terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Roberto Muggiati: Natal na Bloch

Por Roberto Muggiati

Já instalado na espaçosa sede do Russell, com o apoio gastronômico do chef Severino Ananias Dias, Adolpho iniciou lá pelos anos setenta um ritual natalino. Costumava enviar aos funcionários mais graduados um opulento – e suculento – peru de Natal. Por “mais graduados” entenda-se um grupo heterogêneo que incluía as pessoas profissionalmente mais importantes, aquelas que o ajudavam a ganhar dinheiro; e figuras avulsas que ocupavam um lugar no seu coração: por exemplo, o Marechal, o chefe dos contínuos, que certa vez figurou nas lista dos Dez Mais Elegantes do Ibrahim por seus ternos de linho branco; o Layrton, seu secretário e factótum: para cobrir a Copa do Mundo e as Olimpíadas, a Abril criou uma agência de viagens, já o Layrton embarcava sozinho as equipes das revistas e de TV da Bloch; ou o ator Grande Othelo, que nem funcionário era, mas havia feito um papel excepcional em O Homem de La Mancha, o musical que inaugurou o Teatro Adolpho Bloch. Adolpho se gabava da sua cozinha e inventou um bordão: “Nós somos um grande restaurante que, por acaso, também imprime revistas...”

A boa culinária e a vista cartão postal da baía de Guanabara transformaram a sede do Russell também num importante ponto de visitas ilustres. Muitas vezes ajudei Adolpho a receber celebridades como a irmã do Xá do Irã, a Princesa Alexandra de Kent, Liza Minnelli, Roman Polanski, o tenor Placido Domingo (que fez um dueto na sacada com Mário Henrique Simonsen), a proprietária do Washington Post, Katherine Graham (pouco depois que seu jornal derrubou Richard Nixon), o ator do filme Amadeus, Tom Hulce e incontáveis outros. Alfredo Machado, editor da Record e amigo de Adolpho, levou lá escritores famosos como o best seller Sidney Sheldon e Doris Lessing, depois Prêmio Nobel.

Voltando ao peru: no dia 24 de dezembro você ficava em casa, por volta de meio-dia, esperando a chegada do carro da Bloch com a sua ave. Se por algum motivo você estivesse em baixa na ocasião, o peru não vinha. Se a sua cotação estava em alta, o peru não só vinha, mas acompanhado de um tender ou até mesmo de um caprichado pernil. A dádiva natalina do Adolpho era uma maneira de você aferir a quantas andava o seu prestígio com o Titio, como era chamado pelos comandados mais próximos, como o Arnaldo, o Zevi e o Murilo.

O departamento chamado de Expedição era uma coisa muito confusa e estas deliveries da Bloch às vezes criavam encrencas terríveis. Certa ocasião, num fim de semana, o Cony recebeu no seu apartamento da Lagoa, uma caixa de madeira nobre com uma dúzia de garrafas de um vinho francês de casta raríssima. Presente do Oscar Bloch Sigelmann. Não entendeu nada – principalmente porque o Oscar o hostilizava – mas incorporou a preciosidade à sua adega. Dias depois, o Oscar aprontou um barraco monumental na Expedição, demitindo uma dezena de funcionários. O mimo se destinava ao Colin, presidente do Banco do Brasil, mas como a ordem do Oscar fora verbal, a Expedição tomou Colin por Cony, que era mais conhecido e o queridinho do Adolpho. Oscar implorou ao Cony que estornasse a caixa de vinhos, mas àquela altura o Cony já tinha entornado todas.

Adolpho Bloch tem duas biografias curiosamente relacionadas aos seus dois casamentos.
O primeiro O pilão, de 1978, foi supervisionado por Luci Bloch. 

Dez anos depois, Anna Bentes, sua segunda mulher, coordenou
a edição de O pilão, segundo volume.

