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segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Automorte: a megapandemia • Por Roberto Muggiati


O que sobrou do carro Facel Vega de Albert Camus.. Foto de Jean-Jacques Levy. Reprodução Eurochannel

Li há pouco no Estadão uma resenha de um livro póstumo de W.G. Sebald em que Paulo Nogueira diz: “[Sebald] morreu em 2001, aos 57 anos, num acidente de carro. Por que tantos escritores são ceifados por veículos motorizados? Barbeiros? Azarados? Camicases? T.E. Lawrence, tietado por Bernard Shaw e Winston Churchill (e filmado por David Lean), se esborrachou em sua moto aos 46 anos, em 1935. Nathanael West, aos 37 anos, esmigalhou a si e a sua esposa numas férias no México, pilotando uma perua Ford. Em 1949, Margaret Mitchell, ainda curtindo as vendas astronômicas do seu único romance (... E o vento levou), foi atropelada por um taxista bêbado quando ia ao cinema com o marido. 

“De todas as maneiras de morrer, a morte num acidente de automóvel é a mais absurda.” ALBERT CAMUS

Camus. Foto Reprodução
Em 4 de janeiro de 1960, Albert Camus, Nobel de literatura, aceitou a carona de seu amigo e editor Michel Gallimard, desistindo do trem Provença-Paris. O carro bateu numa árvore e Camus morreu na hora, com 46 primaveras. Ele escrevera um dia que ‘de todas as maneiras de morrer, a morte num acidente de automóvel é a mais absurda.’ Quanto a Sebald, sofreu um ataque cardíaco ao volante e trombou com um caminhão – a filha dele sobreviveu.”

A lista de Nogueira me levou imediatamente para a lista que venho elaborando nos últimos tempos sobre “cadáveres excelentes” em desastres de automóvel. Além dos escritores citados por Nogueira, um verdadeiro Quem-é-quem de notáveis do século 20:

Em sua arrojada coreografia final, em 1927, aos 50 anos, a dançarina Isadora Duncan, ao ser lançada para fora de um carro esporte aberto quando sua longa echarpe se prendeu à roda e quebrou o seu pescoço. 

  O cineasta alemão F.W. Murnau, às vésperas de lançar seu filme Tabu: em 1931, aos 42 anos, numa estrada da Califórnia em uma Rolls-Royce alugada dirigida por um criado filipino de 14 anos; James Dean em seu carro de corrida, também na Califórnia, em 1955, aos 24 anos; em 1961, aos 25 anos, ainda na Califórnia – na estrada de Las Vegas para Los Angeles, Belinda Lee, a “Loren britânica”; Jayne Mansfield, decapitada, em 1967, aos 34 anos, numa estrada da Louisiana; Françoise Dorleac – irmã de Catherine Deneuve, também atriz – tentando não perder o voo no aeroporto de Nice, carbonizada no carro alugado cuja porta não conseguiu abrir, em 1967, aos 25 anos; a musa maior do cinema pornô, Linda Lovelace, em 2002, aos 53 anos, em Denver, Colorado, onde morava há dez anos. Linda já tinha sofrido um desastre de carro em 1970, que lhe causou hepatite em consequência de uma transfusão de sangue; e um transplante de fígado em 1987.

Em Paris, os playboys do século: o príncipe Ali Khan, ex-marido de Rita Hayworth, em 1960, aos 48 anos; e, em 1965, aos 56 anos, o diplomata dominicano Porfírio Rubirosa – entre suas conquistas amorosas figuram Rita Hayworth, Ava Gardner, Marilyn Monroe, Judy Garland, Kim Novak, a ex-Princesa Soraya, Evita Perón. Depois de passar a noite comemorando a vitória do seu time de polo na Copa da França, Rubirosa bateu com sua Ferrari numa árvore do Bois de Boulogne. Um dos maiores pintores do expressionismo abstrato, Jackson Pollock, alcoolizado, jogou seu carro contra uma árvore em 1956, aos 44 anos, numa inequívoca – e bem sucedida – tentativa de suicídio. A cantora de blues Bessie Smith, em 1937, aos 43 anos: teve o braço amputado depois de um acidente numa estrada do Sul dos EUA e sua morte, atribuída à demora no atendimento hospitalar por motivos racistas, inspirou uma peça de protesto de Edward Albee, A morte de Bessie Smith, em 1959. O trompetista de jazz Clifford Brown e o pianista Richie Powell, caíram de um viaduto na Pensilvânia , em 1956, num carro dirigido pela inexperiente mulher de Powell. Morreram todos. Clifford tinha 25 anos, Richie 24 e Ms. Powell 19. Em 1961, a sensação do contrabaixo no jazz, Scott LaFaro, do Bill Evans Trio, morreu num acidente em Flint, estado de Nova York, depois de acompanhar Stan Getz no Festival de Newport. Sua morte, aos 25 anos, deixou Bill Evans em estado de choque durante vários meses.

