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domingo, 1 de maio de 2022

Folhetim de redação

por J.A. Barros 

Estamos acompanhando neste blog a extraordinária autobiografia de Roberto Muggiati, o mais duradouro editor da revista Manchete. Na verdade, é a  história de um paranaense que nasceu jornalista e que hoje, embora ainda atuante como tradutor e colaborador de alguns veículos, poderia estar gozando sua aposentadoria em Nice, na França. O conjunto de textos já publicados aqui mostra a trajetória de um verdadeiro profissional. Tão criterioso que, como tradutor de livros em inglês, montou uma ampla biblioteca de obras de consultas. Imagina, sei que na sua estante há até um livro, ilustrado, com nomes de tipos de selas de montaria. Como conhecedor da história do jazz, do rock e do fenômeno dos Beatles, Muggiati é autor de livros sobre esses assuntos.

Por trabalhar com Roberto Muggiasti durante alguns anos, descobri que a sua cultura não tem fim. Conhecedor da língua portuguesa, ele também domina os idiomas inglês, francês e italiano. 

O jornalista trablahou em Londres, na histórica Albion - como jornalista, claro - e em Paris. Nesta, já contou que visitou o "Père-Lachaise" onde viu de perto os túmulos de grandes figuras do passado como Oscar Wilde, Edith Piaff, além do mausoléu de Napoleão, (este no Panteão), e tantos outros famosos. A sua febre de saber, conhecer  e entender não cessou e até hoje, isso desde as vilas da São Clemente aos ares da Glicério. Sua velha Olliveti, há muito trocada por um computador, é testemunha do seu conhecimento da natureza humana. Roberto Muggiati, um homem, uma história de vida, de cultura, de conhecimento, de saber, talvez o único conhecedor na história do cinema norte-americano da existência de Sidney Guilaroff. Ele, grande cinéfilo saberá que me refiro a uma saborosa história já contada neste blog.  

sábado, 13 de junho de 2020

Memória da redação - A epidemia que a ditadura tornou invisível

Revista Manchete, 1972/Reprodução BN
Só imagine: a Covid-19 chega ao Brasil e o governo ordena à mídia silêncio total sobre o avanço da epidemia.

Algo semelhante aconteceu aqui entre 1971 e 1974, em plena ditadura de Garrastazú Médici. Nada de coletivas das autoridades de saúde, nem pensar em divulgar gráficos com os números dos estados e muito menos os cuidados que a população deveria adotar. O governo determinou que a epidemia de meningite era invisível.

Bolsonaro e os militares atualmente aquartelados no Ministério da Saúde bem que tentaram "administrar" os números da atual Covid-19 e segurar o coronavírus pelos coturnos para mostrar ao mundo que a tragédia brasileira é "criação da imprensa".

No começo dos anos 1970, com o poder de censura na mão, Médici conseguiu esconder a fragilidade do sistema de saúde, calar a mídia e fazer com que as vítimas morressem em silêncio. Em 1972, registrou-se, em certo momento, cerca de dois mortos por dia. Mas os números jamais foram consolidados de maneira confiável. Sabe-se que em 1974 havia quase 70 mil casos conhecidos no país, descontada a subnotificação.  A "lei da mordaça" contra a meningite só foi aliviada em 1975, já no governo Geisel, que ensaiava a distensão política e quando não dava mais para esconder o drama. Epidemiologistas foram convocados, formou-se a Comissão Nacional de Controle da Meningite. No ano seguinte, houve uma vacinação em massa.

A política do governo militar para esconder doença não era inédita. O cientista Albert Sabin, muito amigo de Adolpho Bloch e frequentador da Manchete sempre que vinha ao Brasil, acusou certa vez, em entrevista nos Estados Unidos, o ditador Médici de manipular dados sobre a incidência de poliomielite no Brasil entre 1969 e 1973.

