Por Roberto Muggiati
Esta história vai longe no tempo e tem muito parêntese, mas vale ser conhecida.
Foto de Gervásio Baptista |
Em 1954, com apenas dois anos de vida, a revista Manchete enfrentava seu batismo de fogo na guerra das bancas – e se saía muito bem, graças à qualidade gráfica e à importância que dava ao fotojornalismo. A capa da edição extra sobre a morte de Getúlio Vargas trazia uma foto em preto-e-branco de Gervásio Baptista e tinha como foco central o deputado Tancredo Neves tomado por uma crise convulsiva de choro, cobrindo o rosto com as mãos. Tancredo quase não conseguira se eleger em 1950 para seu primeiro mandato federal. Graças àquela foto, Tancredo singraria vitorioso nas urnas vida afora.. Por isso, seria eternamente grato a Gervásio. Quando foi eleito para Presidente da República em 1985, Tancredo imediatamente convidou Gervásio para ser o fotógrafo oficial da Presidência.
Nas horas que antecederam a cerimônia de posse do primeiro Presidente pós-ditadura militar, no período batizado de Nova República, os acontecimentos se precipitaram. Na segunda-feira, 13 de março, na Casa da Manchete em Brasília, Adolpho Bloch recebeu Tancredo e dona Risoleta para um grande jantar. Para a ocasião, o chef da Bloch, Severino Ananias Dias, deslocou-se até a Capital Federal com uma equipe de cozinheiros e garçons e a fabulosa coleção de panelas de cobre da cozinha do Russell. Na manhã seguinte, durante uma missa de Ação de Graças, fotógrafos e câmeras de TV flagraram o Presidente apalpando insistentemente o estômago. (Nenhuma relação de causa e efeito entre o banquete da Manchete e o mal-estar de Tancredo, embora inimigos da Bloch – e não eram poucos – tenham espalhado que a cuisine do Severino foi fatal para Tancredo.).
Às 22:15 de 14 de março, véspera da posse, o Presidente era internado às pressas no Hospital de Base do Distrito Federal para receber soro. Com o diagnóstico de apêndice supurado, os médicos disseram à família que Tancredo precisava ser operado com urgência. A família preferia que ele fosse removido para São Paulo, tinha até um jatinho à disposição. Mas os médicos de Brasília não cederam. O próprio Tancredo se meteu na discussão: “Deixem-me tomar posse e depois façam comigo o que quiserem.”
Na antessala do centro cirúrgico, uma plateia seleta de parlamentares-médicos e ministros de Estado nomeados aguardava. O pesquisador médico Luís Mir, autor do livro O Paciente - O Caso Tancredo Neves (2010) (*) , descreve: "A certa altura, houve a possibilidade de invasão da sala de cirurgia até por médicos do próprio Hospital de Base de Brasília. Era impossível impedir a entrada das pessoas. Entre médicos e não médicos, chegaram a circular, no Centro Cirúrgico e dentro da sala de cirurgia, cerca de 60 pessoas. Quando se iniciou a operação, havia dentro da sala 25 pessoas. Um show, ruinoso para os médicos e para o paciente". Ao abrirem o peritônio do (im)paciente, os cirurgiões não encontraram nenhum “apêndice supurado”, o órgão estava perfeito. Inventaram então um novo diagnóstico, de “diverticulite”, doença de que a maioria dos brasileiros nunca tinha ouvido falar. Soube-se depois que Tancredo tinha um leiomioma benigno, mas infectado. Os facultativos ocultaram a existência de um tumor, receando o impacto que a palavra “câncer” poderia provocar.
No dia seguinte, o vice José Sarney assumiu a Presidência. Sarney manteve Gervásio como fotógrafo oficial. O “Calvário” de Tancredo (a imprensa brasileira adora um clichê) durou 38 dias, mas quem carregou a cruz foram os jornalistas, principalmente aqueles dos jornais diários, numa época em que a mídia impressa ainda não fora totalmente esvaziada pela TV e pela internet. Os fechamentos dos matutinos varavam a madrugada, colocando os editores e redatores à beira de vários ataques de nervos, minando sua saúde física e emocional. Pior ainda: a primeira fase do tratamento de Tancredo foi muito mal conduzida. O Hospital de Base do Distrito Federal estava com a Unidade de Tratamento Intensivo demolida, em obras – o estado de saúde do Presidente se agravou e ele teve de ser transferido em 26 de março para o Hospital das Clínicas de São Paulo. No período em que ficou internado, Tancredo sofreu sete cirurgias, que não surtiram efeito. Em 21 de abril, o porta-voz oficial da presidência , Antônio Britto, anunciava oficialmente a morte de Tancredo Neves por infecção generalizada, aos 75 anos.