Chora Estácio, Salgueiro e Mangueira, todo Brasil emudeceu, chora o mundo inteiro, o Chico Viola morreu...SAMBA DE 1952, DE ANTÔNIO NÁSSARA E WILSON BATISTA

O enterro de Chico Viola. Reprodução Manchete

No Brasil, a música popular pagou um pesado tributo ao automóvel. Esta história cobre 45 anos e poderia se chamar De Chico Viola a Chico Science. Em 1952, no auge da fama, Francisco Alves dirigia sua Buick de São Paulo ao Rio na Via Dutra quando foi atingido por um caminhão e morreu carbonizado. A canção de Nássara e Wilson Batista cantada por Linda Batista o eternizou: “Chora Estácio, Salgueiro e Mangueira, todo Brasil emudeceu, chora o mundo inteiro, o Chico Viola morreu...” O Rei da Voz tinha 54 anos, 34 de carreira. 

Musa da bossa nova, a cantora Sylvia Telles escapou em 1964 com pequenas escoriações ao dormir no volante voltando de um show. Dois anos depois, quem dormiu ao volante foi seu namorado, Horacinho de Carvalho, na estrada de Maricá, e morreram os dois.  Sylvinha, 32 anos, viajaria no dia seguinte para gravar um álbum em Nova York. 

O carro Brasília que Maysa diriga. Foto Manchete

Maysa Matarazzo, musa da canção de fossa, vivia em depressão aguda, isolada na Região dos Lagos. Depois do casamento do filho no Rio em 1977, voltava para Maricá sozinha quando morreu num acidente na Ponte Rio-Niterói. Uma das últimas anotações no diário que mantinha desde a adolescência: “Hoje é novembro de 1976, sou viúva, tenho 40 anos de idade e sou uma mulher só. O que dirá o futuro?” 

Gonzaguinha nasceu condenado a viver à sombra do Gonzagão. Mas conseguiu abrir seu próprio caminho e tudo ia às mil maravilhas quando a morte o pegou na estrada para Foz do Iguaçu, onde pegaria um avião para um show em Florianópolis. Em 1991, aos 45 anos.

Em 1990, aos 19 anos, o filho de Gilberto Gil, Pedro, baterista promissor, morreu ao se chocar com uma árvore na Curva do Calombo, na Lagoa Rodrigo de Freitas; em 1998, morre aos 19 anos num desastre de carro no Aterro do Flamengo o filho de Tom Jobim, João Francisco Lontra Jobim.

Criador do mangue beat, Chico Science seguia em 1997 de Recife a Olinda quando foi fechado por outro carro e bateu num poste. Teria sobrevivido não fossem as falhas no cinto de segurança. A Fiat pagou dez milhões de reais à família, mas isso não trouxe Chico de volta. Tinha 30 anos.

Sertanejos vivem na estrada – e morrem também. Uma curva traiçoeira levou João Paulo. Sua canção favorita: Poeira da estrada.

Sertanejos vivem na estrada – e morrem também: João Paulo, parceiro de Daniel, em 1997 , aos 37 anos, na Rodovia dos Bandeirantes, SP. Seu carro capotou várias vezes e pegou fogo, o cantor ficou preso entre as ferragens. Sua música favorita era Poeira da estrada.  Cristiano Araújo, em 2015, aos 29 anos, em Goiânia: ele e a namorada, sem cinto de segurança no banco traseiro, foram projetados para fora do carro.

Integrante da dupla do funk Claudinho & Buchecha, Cláudio Rodrigues de Mattos, em 2002 aos 26 anos, ao volante de seu carro, bateu numa árvore voltando de um show em Seropédica, RJ. 

Às vésperas do Natal de 1974, a atriz Adriana Prieto, aos 24 anos, depois de bater com seu fusca numa viatura da PM na Avenida Nossa Senhora de Copacabana e atingir a vitrine de uma butique. Apesar da pouca idade, fez dezoito filmes em seis anos de carreira. 

