segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Automorte: a megapandemia • Por Roberto Muggiati


O que sobrou do carro Facel Vega de Albert Camus.. Foto de Jean-Jacques Levy. Reprodução Eurochannel

Li há pouco no Estadão uma resenha de um livro póstumo de W.G. Sebald em que Paulo Nogueira diz: “[Sebald] morreu em 2001, aos 57 anos, num acidente de carro. Por que tantos escritores são ceifados por veículos motorizados? Barbeiros? Azarados? Camicases? T.E. Lawrence, tietado por Bernard Shaw e Winston Churchill (e filmado por David Lean), se esborrachou em sua moto aos 46 anos, em 1935. Nathanael West, aos 37 anos, esmigalhou a si e a sua esposa numas férias no México, pilotando uma perua Ford. Em 1949, Margaret Mitchell, ainda curtindo as vendas astronômicas do seu único romance (... E o vento levou), foi atropelada por um taxista bêbado quando ia ao cinema com o marido. 

“De todas as maneiras de morrer, a morte num acidente de automóvel é a mais absurda.” ALBERT CAMUS

Camus. Foto Reprodução
Em 4 de janeiro de 1960, Albert Camus, Nobel de literatura, aceitou a carona de seu amigo e editor Michel Gallimard, desistindo do trem Provença-Paris. O carro bateu numa árvore e Camus morreu na hora, com 46 primaveras. Ele escrevera um dia que ‘de todas as maneiras de morrer, a morte num acidente de automóvel é a mais absurda.’ Quanto a Sebald, sofreu um ataque cardíaco ao volante e trombou com um caminhão – a filha dele sobreviveu.”

A lista de Nogueira me levou imediatamente para a lista que venho elaborando nos últimos tempos sobre “cadáveres excelentes” em desastres de automóvel. Além dos escritores citados por Nogueira, um verdadeiro Quem-é-quem de notáveis do século 20:

Em sua arrojada coreografia final, em 1927, aos 50 anos, a dançarina Isadora Duncan, ao ser lançada para fora de um carro esporte aberto quando sua longa echarpe se prendeu à roda e quebrou o seu pescoço. 

  O cineasta alemão F.W. Murnau, às vésperas de lançar seu filme Tabu: em 1931, aos 42 anos, numa estrada da Califórnia em uma Rolls-Royce alugada dirigida por um criado filipino de 14 anos; James Dean em seu carro de corrida, também na Califórnia, em 1955, aos 24 anos; em 1961, aos 25 anos, ainda na Califórnia – na estrada de Las Vegas para Los Angeles, Belinda Lee, a “Loren britânica”; Jayne Mansfield, decapitada, em 1967, aos 34 anos, numa estrada da Louisiana; Françoise Dorleac – irmã de Catherine Deneuve, também atriz – tentando não perder o voo no aeroporto de Nice, carbonizada no carro alugado cuja porta não conseguiu abrir, em 1967, aos 25 anos; a musa maior do cinema pornô, Linda Lovelace, em 2002, aos 53 anos, em Denver, Colorado, onde morava há dez anos. Linda já tinha sofrido um desastre de carro em 1970, que lhe causou hepatite em consequência de uma transfusão de sangue; e um transplante de fígado em 1987.

