terça-feira, 25 de maio de 2021

A noite em que estraçalhei o Corvo no pingue-pongue • Por Roberto Muggiati


"Golpes de mestre" contra o golpista renitente. Foto Arquivo Nacional

Além do lendário Repórter Esso, e do Prêmio Esso de Reportagem, a multinacional do petróleo sustentou por poucos anos um projeto louvável: trazia para estagiarem em jornais cariocas jovens jornalistas das dez principais capitais brasileiras. Como redator da Gazeta do Povo de Curitiba, coube-me trabalhar durante duas semanas num dos jornais mais revolucionários de então, o Diário Carioca, com sede e oficinas na Avenida Rio Branco, 25. (O dono era Horácio de Carvalho, a primeira-dama Lily de Carvalho, depois Lily Marinho, primeira-dama de O Globo. O filho, Horacinho de Carvalho, morreria em 1966 num acidente da carro na Região dos Lagos com sua namorada, a cantora de bossa Sylvinha Telles.) Antes do estágio, fizemos uma visita protocolar ao lendário presidente da ABI, Herbert Moses, que nos recebeu numa sala no último andar do prédio da Esso, à avenida Beira-Mar. Guardo até hoje a lembrança do encontro. Foto Acervo Pessoal

Carlos Frederico Werneck de Lacerda, 46 anos, raquete na mão, me esperava com um riso sarcástico e as garras afiadas do Corvo. Era uma noite de maio de 1960, ele deputado federal, 46 anos, eu jornalista de Curitiba, 22 anos, fazendo um estágio no Diário Carioca. Estávamos sob o teto acolhedor do escritor Aníbal Machado, que abria sua casa aos domingos para a intelectualidade e o que mais pintasse. Rua Visconde de Pirajá, 487, Ipanema. Era uma casa de dois andares simpática, com um pequeno jardim e um grande quintal. 

Um parêntese: por que Carlos Frederico? Tão elementar que pouca gente sabe. Filho único de Maurício Paiva de Lacerda, defensor de operários e anarquistas, dirigente do Partido Comunista Brasileiro, preso em 1936 acusado de participar da Intentona Comunista, o pai homenageou no nome do filho os autores do Manifesto Comunista, Karl Marx e Friedrich Engels. Pai e filho, comunistas ardorosos, viraram a casaca no pós-guerra e aderiram ao partido de direita União Democrática Nacional (UDN), visceralmente anticomunista. Carlos, então com 30 anos, dizia: “Quem não foi comunista aos dezoito anos não teve juventude, quem é depois dos trinta não tem juízo”. 

Lacerda era daqueles políticos que se amava ou se odiava. Entrou para o folclore político como “O Corvo do Lavradio” (rua do seu jornal, a Tribuna da Imprensa.). Suas seguidoras eram as “mal-amadas”. Pertenceu à “banda de música da UDN” – também chamada de “as cassandras da oposição” – um grupo notável de políticos de direita que não aceitavam os governos democráticos de Getúlio (pós-50), JK e Jango. Envolveu-se num golpe para impedir a posse de JK, Presidente eleito democraticamente em 1955. 

A bordo do Almirante Tamandaré, os golpistas foram contidos pelo General Lott, líder legalista, depois que a artilharia do exército alvejou o cruzador (foi o último tiro disparado na baía de Guanabara.). Nos anos 60 o Rio foi infernizado por uma praga de insetos: o humor carioca os batizou na hora de lacerdinhas. Carlos Lacerda levou dois tiros no pé. Um real, no atentado da Rua Tonelero, em 1954; outro simbólico, um tiro que ele disparou contra si mesmo ao apoiar o golpe de 1964 na vã tentativa de usar os militares para assumir a Presidência da República, seu sonho dourado. Desiludido, já em 1966 participava da Frente Ampla com os ex-adversários JK e Jango. Os militares o castigaram no AI-5, cassando seus direitos políticos.

Pois bem, naquela noite em que Lacerda me desafiou “para uma partidinha” na domingueira do Aníbal, como democrata e esquerdista eu fui à forra e estraçalhei o Corvo. Afinal, eu era um campeão forjado desde criança na lendária mesa de pingue-pongue do meu tio e padrinho Muggiati Sobrinho em Guaratuba. O revide contra o golpista renitente foi na base de golpes de mestre, com saques indefensáveis e solertes raquetadas de efeito.

Só reencontraria Carlos Lacerda dezesseis anos depois, eu na função de editor da revista Manchete, ele como colaborador. O dono da empresa, Adolpho Bloch, se reconciliara com Lacerda na trágica noite da morte de JK, quando houve uma longa disputa pelo local do velório entre Niomar Moniz Sodré, presidente do MAM, e Adolpho. O voto de Lacerda a favor de Adolpho fez com que o ex-presidente fosse velado no prédio da Manchete, no Russell. Como prêmio, Lacerda ganhou uma página dupla semanal na revista Manchete. O problema era que, além de escrever muito mais do que cabia em duas páginas, ele queria descarregar naquele espaço todo o seu rancor contra os militares. O Presidente de plantão era Ernesto Geisel, o quarto na linha de cinco generais que tivemos de aturar em 21 anos de ditadura. Na segunda-feira eu fechava a Manchete num ritmo alucinante, às vezes trinta ou quarenta páginas com os acontecimentos do fim de semana. Não teria tempo para lidar com o Lacerda. Então o diplomático Zevi Ghivelder foi escalado por Adolpho – que não queria encrenca com os generais – para passar o dia inteiro negociando com Lacerda cada palavra, cada vírgula do seu artigão.

Desgostoso da vida, Carlos Lacerda morreu de infarto num hospital da Zona Sul carioca em 21 de maio de 1977, aos 63 anos. Correu o rumor de que a causa foi uma injeção equivocada que lhe deram. As mortes de Zuzu Angel, JK, Jango (em abril, agosto e dezembro de 1976) e Lacerda, cinco meses depois – se prestaram à Teoria do Complô de que foram todos eliminados pela ditadura. Se non è vero, è ben trovato...

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