Naquela época, redações de jornais e revistas eram forçadas a admitir como "consultores" coronéis de pijama que davam um "parecer" sobre matérias potencialmente capazes de criar problema com Brasília. A Manchete teve um desses meganhas.  Em 1972, a revista publicou uma matéria sobre o avanço da meningite, chegou a registrar o drama de famílias de algumas vítimas no Rio e em São Paulo. A reportagem (veja reprodução acima), era assinada por Marco Aurélio Borba, Miguel Pereira e Celso Arnaldo. Foi a única reportagem na Manchete a mostrar que havia uma epidemia no Brasil. Mesmo assim, com visível cuidado: falava em "súbito aumento de casos" e em "certo temor da população". Nos anos seguintes, foi publicada outra, mas sobre o Instituto Mireux, de Paris, que pesquisava uma vacina; e na Pais & Filhos saiu uma  texto sobre "cuidados com a doença". Ambas as matéria não se referiam diretamente à epidemia em curso no Brasil. A Veja fez em 1972 uma única reportagem de capa sobre o assunto. No título "O Surto da Desinformação". E, no mesmo ano, a Folha de São Paulo teve censurada a reportagem "A Epidemia do Silêncio".

Governos que amam odiar a transparência, como se vê na atitude negacionista do regime bolsonarista frente à Covid, não possuem anticorpos contra o vírus do autoritarismo.

Mas é preciso registrar que nem o execrável Médici mandou invadir hospitais...


sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Memória da redação: Há 50 anos, a cobertura do sequestro do embaixador americano pelos guerrilheiros da ALN

Charles Burke Elbrick na Fatos & Fotos, Setembro de 1969

A página dupla de abertura da reportagem. 

O Fusca dos sequestradores fechou o Cadillac de Charles Elbrick na rua Marques, em Botafogo. 

Outro Fusca , um táxi, devolveu Elbrick três dias depois à rua São Clemente, onde morava. 

Operação militar para prisão dos guerrilheiros. E a casa onde Elbrick foi mantido em cativeiro,
na Rua Barão de Petrópolis, no Rio Comprido. 
Na Base Aérea do Galeão, treze dos 15 presos políticos libertados, entre os quais Luiz Travassos, Vladimir Palmeira, José Dirceu, Flávio Tavares, Maria Augusta Ribeiro, Outros dois embarcaram em Recife, Gregório Bezerra e Mário Zanconato. 

Gregório Bezerra, que sofria bárbaras torturas na prisão, chega ao México. 

A edição 451 da Fatos & Fotos trazia na capa o embaixador americano Charles Elbrick fotografado no momento em que chegava em casa na Rua São Clemente, no Rio, depois de passar 75 horas em poder de guerrilheiros da Aliança Libertadora Nacional (ALN).

Ele havia sido sequestrado na noite de 4 de setembro de 1969. Foi libertado após a ditadura concordar com as duas exigências dos sequestradores: divulgar na imprensa um manifesto que justificava a ação e soltar 15 presos políticos que eram vítimas de torturas diárias e levá-los ao exílio do México.

Fatos & Fotos cobriu o passo a passo da ação da ALN realizada por um grupo de 15 guerrilheiros entre os quais Manoel Cyrillo, Cid Queiroz Benjamin, Vera Magalhães, Franklin Martins, Fernando Gabeira e Joaquim Câmara Ferreira.

O prédio da Manchete, em 1969. No canteiro em frente, no interior de uma escultura de Bruno Giorgi (à esq. do Fusca vermelho) os guerrilheiros deixaram
bilhete com instruções para as negociações. 

O embaixador foi devolvido ileso, à exceção da coronhada que sofreu, razão do band-aid que exibia na foto. Infelizmente, como era comum na época, o crédito da intensa cobertura da Fatos & Fotos foi registrado à "Equipe", não é possível identificar repórteres e fotógrafos envolvidos. A Bloch foi, ainda, uma coadjuvante involuntária da notícia: um dos bilhetes dirigido às autoridades contendo as instruções para a devolução do embaixador tão logo as exigências fossem aceitas foi deixado no canteiro em frente ao Edifício Manchete, na Rua do Russell, então recém-inaugurado.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Memória da redação: as eternas assombrações do Verão

por José Esmeraldo Gonçalves

Em dezembro de 1989, a revista AZ me pediu que escrevesse sobre o último Verão (89/90) de José Sarney, que entregou o cargo em 15 de março de 1990 ao recém-eleito Fernando Collor.