Foto de Gervásio Baptista |
Foto de Gervásio Baptista |
Foi justamente na transferência de Tancredo de Brasília para São Paulo que vivemos um momento crucial na cobertura da Manchete. No dia 25 de março, segunda-feira, recebemos para o fechamento da edição as primeiras fotos de Tancredo Neves desde que fora internado – seriam também as últimas fotos do Presidente em vida. Tancredo e dona Risoleta, cercados pela grande (só em tamanho) equipe médica do Hospital de Base, posaram para Gervásio Baptista, que nos mandou as fotos com exclusividade. Essa atitude foi criticada; como fotógrafo da Presidência, ele deveria disponibilizar as imagens para todos os veículos. Mas a fidelidade do bom baiano para com a Bloch reinava acima de tudo. Como editor da revista, escolhi uma foto mais fechada de Tancredo com Dona Risoleta para a capa, com a chamada TANCREDO/A VOLTA POR CIMA. Estávamos eufóricos por fazer chegar aos brasileiros, quarta-feira em todas as bancas, uma mensagem de esperança: o Presidente de bom aspecto, elegante em seu robe de seda, um foulard bem transado em volta do pescoço, e a Primeira Dama, com uma roupinha esperta, de aparência rejuvenescida, ambos sorridentes.
Uma foto diz mais do que mil palavras. Ledo e ivo engano, como diria o Cony. Às seis da manhã de terça-feira toca o telefone em minha mesinha de cabeceira. Era o chefe de reportagem, Cesarion Praxedes: “Muggiati, deu merda. O Tancredo passou mal e está sendo levado para São Paulo.” Cabeça fria, raciocinei na hora: “Cesarion, nós temos o principal que é a capa exclusiva. Liga agora mesmo pra Lucas [a gráfica da Bloch] e manda trocar a chamada de capa e o título da abertura para TANCREDO/O DRAMA DO PRESIDENTE e vamos à redação para atualizar o texto. Dito e feito.
Já a revista de informação da Bloch, a Fatos, daria na capa a chegada de Tancredo ao Hospital das Clínicas em São Paulo, aquela em que o cotovelo do padioleiro passou como sendo a cabeça do Presidente (vejam post de quarta-feira, 6 de dezembro). Aqui o grande parêntese da história. Embora sua glória maior fosse uma revista semanal ilustrada, a Manchete, a Bloch sempre ambicionou ter uma revista semanal de informação, nos moldes da Time americana. Não por acaso, a Bloch deteve os direitos para o Brasil dos textos da Time de 1973 até quase a derrocada da empresa, em 2000. Mas fazer uma revista de opinião na Bloch era uma tarefa problemática, levando em conta os comprometimentos políticos da empresa. Houve até uma primeira tentativa, nos anos 70. Como a semanal, também ilustrada, Fatos&Fotos, era o primo pobre da Manchete, Jaquito – prevalecendo-se da exclusividade dos textos da Time – incumbiu Carlos Heitor Cony, editor da F&F, da transformação pioneira. Cony, macaco velho, sabia muito bem a roubada em que ia se meter. Mas Jaquito, não tendo coisa melhor para fazer na época, resolveu insistir. Voluntariou-se até a trabalhar como chefe de reportagem do Cony e instalou-se, um estranho no ninho, na redação de F&F, vociferando um dos bordões clássicos da Bloch: “Não quero que lhe falte nada!...” Cony não teve outra opção senão entrar no jogo. Um belo dia, ordenou ao seu “chefe de reportagem”:
– Jaquito, precisamos fazer urgente uma entrevista com o Paulo César Caju!
– Mas quem é Paulo César Caju? – replicou Jaquito. E Cony, incontinenti:
– Se você, como chefe de reportagem, ignora quem é Paulo César Caju, então se considere demitido!
Jaquito, abatido, o rabo entre as pernas, foi saindo pelo corredor, quando teve um repente e voltou:
– Peraí, Cony! Você não pode demitir um dos donos da empresa. Quem está demitido é você!