Em Paris, os playboys do século: o príncipe Ali Khan, ex-marido de Rita Hayworth, em 1960, aos 48 anos; e, em 1965, aos 56 anos, o diplomata dominicano Porfírio Rubirosa – entre suas conquistas amorosas figuram Rita Hayworth, Ava Gardner, Marilyn Monroe, Judy Garland, Kim Novak, a ex-Princesa Soraya, Evita Perón. Depois de passar a noite comemorando a vitória do seu time de polo na Copa da França, Rubirosa bateu com sua Ferrari numa árvore do Bois de Boulogne. Um dos maiores pintores do expressionismo abstrato, Jackson Pollock, alcoolizado, jogou seu carro contra uma árvore em 1956, aos 44 anos, numa inequívoca – e bem sucedida – tentativa de suicídio. A cantora de blues Bessie Smith, em 1937, aos 43 anos: teve o braço amputado depois de um acidente numa estrada do Sul dos EUA e sua morte, atribuída à demora no atendimento hospitalar por motivos racistas, inspirou uma peça de protesto de Edward Albee, A morte de Bessie Smith, em 1959. O trompetista de jazz Clifford Brown e o pianista Richie Powell, caíram de um viaduto na Pensilvânia , em 1956, num carro dirigido pela inexperiente mulher de Powell. Morreram todos. Clifford tinha 25 anos, Richie 24 e Ms. Powell 19. Em 1961, a sensação do contrabaixo no jazz, Scott LaFaro, do Bill Evans Trio, morreu num acidente em Flint, estado de Nova York, depois de acompanhar Stan Getz no Festival de Newport. Sua morte, aos 25 anos, deixou Bill Evans em estado de choque durante vários meses.

Chora Estácio, Salgueiro e Mangueira, todo Brasil emudeceu, chora o mundo inteiro, o Chico Viola morreu...SAMBA DE 1952, DE ANTÔNIO NÁSSARA E WILSON BATISTA

O enterro de Chico Viola. Reprodução Manchete

No Brasil, a música popular pagou um pesado tributo ao automóvel. Esta história cobre 45 anos e poderia se chamar De Chico Viola a Chico Science. Em 1952, no auge da fama, Francisco Alves dirigia sua Buick de São Paulo ao Rio na Via Dutra quando foi atingido por um caminhão e morreu carbonizado. A canção de Nássara e Wilson Batista cantada por Linda Batista o eternizou: “Chora Estácio, Salgueiro e Mangueira, todo Brasil emudeceu, chora o mundo inteiro, o Chico Viola morreu...” O Rei da Voz tinha 54 anos, 34 de carreira. 

Musa da bossa nova, a cantora Sylvia Telles escapou em 1964 com pequenas escoriações ao dormir no volante voltando de um show. Dois anos depois, quem dormiu ao volante foi seu namorado, Horacinho de Carvalho, na estrada de Maricá, e morreram os dois.  Sylvinha, 32 anos, viajaria no dia seguinte para gravar um álbum em Nova York. 

O carro Brasília que Maysa diriga. Foto Manchete

Maysa Matarazzo, musa da canção de fossa, vivia em depressão aguda, isolada na Região dos Lagos. Depois do casamento do filho no Rio em 1977, voltava para Maricá sozinha quando morreu num acidente na Ponte Rio-Niterói. Uma das últimas anotações no diário que mantinha desde a adolescência: “Hoje é novembro de 1976, sou viúva, tenho 40 anos de idade e sou uma mulher só. O que dirá o futuro?” 

Gonzaguinha nasceu condenado a viver à sombra do Gonzagão. Mas conseguiu abrir seu próprio caminho e tudo ia às mil maravilhas quando a morte o pegou na estrada para Foz do Iguaçu, onde pegaria um avião para um show em Florianópolis. Em 1991, aos 45 anos.

Em 1990, aos 19 anos, o filho de Gilberto Gil, Pedro, baterista promissor, morreu ao se chocar com uma árvore na Curva do Calombo, na Lagoa Rodrigo de Freitas; em 1998, morre aos 19 anos num desastre de carro no Aterro do Flamengo o filho de Tom Jobim, João Francisco Lontra Jobim.

Criador do mangue beat, Chico Science seguia em 1997 de Recife a Olinda quando foi fechado por outro carro e bateu num poste. Teria sobrevivido não fossem as falhas no cinto de segurança. A Fiat pagou dez milhões de reais à família, mas isso não trouxe Chico de volta. Tinha 30 anos.