Aquele Verão foi praticamente todo do Sarney. Michel Temer, personagem da recente saideira, ao contrário, não curtiu a última estação integralmente - a data oficial da posse foi antecipada para 1° de janeiro - mas as entressafras presidenciais, datas à parte, mostram mais semelhanças do que diferenças na temporada mais quente do ano.

Uma dessas diferenças: Sarney mandou no país durante inacreditáveis cinco anos, que era o tempo do mandato hoje fixado em quatro. Com toda razão, o Brasil estava de saco cheio do bigodudo. Uma semelhança em relação à atual transição: Collor havia sido eleito por um partido pequeno, o que a realidade política mostra que não é problema, tanto que os jornais publicavam a cada dia a relação crescente de deputados que acabavam de aderir ao novo presidente.

Abaixo do Planalto, o país queria saber "quem matou Odete Lara", Marisa Monte pregava a ejaculação precoce ("vem depressa, dentro de mim, me beija, me faz esquecer, bem que se quis), Senna, Xuxa eram notícia. O fetiche nacional era um colarinho branco. O novo presidente anunciava o fim das barreiras à importação, a desestatização, redução da máquina administrativa e a demissão de funcionários públicos. O que não anunciou antes, mas logo chegou após e posse, foi o confisco da poupança e dos depósitos bancários superiores a Cr$ 50.000,00 (cinquenta mil cruzeiros).

Na Nova República de Sarney o figurino que se despedia era o jaquetão de seis botões. Não foram poucos os empresários pedintes que o vestiram antes de audiências no Planalto. O governo Collor ainda não tinha um nome, alguns jornais diziam que a Era Collor ia começar, outros já anteviam a República das Alagoas. Sem jaquetõesCollor iria popularizar as camisetas com frases.

Dizem que presidente que deixa o cargo sai com a sensação de que não passou de ano, que os amigos somem, que ninguém telefona, que o cafezinho vem frio, têm saudade da roupa lavada e da comida boa, das viagens pagas e dos presentes. Para fechar a matéria, recorri a uma "fake news", o "diário" em que Sarney relatava seu "drama" e se queixava dos últimos dias. O homem estava triste. Mas a política não o abandonaria nem vice-versa.

Uma cena recente deu até a impressão de que aquele Verão 1989/1990 não passou: Sarney e Collor estavam no Congresso, neste 1° de janeiro de 2019, como convidados da posse de Jair Bolsonaro.

Resistentes, eles permanecem, de um jeito ou de outro, assombrando a vida pública quase trinta anos depois. O que mostra que Verão o Brasil tem de sobra. O que nos falta é Primavera.




Reproduções Revista AZ. Clique nas imagens para ampliar. 

domingo, 13 de maio de 2018

Memórias da redação: ...e Jussara Razzé assinou a Lei Áurea na Manchete

Foto de Orlando Abrunhosa

Em 1988 eram comemorados os 100 anos da Lei Áurea. A Manchete preparou um reportagem sobre o tema e o fotógrafo Orlando Abrunhosa foi escalado para fazer a foto de abertura.

Inicialmente, pensou-se em uma foto da sacada vazia do Paço Imperial, o local exato de onde a Princesa Isabel anunciou a libertação dos escravos. Mas o saudoso Orlandinho era detalhista e não embarcava necessariamente na primeira ideia. Ele propôs subir a serra rumo ao Museu Imperial de Petrópolis e refazer a cena histórica.

Lei Imperial 3353. Reprodução
Com um detalhe:  a assinatura seria simulada, mas o documento e a pena autênticos.

E assim foi feito.

A modelo escolhida foi Jussara Razzé, jornalista que trabalhava nos Serviços Editoriais da Bloch e era habitualmente "modelo de mãos" das revistas femininas desde que foi "descoberta" por Kiki Moretti, então editora da revista Mulher de Hoje.

