por José Bálsamo
Outro dia a redação de Panis cum Ovum foi visitada por Michel Lagarride, nada menos do que o neto de Jean-Paul Lagarride, aquele que Mino Carta batizou como “bravo jornalista gascão”.
Explica-se: com seus furos internacionais, publicados pela Manchete, Jean-Paul era uma pedra no sapato do primeiro editor da revista Veja. Já se passou meio século destas cizânias e hoje Lagarride é considerado, sem nenhuma contestação, o pioneiro inventor das fake news. Faço aqui uma distinção, inspirado no cartaz de um camelô que vendia relógios em Istambul: GENUINE FAKE WATCHES!
Jean-Paul Lagarride só publicava fake news genuínas.
A preciosidade que nos foi trazida pelo neto Michel não foi um texto, mas, surpreendentemente, uma foto inédita de Jean-Paul. Com a preguiça típica da juventude, um Lagarride adolescente – que detestava escrever – tentou iniciar a carreira de repórter fotográfico com uma Leica que ganhou de um tio. Isso aconteceu justamente em Curitiba, quando Jean-Paul veio visitar o padrinho que resolvera arriscar suas economias no comércio de café no Paraná.
Mas por que cargas d’água iria Fernando Pessoa, então com 36 anos, parar em Curitiba? Depois de décadas de pesquisa intermitente – aparecia sempre uma guerra ou um golpe de estado nos lugares mais remotos do mundo, exigindo seu olho c(l)ínico e sua cobertura categorizada – Jean-Paul Lagarride conseguiu finalmente juntar as peças deste quebra-cabeças.
O acaso também o ajudou: logo depois de feita esta foto, o estranho que aparece em primeiro plano aproximou-se do garoto, que imediatamente escondeu a câmera às suas costas. Em bom português, indagou: “Ó rapazito, poderias me indicar o caminho da gare?” Como falava francês, Jean-Paul não estranhou o vocábulo e viu logo que se tratava da estação ferroviária. Com o passar do tempo – embora nunca dispusesse de tempo para ler – Lagarride foi tomando conhecimento de Fernando Pessoa e da importância de sua obra e ligando, cada vez mais, sua figura àquela do estranho com quem cruzou por acaso em Curitiba. E acabou relatando esta história no texto que acompanhava a foto, encontrada recentemente pelo neto de Lagarride numa velha caixa de sapatos num sótão parisiense.
Em 17 de março de 1925 morre em Lisboa aos 62 anos a mãe de Fernando Pessoa, D. Maria Magdalena Pinheiro Nogueira Pessoa. Na ocasião, era bispo de Curitiba, desde 1907, com o lema Amore et Fortitudine, o gaúcho de Pelotas Dom João Francisco Braga, que em 1926 se tornaria o primeiro arcebispo de Curitiba, cargo que manteria até sua renúncia em 1935. Antes de ingressar na carreira episcopal, Dom João fez o curso de humanidades na Alemanha. Durante sua estada na Europa, foi várias vezes a Lisboa, visitar um antigo sacristão seu na catedral de Curitiba, que retornara a Portugal. Este ex-coroinha era vizinho e amigo da mãe de Pessoa. Dom João não só conheceu D. Maria Magdalena, como também acabou se tornando seu conselheiro espiritual. A mãe deixara disposições funerais por escrito a Fernando Pessoa. Entre elas constava a de que, quando viesse a faltar, uma missa por sua alma fosse rezada por Dom João.
Quando a mãe morreu, Pessoa se lembrou da promessa: “Ora pois, pois, que maçada...” Mas promessa de mãe é lei. E – prosseguindo com a coleção de clichês – se a montanha não vem a Maomé, vai Maomé à montanha. Foi assim que, depois de uma intensa troca de cartas e de uma longa viagem transatlântica no paquete francês Hindoustan, o poeta aportou em Paranaguá e subiu a serra até Curitiba na genial ferrovia construída no século 19 pelos irmãos André e Antônio Rebouças. A missa em memória de Dona Maria Magdalena Pinheiro Nogueira Pessoa – o nome completo foi entoado com toda a solenidade na penumbra da catedral gélida – foi rezada às nove da manhã de um sábado hibernal, 20 de junho de 1925, Curitiba emergindo ainda da cerração.
Depois de agradecer e se despedir de Dom João – tendo antes comparecido com os polpudos óbolos – Fernando Pessoa deixou a Praça Tiradentes em demanda da gare, isto é, estação ferroviária, momento em que foi clicado para a eternidade pelo imberbe Jean-Paul Lagarride.
Enquanto isso, na Catedral, Dom João Francisco Braga, depois de ter comiserado a morte, celebrava a vida, oficiando o batizado de um bebê nascido no dia 14 de junho, Dalton Jerson Trevisan, filho de um fabricante de cerâmica curitibano. Infelizmente, esta segunda coincidência literária, Jean-Paul Lagarride não registrou.
Poderia ter-se justificado usando o desabafo canhestro do fotógrafo de Manchete Sérgio de Souza, ao receber ordens de serviço para duas matérias no mesmo horário, uma na Barra da Tijuca, outra em Niterói:
- “Que é isso, chefia? Eu não sou onipotente, não!”
4 comentários:
Quem sabe se ele fosse "Onipresente ", poderia cumprir as duas tarefas?
Que história maravilhosa. Como ele mesmo escreveu no poema Tabacaria "uma rua inacessível a todos os pensamentos".
É sério ou é brincadeira?
Bom texto! Só tenho uma pequena ressalva: o querido Serjão não estava totalmente errado ao falar que não era "onipotente". O que ele queria dizer na verdade é que "não era Deus", apesar de que o mais comum e banal seria usar a palavra onipresente. Aliás, lembro que ser onipotente, onipresente e onisciente são três caraterísticas de Deus. Grande Sergio de Souza!
Então, como diriam os chineses, I rest my case.. isto é, não tenho mais nada a dizer.
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