Em 1998, o craque Edmundo chocou-se com outro carro na Lagoa Rodrigo de Freitas. Três pessoas morreram no acidente. Condenado por triplo homicídio culposo, obteve liberdade provisória e em 2020 a sentença prescreveu. Quase no mesmo local da Lagoa Rodrigo de Freitas, um dos craques mais promissores da nova geração, Dener, morreu aos 23 anos, asfixiado pelo cinto de segurança no banco do carona – o carro era dirigido por um amigo que dormiu ao volante. Também na Lagoa, a poucos metros, na antevéspera do Natal de 1987, morreu aos 44 anos o jornalista Paulo César de Araujo, num carro dirigido pela diretora de jornalismo da TV Globo Alice-Maria, que sofreu várias fraturas. PC, como era conhecido, tinha deixado recentemente a chefia de reportagem da revista Manchete para trabalhar na TV Globo.

Um dos luminares do glam rock, Marc Bolan, vocalista e guitarrista da banda T. Rex, em Londres, em 1977, aos 29 anos: um Mini dirigido pela namorada estourou o pneu e bateu numa árvore.

Um dos mais importantes filósofos da comunicação, Roland Barthes, em 1980, aos 64 anos, atropelado por um furgão de tinturaria em Paris.

Dono de um dos talk shows mais famosos da TV americana, compositor de oito mil canções, escritor e artista polivalente, Steve Allen morreu em 2000, aos 78 anos, em decorrência de um trauma nas costelas que  não parecia grave. Um “barbeiro” atingiu seu carro numa marcha a ré desastrada. Allen, espirituoso e cordial, disse ao sujeito: “Veja só o que as pessoas são capazes de fazer para conseguir um autógrafo meu!...” 

Ted Kennedy pôs fim à dinastia política de sua família num desastre mal explicado numa ponte de Massachusetts.

Ted Kennedy dirigia o carro em que Mary Jo Kopechne morreu. Reprodução

Mary Jo Kopechne, em 1969, aos 28 anos, em Chappaquiddick, Massachusetts. Depois de uma festa das garotas que fizeram campanha presidencial do senador Robert Kennedy, ela pegou uma carona no carro do senador Ted Kennedy, que caiu de uma tosca ponte de madeira num lago. Kennedy – que estaria de caso com Mary Jo – escapou e deixou o local sem prestar assistência à jovem, que morreu afogada. A autopsia revelou que ela estava grávida. O escândalo decretou o fim da dinastia política dos irmãos Kennedy. 

Alexander Dubček, líder da Primavera de Praga, em 1992, aos 70 anos, num desastre de estrada perto de Humpolec. Barack Obama Senior, político queniano e pai do futuro Presidente dos Estados Unidos, em 1982 aos 48 anos. O automóvel perseguiu implacavelmente Obama Sr: um primeiro acidente, em 1970, o deixou com uma perna prejudicada; no segundo acidente, teve as pernas amputadas e no terceiro morreu.

Eden Ahbez, judeu americano do Brooklyn, primeiro hippie e vegano, vivia ao relento debaixo do primeiro L do famoso letreiro HOLLYWOOD em Los Angeles, quando sua composição Nature Boy se tornou um hit na voz de Nat King Cole. Ahbez viveu saudável até os 86 anos, mas não escapou às sequelas de um desastre de carro em Los Angeles, em 1995.

O terceiro homem a caminhar pelo solo da Lua morreu num banal passeio de moto na Califórnia.

Uma morte incomum: o terceiro homem a andar sobre a Lua, Charles “Pete”  Conrad Jr, comandante da missão Apolo 12, morreu num passeio de motocicleta na Califórnia em 1999, aos 69 anos. A moto também participa ativamente desta carnificina. O roqueiro Duane Allman, da banda Allman Brothers, em Macon, Georgia, em 1971, aos 24 anos. Um ano depois, a três quadras do local do seu acidente, também numa moto, morre o baixista da banda, Berry Oakley, aos 24 anos. Foi sepultado ao lado de Duane, no cemitério de Macon. Escritor, compositor, cantor folk, ícone da contracultura, Richard Farina ia na garupa de uma moto que se acidentou em Carmel, California, em 1966. Tinha 29 anos. Outros roqueiros famosos também sofreram acidentes de moto: Bob Dylan, Billy Joel, Billy Idol, Ozzy Osbourne, Steven Tyler, Mark Knopfler. 

Um detalhe curioso: a moto em que morreu Lawrence da Arábia foi presente da mulher de George Bernard Shaw. Outro: o neurocirurgião que pesquisou a morte de Lawrence se tornaria o pioneiro do capacete de proteção.

E a bicicleta? Em 2014, no Central Park de Nova York, o roqueiro Bono, do U2, caiu ao tentar se desviar de outro ciclista. Fraturou a omoplata, o úmero, a órbita ocular e o dedo mínimo. Numa cirurgia de cinco horas recebeu três placas metálicas e 18 parafusos. Por muito tempo, Bono pensou que jamais voltasse a tocar guitarra.