Na pressa, a equipe só percebeu no local que faltava um figurino de época para envolver o braço direito da modelo e compor a cena. Orlandinho pediu uma peça de renda, algo assim. Ninguém menos do que D.Pedro Gastão, do ramo imperial de Petrópolis, neto da Princesa Isabel, foi o "produtor" que providenciou uma toalhinha de linho branco a título de manga e resolveu o problema.

A foto acima é uma Polaroid, do teste de luz que os fotógrafos costumavam fazer. A imagem original assinada por Orlandinho foi página dupla na Manchete.

Os créditos da reportagem: foto de Orlando Abrunhosa, produção de D. Pedro Gastão, modelo Jussara Razzé. O texto da matéria foi de Tarlis Batista.

Os acessórios da produção - a Lei Imperial n.º 3.353 e a pena cravejada de brilhantes - são aqueles que foram colocados à mesa da Princesa no Paço Imperial no dia 13 de maio de 1888, que Jussara Razzé "assinou" de novo 100 anos depois.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Memórias da redação: fotógrafo Raymond Depardon, da Gamma, recorda a era em que o fotojornalismo dependia de passageiros de avião para fazer o material chegar a tempo do fechamento das revistas



Trechos destacados da entrevista de Raymond Depardon à repórter Marcella Ramos, do Globo

Na foto histórica da Gamma, assinada por Claude Wherlé e publicada na Fatos & Fotos, Claudia Cardinale, Gláuber Rocha, Luchino Visconti e Yves Montand no Festival de Cannes, em 1969, quando o brasileiro ganhou o prêmio de
Melhor Diretor pelo filme O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro. Uma das milhares de fotos
da Gamma publicadas pelas revistas da antiga Bloch. 

por José Esmeraldo Gonçalves 

O Globo de hoje publica entrevista que remete a uma era extinta do fotojornalismo. Na seção Conte algo que não sei, o fotógrafo Raymond Depardon fala, entre outros tópicos, sobre a Gamma, as grandes reportagens de viagem e a curiosa logística do passado para envio de material urgente.

A célebre agência francesa, fundada em 1966, manteve uma longa parceria com a Manchete e as demais revistas da antiga Bloch. A Manchete, principalmente, e a Fatos & Fotos davam vasto  espaço às reportagens fotográficas da Gamma, não só à cobertura de atualidades, mas às matérias reveladoras de etnias e lugares ao estilo National Geographic, mas com um diferencial de extrema qualidade: o DNA jornalístico da agência sempre presente em cada fotograma. Depardon recorda em O Globo a satisfação de vê-la publicadas nas revistas brasileiras.


Trecho destacado da entrevista de Depardon ao Globo.

Eram tempos analógicos e, na entrevista, o fotógrafo e cineasta também relembra um tipo de procedimento que deve parecer enigmático aos repórteres fotográficos de hoje. "Pedia a estranhos que estivessem entrando no avião para transportarem meus filmes", diz.

Essa frase carrega uma lembrança dos momentos de tensão que equipes em viagem ou correspondentes da Manchete no exterior viviam em aeroportos. Material de agência e filmes ainda a revelar eram enviados para o Brasil em mãos de passageiros ou de pilotos e comissários solícitos da Varig. Quando se tratava de material urgente para fechamento, o sufoco era maior. Cabia aos repórteres e fotógrafos em viagem, aos correspondentes ou aos funcionários das sucursais encontrar na fila do check in alguém disposto a fazer o favor de trazer para o Rio de Janeiro envelopes com os filmes. Eram, às vezes, volumosos envelopes. Havia até um jargão: "vou ao aeroporto fazer um passageiro".

