílias conhecidas e até parentes, a caminho dos seus folguedos, paravam por alguns minutos no acostamento para lastimar nossa triste sina. O local de exercícios da engenharia era, volta e meia, atingido por bombas dos morteiros e canhões da artilharia, que abriam crateras enormes na grama virgem das encostas. Eu não confiava muito na logística daquelas manobras, estávamos a um passo de uma grande tragédia, mas no final, entre mortos e feridos, salvaram-se todos. Isto é, com um pequeno reparo: numa noite de lua cheia, eu e dois colegas mais afoitos – um deles era o Leo Casella Bittencourt, com seu indefectível bigodinho – percorremos quilômetros da estrada deserta em busca de bebida. Encontramos, num rancho de colonos, um vinho caseiro, ainda em processo de fermentação, que prosseguiu seu estrago em nossos estômagos e provocou uma ressaca homérica.

Dois filmes marcaram fundo essa fase da minha vida. Não imagino por que motivo aconteceu no próprio quartel a projeção de um filme antimilitarista: Stalag 17/Inferno Nº 17, de Billy Wilder, com meu ator favorito, William Holden. E, no verão de 1957, programou-se uma marcha noturna de 30 quilômetros com mochila equipada de 36 quilos no lombo. Valendo-me de uma unha encravada, provocada por aqueles elegantes sapatos pretos de bico fino, consegui dispensa médica. Resolvi pegar a sessão das oito no Cine Luz. Quando ia saindo de casa às sete e meia, no alto da Carlos de Carvalho – o céu ainda claro, no verão curitibano – ouço aquele tropel cadenciado subindo a rua. Era a marcha dos meus colegas, a caminho das ladeiras do Bigorrilho e dos descampados da Campina do Siqueira e do Parque Barigui. Me escondi por trás da sebe de hortênsias que cercava o jardim da minha casa. Passado o perigo, peguei o ônibus na Vicente Machado rumo ao centro. O prazer estético de ver pela primeira vez Casablanca – a maior história de amor em tempo de guerra – foi intensificado mil vezes pelo senso do interdito, de ter escapado ao castigo da marcha.

Em agosto de 1957, o martírio chegou ao fim em clima festivo. No estádio Dorival Brito e Silva, houve o juramento à bandeira e a entrega das espadas aos novos aspirantes a oficial. Depois, a missa solene na Catedral Metropolitana e, à noite, o baile de gala na Sociedade Thalia. Cito da revista do CPOR: “As belas jovens que lá comparecem dão um colorido maior às festividades e aumentam em muito a alegria dos novos aspirantes. São milhares e milhares de belas toilettes a enfeitar os majestosos salões da Sociedade Thalia...”

A Engenharia brilhou. Nas Olimpíadas do CPOR, retomadas depois de vários anos, fomos os campeões disparados, 54 pontos à frente da segunda colocada, a Saúde, com 23 pontos. A Cavalaria teve apenas um ponto: imagino, mas não tenho certeza, que foi na prova de hipismo. A capa da revista do ano foi estampada pelo porta-estandarte do CPOR, a melhor nota de todos os cursos: o aluno da Engenharia Celso Luiz Pasquini Esmanhoto. E, quando todas as armas se reuniam em frente do quartel para cantar o Hino Nacional, o maestro era o sargento Sátiro Pohl Moreira de Castilho, da nossa Engenharia.

*      *      *

Em 2006, quarenta e nove anos depois, cruzei de novo os portões do quartel na praça Oswaldo Cruz. Não mais quartel, agora era o Shopping Curitiba, mas os incorporadores tiveram a sensibilidade de preservar a moldura da fachada em toda a quadra. Percorrendo a parte antiga da estrutura, dava ainda para sentir as velhas vibrações da caserna, os fantasmas de incontáveis gerações que viveram seus dias da juventude brincando de soldado dentro daquelas imponentes fortificações.

Mesmo que a experiência seja adversa, sua lembrança meio século depois se torna agridoce. Ao deixar o CPOR, a primeira sensação foi de alívio. Lembro até hoje com intensidade um momento poético único, pessoal e intransferível, minha derradeira epifania castrense. Num dos últimos sábados que dediquei à Pátria, justo quando saía do quartel no fim de uma tarde cinzenta, tremendo de frio debaixo da farda fina, vi baixarem do céu silenciosamente em câmera lenta flocos de neve, que logo se derretiam ao contato do ar e eram apagados para sempre. Veio-me então à cabeça um refrão antigo de mais de quatrocentos anos, do transgressor poeta francês François Villon: “Mais où sont les neiges d’antan?”

2 comentários:

J.A.Barros disse...

Apagaram o meu comentário. Sinal de que não gostaram dele.

J.A.Barros disse...

No meu comentário quis apenas salientar e elogiar que você Muggiati ficava muito bem de farda.