Outra delivery desastrada ocorreu quando Adolpho estava para completar o que chamava seus “quatre- vingts” – os oitenta anos – Anna Bentes organizou de surpresa a edição do segundo volume de O pilão. O primeiro Pilão fora lançado em 1978, na Era Lucy. O pilão de Anna Bentes, em edição esmeradíssima, com capa dura, seria distribuído durante a festa de aniversário, à noite +a beira da piscina. Inadvertidamente, porém – talvez para agradar o patrão, um funcionário da gráfica em Parada de Lucas telefona de manhã cedo para o aniversariante: “Seu Adolpho, o caminhão com os livros vai sair agora. É para entregar no Russell, mesmo?” Estragada a surpresa, Anna Bentes ficou passadíssima.

O peru de Natal vinha
sempre acompanhado
de um cartão semelhante ao
da reprodução, que
agradecia comparecimento
a aniversário de
Adolpho.

Sendo goy, eu não entendia muito as festividades judaicas, mas aos poucos fui me embrenhando no assunto. Havia uma lenda de que Adolpho, irreverente quando mais jovem, costumava provocar os rabinos nos dias de jejum botando uma carrocinha de cachorro quente na frente da sinagoga da Rua Tenente Possolo, a mais tradicional, perto Praça da Cruz Vermelha. No Dia do Perdão, o Yom Kippur, a troika – Adolpho assim chamava o trio Adolpho/Jaquito/Oscar – comparecia ao trabalho de terno escuro e gravata por uma ou duas horas, com um ar compenetrado. Num destes Kippurs resolvi dar uma de Adolpho pra cima do próprio. Era manhã cedo, estava sozinho na sua sala, cheguei a ele e perguntei: “Adolpho, nunca entendi direito essa coisa do Dia do Perdão. Quem é que tem de perdoar: eu a você, ou você a mim? Falar nisso, Adolpho, estou fudido, meu salário não está dando mais para viver...” Atordoado pela ousadia, com um olhar de criança inocente, ele me perguntou: “Quanto é que você está precisando?” Eu chutei uma quantia alta, sabendo que ele iria regatear. Foi assim que comecei a ter meu aumento salarial anual a cada Yom Kippur. Política salarial na Bloch nunca existiu. Cada um tinha de garantir o seu num corpo-a-corpo com o chefão. A grande maioria não tinha sequer acesso ao Adolpho e assim ficava a ver navios anos sem fim. A Bloch – apesar do talento incrível que por lá passou, do jornalismo e da literatura brasileiros – era uma tremenda mixórdia, que deu no que deu. Mas foi divertida, enquanto durou.

Um comentário:

Administrador disse...

José Carlos Jesus, presidente da Comissão dos Ex-Empregados da Bloch Editores, recebeu via email e envia para os blog as seguintes mensagens:

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Crônicas deliciosas, Zé Carlos, obrigado.
um abraço e um ótimo 2018, com a esperança de que finalmente recebamos o que nos devem.
Rascov

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Oi, Jose Carlos.

Obrigado por mandar o artigo do Muggiati. Gosto muito do Muggiati. Alias, ele entrou para a Manchete, vindo de Londres, quando eu era reporter na redacao da Manchete na Frei Caneca, em 1962. Gosto do estilo dele e os detalhes que conta da vida na Manchete

Obrigado e abraco

Sergio da Cunha

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Oi, Jose Carlos.

No meu ultimo email disse que conheci o Muggi em 1962 mas foi em 1965 quando ele veio da BBC de Londres para a Manchete e eu estava de novo na Redacao como reporter apos o intervalo da minha bolsa de estudo no World Press Institute.

Tambem gostava muito do Justino, Raymundo Magalhaes Jr. e do Zevi. Eles sempre me davam carona para Copacabana no final do dia.

O tempo passa, hein?

Abraco

Sergio Da Cunha



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Que textão excelente! Parabéns, Mugiatti, não só pela memória mas também pela forma isenta de relatar. Um abraço!
Zilda Ferreira