O remetente ouvia alguns nãos mal-humorados, mas em 100% das vezes conseguia o portador. A tarefa seguinte era passar por telex a descrição do passageiro para que outra pessoa - quase sempre, Márcio, dos Serviços Editoriais, recebia essa missão - o esperasse no Galeão. "Fulano de tal, alto, careca, blazer cinza, camisa branca", e mais o telefone ou endereço no Rio, caso houvesse desencontro. E a recompensa ao viajante que trazia a encomenda? Uma carona até em casa no carro da Manchete. Aqui entra uma informação que era "confidencial" à época: quando o passageiro que trazia material de fechamento, urgentíssimo, caía na malha fina da Alfândega, contatos úteis da Manchete ajudavam a desembaraçar o sujeito,  suas malas e, claro, o valioso envelope com fotos. Isso aconteceu mais de uma vez.

A partir da segunda metade do anos 1980, ficou gradativamente mais difícil encontrar alguém disposto a servir de "mula" fotojornalística. Mesmo entre os passageiros afáveis passou a predominar o medo de trazer encomendas a pedido de um desconhecido. Ainda que a tecnologia digital não houvesse aposentado o material físico seria impossível hoje conseguir um passageiro disposto a transportar um gordo envelope entregue no aeroporto por alguém que ele jamais viu e ainda lhe fornecer endereço e telefone.

E se fosse remessa de ecstasy, metanfetamina ou qualquer outra droga sintética que alguns países mandam para o Brasil atualmente? 


quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Lição grátis de jornalismo: cotovelos em capas sempre dão problema...

Reprodução Mashable

por José Esmeraldo Gonçalves 

A Time divulgou sua tradicional capa de "Pessoa 2017": é dedicada às mulheres que quebraram o silêncio e revelaram casos de assédios sexuais. Para representar a reação feminina aos abusos, a revista reuniu Ashley Judd, Taylor Swift, Susan Fowler, Adama Iwu e Isabel Pascual, cujo nome foi alterado para proteger sua identidade.

Mas o que está intrigando os leitores é o cotovelo aparentemente aleatório que aparece no canto direito da capa. A informação é do Mashable.

O editor do TIME, Edward Felsenthal, diz que o detalhe simboliza mulheres e homens que ainda estão calados e no anonimato diante das violências que sofreram.

Mas nas redes sociais também há quem especule que o cotovelo fantasma pode ter sido uma falha no corte da foto.

O DIA EM QUE A REVISTA FATOS CONFUNDIU 
O COTOVELO DE UM ENFERMEIRO COM 
A CABEÇA DE TANCREDO NEVES


O cotovelo da Time remete a um certo cotovelo na revista Fatos, em 1985. Como todas as redações do país, a Fatos estava mergulhada até o pescoço na exaustiva cobertura da agonia de Tancredo Neves, que durou mais de um mês.

A cada fechamento, a revista atualizava em texto e fotos a luta dos médicos para salvar o presidente eleito, mas semana após semana corria o risco de chegar às bancas 48 horas depois - tempo gasto em preparação e impressão - desatualizada e com Tancredo Neves já morto.

Em um desses complicados fechamentos, quase no minuto final, chegam de Brasília fotos que  mostrariam o presidente eleito, deitado em uma maca, a caminho da ambulância que o levaria em emergência ao aeroporto de onde seguiria para São Paulo. A foto da inesperada transferência do paciente era a mais atual e exclusiva, segundo Brasília. Apenas o fotógrafo da Fatos havia invadido o acesso à garagem do Hospital de Base e obtido um ângulo favorável. Claro, iria para a capa.

Já era quase meia-noite quando a redação inteira, já exausta, foi para a sala de projeção participar da escolha da melhor imagem da sequência da maca. Decepção total: nenhuma foto mostrava o rosto ou sequer a cabeça de Tancredo. A cena era muito confusa, médicos, enfermeiros e policiais cercavam o paciente. Mas a projeção de slides continuava, as fotos eram vistas e revistas. Em vão. A redação já estava quase desistindo de trocar a capa paginada antes quando uma voz não identificada, em plena escuridão da cabine de projeção, quebrou o silêncio e decretou:

- Olha a cabecinha dele ali, gente!
- Que cabecinha? - alguém duvidou.
- Ali - insistiu a voz -, no canto, a carequinha dele e um travesseiro!