Um episódio que, de todas as redações do mundo, só poderia acontecer na Bloch, à beira-mar plantada. Entre mortos e feridos, salvaram-se todos – e tudo terminou, não em pizza, mas na macunaímica feijoada das sextas no restaurante do terceiro andar à beira da piscina. A revista tipo Time da Bloch foi sepultada definitivamente quando Cony, tendo acompanhado Adolpho Bloch ao aeroporto do Galeão – o velho ia fazer uma cirurgia do coração nos Estados Unidos – disse ter lido nos olhos do Adolpho que ele não queria aquele tipo de revista...
Corte rápido. Passaram-se dez anos e, surpreendentemente, agora é o Cony quem proclama a necessidade absoluta de se criar na Bloch uma revista semanal de texto. Pragmático, acima de tudo, o nosso Cony. Em janeiro de 1985, o Colégio Eleitoral elegeu Tancredo Neves para a Presidência da República, dando fim a 21 anos de ditadura militar, com cinco presidentes fardados. As relações de Tancredo com a Bloch sempre foram as melhores possíveis e Cony viu nisso a oportunidade de capitalizar circulação e prestígio para uma revista sintonizada com o peregrino da Nova República. Adolpho não vacilou: Tancredo seria para Fatos o que JK tinha sido para a Manchete. Um clima febril tomou conta da nova redação. Ney Bianchi, escolhido como chefe da sucursal da Fatos em Brasília, logo estabeleceu suas condições: uma casa na Península dos Ministros, com um mordomo juramentado; uma polpuda verba de representação para receber políticos e autoridades; dez ternos cortados pelo melhor alfaiate de Brasília; limusine com chofer e por aí vai.
O lance maior da Fatos só não contava com as rasteiras do destino e a vulnerabilidade da carne: a revista foi às bancas na sexta-feira, 17 de março, com a foto da posse do vice José Sarney na capa; mas, sem a estrela de Tancredo, não tinha gás para ir muito longe. Vale lembrar que na época existia uma profusão de semanais de informação no Brasil, mais até do que nos Estados Unidos ou na Europa. Havia a Veja, que depois de um começo incerto em 1968, graças à estratégia de assinaturas acabou se tornando uma potência (toda grande empresa usava Veja como uma ferramenta para seus executivos); havia a IstoÉ de Mino Carta, o editor-fundador da Veja; a Visão, do empresário Henry Maksoud, que tinha seu peso; e a Afinal, que durou de 1984 a 89. Na inflação desvairada do governo Sarney, Fatos foi se arrastando – hostilizada até dentro da própria Bloch como um estranho no ninho e uma fonte de prejuízo – até fechar em julho de 1986, um ano e quatro meses depois do seu lançamento.
Quanto ao Brasil e à sua Presidência, é outra história, tão tortuosa como a da Bloch: Washington Luiz deposto, Getúlio suicidado, Jânio renunciado, Jango deposto, Tancredo morto sem assumir, Collor impedido, Dilma impedida e Temer isso que todos estão vendo aí...
Só resta fechar com o humor mineiro do velho Tancredo Never: certa vez, numa roda de amigos no Senado, ele definiu seu epitáfio, que não chegou a ser gravado na lápide do cemitério ao lado da Igreja de São Francisco de Assis, em São João del-Rei:
“Aqui jaz, muito a contragosto, Tancredo de Almeida Neves!”
(*) O diretor Sérgio Rezende lançará no dia 14 de junho de 2018, o filme O Paciente, que focaliza os últimos dias de Tancredo. O ator Othon Bastos representará o político mineiro.
3 comentários:
Foram tempos de angustia e sofrimento de expectativas no desenrolar da posse ou não posse de Tancredo Neves. No dia da posse, pela manhã Carlos Heitor Cony, editor da revista Fatos, ja sabia que Tancredo Neves não tomaria posse. Cony teria recebido uma ligação telefônica que confidenciava a internação de Tancredo, em razão de dores no abdome, no Hospital de Brasília. A capa da revista Fatos seria a posse de Tancredo Neves. O que não aconteceu e a foto da capa passou a ser a do Vice da chapa, José Sarney. Aqui começa outra história a ser contada anos depois.
Tancredo vai virar filme? Comédia? Foi um político vaselina. Serviu ao golpe que tentou impedir a posse de Jango e aceitou ser primeiro ministro de araque. O povo foi nas rnas e botou Jango de volta.
Na ditadura, ele sumiu, era amigo de generais ditadores, ficou calado diante das torturas e só apareceu para pegar carona nas diretas já e depois aceitar concorrer pelo colégio eleitoral da ditadura. Uma enganaçaõ é o que esse político foi
Tancredo tinha o estilo de conciliador e foi decisivo em vários momento da história. Sua opinião além de injusta fere os fatos
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