A cultura sempre glamurizou o carro. Já nos anos 1920 o italiano Filippo Marinetti, autor do Manifesto Futurista, afirmava: “O esplendor do mundo se enriqueceu com uma nova beleza, a beleza da velocidade: um carro de corrida é mais bonito que a Vitória de Samotrácia.” 

A pintora maior do estilo art déco, Tamara de Lempicka, celebrou o automóvel em 1929 no famoso autorretrato Tamara numa Bugatti verde. 


O automóvel tem presença tão marcante no cinema que chegou a criar um gênero: o chamado road movie



Os carros estão presentes no cinema desde o início. Nos filmes mudos dos Keystone Cops, eles se prestam a correrias intermináveis. Já aparecem mais carros do que pessoas nestes filmes, é muito provável que, ao longo da história do cinema, a quantidade de automóveis na tela supere a de seres humanos. Em alguns filmes, o carro é até o protagonista, como em Se meu fusca falasse...

No primeiro filme de Steven Spielberg, Duel/Encurralado, um homem que viaja sozinho de carro sofre a perseguição implacável de um grande caminhão dirigido por um motorista sem rosto. Com a sofisticação da “sétima arte”, surgem os “road movies”, filmes que se passam quase todos sobre quatros rodas (às vezes duas, como os Diários de motocicleta, de Walter Salles, que levaram Coppola a escolher o brasileiro para dirigir o clássico estradeiro On the Road, baseado no romance de Jack Kerouac.) Wim Wenders fez Paris, Texas, em que o protagonista passa a maior parte do tempo percorrendo a pé as estradas poeirentas da América. Entre meus favoritos estão o noir Detour/Curva do destino (1945), de Edgar Ulmer; o febril Vanishing Point/Corrida contra o destino (1971), de Richard Sarafian; o feminista Thelma e Louise, de Ridley Scott; e Il Sorpasso/Aquele quer sabia viver de Dino Risi, de 1966, com Vittorio Gassman e Jean-Louis Trintignant. De uma dinastia de pilotos de corrida, Trintignant também foi corredor, campeão em sua categoria no Rally de Monte Carlo, e herói romântico de Um homem, uma mulher, ao volante do seu bólido de Fórmula-1. (Não vou entrar nisso aqui, mas o automobilismo esportivo [!] é uma rica arena em estatísticas mortais, não só de pilotos, mas de uma quantidade de inocentes espectadores.)

Entre as cenas de perseguição antológicas estão as de Bullitt, nas ruas de San Francisco, e Operação França, nas ruas debaixo do metrô elevado de Nova York. Também em Nova York, entrou para a história a cena surreal de Al Pacino, um cego, dirigindo loucamente em Perfume de mulher. O filme de perseguições de 2001, Velozes e furiosos, criou uma espécie de franquia que já chegou a nove filmes. Um de seus atores, Paul Walker – numa espécie de macabro marketing involuntário, morreu em 2013, aos 40 anos, num Porsche que bateu num poste, numa árvore e pegou fogo. Houve rumores de que Walker estaria participando de um racha.

As histórias de Stephen King estão cheias de carros. Em Christine, o carro assassino, ele levou a alegoria ao pé da letra. Em Pet Sematary/O cemitério, uma família se muda para uma casa à margem de uma autoestrada trafegada por grandes caminhões e o filho morre atropelado. Em Misery/Louca obsessão um escritor de sucesso, depois de um grave acidente de carro, é socorrido por uma fã que o mantém sob cativeiro para obriga-lo a escrever o próximo romance do jeito que ela quer.

Em 1999, o destino deu o troco: um homem que dirigia sozinho, importunado por um cão solto dentro da sua van, atingiu Stephen King pelas costas enquanto ele caminhava no acostamento de uma estrada perto de sua casa. O autor de 52 anos sofreu traumatismo craniano, fraturas múltiplas e perfurações num pulmão. Foi submetido a três cirurgias. Quase impossibilitado de trabalhar, King pensou em parar de escrever em 2002, mas acabou reconsiderando a decisão.

Em 1996, um filme polêmico, Crash – Estranhos prazeres, revelou o mundo dos simforofílicos – pessoas sexualmente excitadas por desastres de carro. Dirigido por David Cronenberg, recebeu em Cannes o Prêmio Especial do Juri, cujo presidente, Francis Ford Coppola, anunciou o premiação pela originalidade, ousadia e audácia”. Cito a sinopse pela Wikipedia: “Um acidente de trânsito envolve um publicitário e um casal, cujo marido morre e a mulher fica em estado grave. Quando se recupera, ela e o publicitário se tornam amantes e conhecem grupo de pessoas cujo fetiche sexual é reconstituir acidentes automobilísticos sem nenhuma segurança, aumentando a excitação de todos. O publicitário e a mulher acabam descobrindo um novo prazer, e o sexo passa a ser mais frequente dentro de carros acidentados. 