Deu-se então um caso típico de alucinação coletiva, quase uma hipnose. A partir do momento em que a voz viu Tancredo, todos na cabine também tiveram a mesma visão. Era aquilo mesmo, lá estava a cabecinha de Tancredo. Como a foto era confusa, alguém sugeriu que a Arte fizesse um círculo vermelho em torno da tal carequinha para que os leitores identificassem mais rapidamente o que a redação levou mais de uma hora para perceber. E assim foi feito.

Fechamento concluído, todos foram para casa.

Um dia e meio depois, a revista impressa foi colocada na mesa do diretor. A capa estava perfeita, as chamadas idem. Só tinha um problema. O círculo vermelho não destacava nada que parecesse a cabecinha de Tancredo. Até porque não havia cabecinha coisa nenhuma. O que a capa mostrava claramente era o cotovelo de um dos enfermeiros, um cara tão parrudo que de fato a popular conexão do braco com o antebraço parecia mesmo um cabeção.

J.A. Barros, diretor de Arte da Fatos, colaborador deste blogé testemunha daquela noite fatídica. É justo dizer que ele foi um dos mais resistentes a acreditar que via a ilustre cabecinha do presidente eleito. Mas, como todos os demais zumbis que passaram mais de um hora naquela sala de projeção, ele também foi induzido a ver a luz: a foto exclusiva de Tancredo na maca.

A cabecinha de Tancredo que dez ou doze pessoas viram naquela noite mística no escurinho da cabine tinha sido apenas produto de uma ocasional alucinação coletiva. Mas rendeu capa!.

sábado, 11 de novembro de 2017

Memórias da redação - The winner is... Nos tempos da Blochwood, os indicados da lista de filmes anuais de Alberto Carvalho




Outro dia, Behula Spencer, que trabalhou na Manchete, Amiga e outras revistas da Bloch, comentou no Facebook Virou Manchete sobre uma relação de "filmes" que Alberto Carvalho divulgava a cada fim de ano. A lista era uma espécie de retrospectiva cinematográfica na qual as produções de destaque eram associadas a personagens da jornada do Russell.


O blog localizou uma cópia dos indicados de 1987, onde a própria Behula era a estrela de "Engraçadinha depois dos 30". Não rendia estatueta, mas garantia boas risadas. Alberto cuidava de alertar para o tradicional "qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência".  Em alguns casos, visto hoje, dilui-se o sentido mais evidente na época, com o enredo do filme ainda na tela. Havia também títulos de produções fictícias. O eventualmente e politicamente incorreto ficava por conta da época e da irreverência do diretor da "academia" que indicava os concorrentes. Os tempos eram menos mal-humorados.

Em todo caso, não há registro de que alguém tenha se incomodado ao entrar para o "cinema" naquela brincadeira que chegava às mesas e corredores já no clima de fim de ano.

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Humor Negro na Manchete

por Roberto Muggiati

A gente acaba lembrando sempre mais os bons momentos e esquecendo aquelas horas de crise aguda: os longos fechamentos por conta de acontecimentos externos (morte de JK, Ayrton Senna, Mamonas, impeachments, golpes de estado etc); as crises de venda e as pressões dos patrões para esgotarmos uma edição cada semana nas bancas (o Jaquito perguntava: “Onde é que está aquela matéria que vai me levar de madrugada ao Mercadinho Azul para comprar a revista?”); as sacanagens e punhaladas pelas costas de algum ‘coleguinha’ mau caráter (existiam, sim, mas, uma vez expostos, não escapavam à sanha justiceira da Turma do Bem; as revoadas cíclicas dos passaralhos; e mil outras situações de ameaça e conflito que fazem parte da vida de um jornalista e, às vezes, pareciam mais agudas na Bloch, no contraste com aquele belo décor de vidro e jacarandá com vista para a Baía, em que trabalhávamos e praticamente vivíamos.

Nestas horas, o humor surgia como a salvação.

Quero lembrar hoje uma peça que o Alberto de Carvalho (sempre ele) pregou num colega já entrado em anos, que antecipava já os corriqueiros oitentões e noventões imbatíveis dos nossos dias. Alberto distribuiu na redação um documento com toda a aparência oficial de coisa pública, mas com um texto fino e irônico que nenhum burrocrata dos nossos tempos seria capaz de reproduzir.

Publico esta peça em nome do humor redentor da Manchete – no caso uma especialíssima amostra de humor negro, que lembra Uma Modesta Proposta, de Jonathan Swift, em 1729, sugerindo que os irlandeses pobres amenizassem seus problemas de dinheiro vendendo suas criancinhas como comida para os ricos incluindo até receitas de como preparar a carne especialíssima. Mas publico esta peça com uma grande preocupação. E se de repente algum de nossos governantes (eles são capazes de tudo!) decidisse por em prática a brilhante ideia? Enfim, posso perder até a vida, mas não perco a piada. Vamos à convocação assinada pelo Subchefe Adjunto Substituto do Departamento de Controle de População.


domingo, 27 de agosto de 2017

Memória da redação: quando uma foto-bomba da EleEla abalou a moral e os costumes da ditadura...

Alexandre Garcia: Reprodução da foto principal da matéria "O porta-voz da Abertura"
publicada na EleEla, em novembro de 1980. A foto de Frederico Mendes provocou
a demissão do jornalista, na época assessor de imprensa do general João Figueiredo.

Em fins outubro de 1980, Alexandre Garcia, então porta-voz do general João Figueiredo, foi entrevistado pela EleEla. A foto de abertura da matéria incomodou a ditadura. Garcia foi fotografado por Frederico Mendes para uma entrevista sob o título: "O porta-voz da Abertura". A EleEla foi para as bancas no começo de novembro daquele ano. Em seguida, a Veja publicou na seção de política a nota "Vulgaridade Palaciana", onde criticava a matéria. As senhoras da República militar sofreram tremores morais noturnos e a alta cúpula do Planalto reagiu. O porta-voz foi demitido.

Gervásio Baptista e Alexandre Garcia.
Foto publicada no Facebook de Dalva Tosta, que atuou
nos setores administrativos e financeiros da Bloch
dos tempos áureos e assessorou Adolpho Bloch.
Na mesma época, Adolpho Bloch começava a equipe e a estrutura da Rede Manchete em Brasília e contratou Alexandre Garcia como diretor de jornalismo da sucursal de Bloch Editores e da futura Rede Manchete, que entrou no ar em 1983.

Foi lá que o jornalista conheceu Gervásio Baptista, o fotógrafo da Manchete, com quem acabou convivendo em Brasília durante quase quatro décadas (Alexandre Garcia transferiu-se para a Globo no fim dos anos 1980 e Gervásio foi fotógrafo oficial de Tancredo Neves e da Presidência no governo Sarney, a partir de 1985).

Na semana passada, Alexandre Garcia, 76, visitou Gervásio, hoje com 95 anos, em Brasília.

Quanto ao episódio da entrevista à EleEla, foi narrado pelo próprio Alexandre Garcia no seu livro de memórias "Nos bastidores da notícia", nos trechos abaixo. Em meio ao relato, uma informação curiosa: Figueiredo era leitor da seção Forum, da EleEla, um espaço da revista que selecionava depoimentos e fantasias sexuais nada constitucionais.

"Entreguei  um (exemplar) para  o  presidente,  pedindo  que  lesse  a entrevista,  e  outro  para  Heitor (N.R. Heitor de Aquino,secretário particular de Figueiredo)  O  presidente  leu.  Foi  o  que demonstrou  no  dia  7  de  novembro,  uma  sexta-feira.  "Tínhamos trocado de avião no aeroporto Santos Dumont. Saímos do Boeing e tomamos um Buffalo, que nos levaria a Pindamonhangaba, para a inauguração  de  uma  aciaria  da  Villares.  Na  cabeceira  da  pista, estourou  um  conduto  hidráulico  dentro  da  fuselagem  e  o  fluido molhou toda a roupa do presidente. Eu estava sentado  diante  dele, do outro  lado,  pois era um avião de pára-quedistas. Ele começou a tirar a roupa e me olhou com um jeito maroto: "Será que estou seguro, tirando as calças na tua frente?" Eu  ri  e  ele  continuou,  contando  uma  história  que  o impressionara  e  estava  no  "Fórum"  daquela  edição  de  Ele  &  Ela. Naqueles dias, a revista já estava nas bancas." (...)