O conceito da linha de montagem da Ford transformou os operários em robôs décadas antes da robotização das indústrias.

A linha de montagem da Ford foi pioneira na indúsria.

Já no começo do século 20, Henry Ford massificou a produção de automóveis com o seu Modelo T. Em 1914, um operário podia adquirir um carro ao preço de quatro salários mensais. Tudo isso graças ao conceito da linha de montagem, que transformava os operários em robôs décadas antes da robotização das indústrias. A pantomima do homem que passa a vida apertando parafusos foi satirizada magistralmente por Chaplin em Tempos modernos (1936).

O fordismo assumiu até ares doutrinários. Edsel Ford, filho de Henry, contratou em 1932 o mexicano Diego Rivera para pintar uma série de afrescos gigantescos glorificando os métodos de produção da Ford, o que levou Diego e sua mulher, Frida Kahlo, a passarem dois anos em Detroit. Vale salientar que Frida não teria se tornado pintora – e o maior fenômeno de culto a um artista, superando até Marilyn Monroe, e ganhando projeção ainda maior no século 21 – se não tivesse sofrido aos 18 anos um terrível acidente de ônibus, abalroado por um bonde na capital mexicana. Nos longos meses de convalescença, ela desistiu da carreira médica e voltou à pintura, que a tornaria famosa e na qual o desastre de ônibus seria um leitmotiv, em telas ostensivamente autobiográficas expondo seus ferimentos e os coletes e aparelhos ortopédicos que usaria pelo resto da vida.

O aspecto religioso do fordismo é satirizado em 1932 por Aldous Huxley na sua distopia Admirável mundo novo, que se passa no ano de 632 DF (Depois de Ford). Em vez de Our Lord (Nosso Senhor), é usada a expressão Our Ford e a cruz católica é substituída pelo T, de Tecnologia.

A cada 24 segundos o carro mata uma pessoa na terra. Quantas vão morrer no ar com o novo “carro voador”?

A primeira morte de uma pessoa num acidente de automóvel foi a da irlandesa Mary Ward, 42 anos, naturalista e astrônoma. Em 31 de agosto de 1869, passeando nos arredores de Dublin num automóvel a vapor, fabricação caseira de um primo, foi jogada para fora do veículo numa curva e esmagada pelas rodas do carro.

A primeira pessoa a morrer atropelada por um carro foi a também irlandesa Bridget Driscoll, 44 anos, atingida por um automóvel que fazia uma demonstração no Crystal Palace de Londres, em 17 de agosto de 1896.

No cipoal das estatísticas sobre acidentes de carros na internet, não encontrei uma resposta simples para esta pergunta: quantas pessoas morreram até hoje em desastres de carro? Mesmo porque – segundo estatística recente – a cada 24 segundos morre alguém em decorrência dessa causa.

Cito um informe da Organização Mundial da Saúde que dá uma ideia da imensidão do problema:

“De acordo com o Global status report on road safety 2018, lançado em dezembro de 2018, as mortes nas estradas continuam aumentando em todo o mundo e mais de 1,35 milhão de pessoas perdem a vida todos os anos em decorrência de acidentes de trânsito, o que significa que, em média, morre uma pessoa a cada 24 segundos. O documento revela ainda que as lesões causadas pelo trânsito são hoje a principal causa de morte de crianças e jovens entre 5 e 29 anos.”

A conclusão é arrasadora: desde que passou a ocupar o espaço das ruas – os primeiros carros já circulavam na segunda metade do século 19 – o automóvel já matou mais gente do que todas as guerras, os genocídios, atentados terroristas, as pandemias e outras causas somadas.

Representação artística do eVtol da Embraer. Imagem de divulgação

Nos últimas semanas, a mídia tem publicado notícias eufóricas sobre o “carro voador”. Cito algumas manchetes: 

•“Startup está perto de por o eVTOL* no ar” (*eVTOL = electric  vertical take-off and landing)” • “Embraer forma parceria para desenvolver mercado de ‘carro voador’ na América Latina” • “Azul aposta em ‘carro voador’ para competir com helicóptero”.

Parabéns, bravos empreendedores! Como se não bastassem os acidentes de automóvel em terra, agora vão provoca-los também nos ares...