"Na  segunda-feira,  10 de  novembro,  o Kraemer (N.R. Marco Antonio Kraemer, assessor de Figueiredo) veio avisar-me  de  que  Farhat (N.R. Said Farhat,  ministro da Comunicação Social do governo Figueiredo)  desejava  falar  comigo.  Eram  umas  quatro  da tarde, e  o  ministro estava  saindo  para  tomar um  jatinho da  FAB na  base  aérea.  Iríamos  conversar  no  Galaxie  ministerial,  no caminho para  o aeroporto. Mal deixamos  o  palácio,  Farhat pôs a mão no meu joelho e disse: 

—  Nós dois sabemos que o nosso relacionamento nunca foi bom.  Eu  falei  com  o  presidente,  e  achamos  que,  depois  daquela entrevista, é melhor você pedir demissão. 

—    Meu  presente  de  quarenta  anos  —  respondi.  E  pedi tempo para pensar. Queria confirmar se o presidente havia mesmo autorizado a demissão. Mas Farhat não queria esperar. 

—    Aqui  está  a  minha  carta  aceitando  o  seu  pedido  de demissão.  

—  A  carta  tinha  a  data  de  meu  aniversário,  11  de novembro. 

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Memória da redação: Manchete nas Olimpíadas...

Ao longo de cinco décadas, a Manchete fez grandes coberturas das Olimpíadas. O repórter Ney Bianchi e os fotógrafos Sérgio de Souza e Gil Pinheiro foram a várias delas.
Manchete tinha pouco mais de três meses de existência quando cobriu os Jogos Olímpicos de Helsinque, na Finlândia, em 1952. Já constatava ali que grandes eventos esportivos rendem belas imagens para revistas ilustradas em grande formato. A partir daí, a pauta olímpica virou uma tradição que resultou em dezenas de edições especiais com foco privilegiado, claro, à participação dos atletas brasileiros. Estão nas páginas dessas edições todos, rigorosamente todos, os nossos ídolos do esporte mundial e suas conquistas olímpicas.
Nos Jogos seguintes, 1956, em Melbourne, na Austrália, a Manchete Esportiva incorporou-se à revista-mãe e ambas dedicaram dezenas de páginas ao evento.
Atlanta, nos Estados Unidos, em 1996, foi a última Olimpíada nas edições de Manchete. No começo de agosto de 2000, a Bloch pediu falência e a circulação da revista foi interrompida. Os Jogos de Sidney, na Austrália, começaram algumas semanas depois, em setembro: Manchete já não estava nas bancas quando o Brasil foi ao pódio receber 12 medalhas. .
Veja nas reproduções abaixo alguns momentos e capas de coberturas memoráveis:


Olimpíadas de 1952: a estréia da Manchete na cobertura dos Jogos.

Seleção brasileira nos Jogos da Finlândia. Entre os garotos, Vavá e Zózimo,
que seriam campeões do mundo em 1958, logo ali ao lado, na Suécia.
Ademar Ferreira da Silva, medalha de ouro no salto triplo em Helsinque
e a bandeira no Brasil no ponto mais alto do estádio.
Ademar na pista e nas páginas da edição número 13 de Manchete

Nádia Comanecci: o fenômeno das Olimpíadas de Montreal, em 1976. 

João do Pulo, do salto triplo, e Bernardo Rajzman,
do vôlei, nos Jogos de Montreal

Barcelona, 1992

As meninas do vôlei em Atlanta, 1996

Rogério Sampaio, Barcelona, 1992