Sertanejos vivem na estrada – e morrem também. Uma curva traiçoeira levou João Paulo. Sua canção favorita: Poeira da estrada.

Sertanejos vivem na estrada – e morrem também: João Paulo, parceiro de Daniel, em 1997 , aos 37 anos, na Rodovia dos Bandeirantes, SP. Seu carro capotou várias vezes e pegou fogo, o cantor ficou preso entre as ferragens. Sua música favorita era Poeira da estrada.  Cristiano Araújo, em 2015, aos 29 anos, em Goiânia: ele e a namorada, sem cinto de segurança no banco traseiro, foram projetados para fora do carro.

Integrante da dupla do funk Claudinho & Buchecha, Cláudio Rodrigues de Mattos, em 2002 aos 26 anos, ao volante de seu carro, bateu numa árvore voltando de um show em Seropédica, RJ. 

Às vésperas do Natal de 1974, a atriz Adriana Prieto, aos 24 anos, depois de bater com seu fusca numa viatura da PM na Avenida Nossa Senhora de Copacabana e atingir a vitrine de uma butique. Apesar da pouca idade, fez dezoito filmes em seis anos de carreira. 

Em 1998, o craque Edmundo chocou-se com outro carro na Lagoa Rodrigo de Freitas. Três pessoas morreram no acidente. Condenado por triplo homicídio culposo, obteve liberdade provisória e em 2020 a sentença prescreveu. Quase no mesmo local da Lagoa Rodrigo de Freitas, um dos craques mais promissores da nova geração, Dener, morreu aos 23 anos, asfixiado pelo cinto de segurança no banco do carona – o carro era dirigido por um amigo que dormiu ao volante. Também na Lagoa, a poucos metros, na antevéspera do Natal de 1987, morreu aos 44 anos o jornalista Paulo César de Araujo, num carro dirigido pela diretora de jornalismo da TV Globo Alice-Maria, que sofreu várias fraturas. PC, como era conhecido, tinha deixado recentemente a chefia de reportagem da revista Manchete para trabalhar na TV Globo.

Um dos luminares do glam rock, Marc Bolan, vocalista e guitarrista da banda T. Rex, em Londres, em 1977, aos 29 anos: um Mini dirigido pela namorada estourou o pneu e bateu numa árvore.

Um dos mais importantes filósofos da comunicação, Roland Barthes, em 1980, aos 64 anos, atropelado por um furgão de tinturaria em Paris.

Dono de um dos talk shows mais famosos da TV americana, compositor de oito mil canções, escritor e artista polivalente, Steve Allen morreu em 2000, aos 78 anos, em decorrência de um trauma nas costelas que  não parecia grave. Um “barbeiro” atingiu seu carro numa marcha a ré desastrada. Allen, espirituoso e cordial, disse ao sujeito: “Veja só o que as pessoas são capazes de fazer para conseguir um autógrafo meu!...” 

Ted Kennedy pôs fim à dinastia política de sua família num desastre mal explicado numa ponte de Massachusetts.

Ted Kennedy dirigia o carro em que Mary Jo Kopechne morreu. Reprodução

Mary Jo Kopechne, em 1969, aos 28 anos, em Chappaquiddick, Massachusetts. Depois de uma festa das garotas que fizeram campanha presidencial do senador Robert Kennedy, ela pegou uma carona no carro do senador Ted Kennedy, que caiu de uma tosca ponte de madeira num lago. Kennedy – que estaria de caso com Mary Jo – escapou e deixou o local sem prestar assistência à jovem, que morreu afogada. A autopsia revelou que ela estava grávida. O escândalo decretou o fim da dinastia política dos irmãos Kennedy. 

Alexander Dubček, líder da Primavera de Praga, em 1992, aos 70 anos, num desastre de estrada perto de Humpolec. Barack Obama Senior, político queniano e pai do futuro Presidente dos Estados Unidos, em 1982 aos 48 anos. O automóvel perseguiu implacavelmente Obama Sr: um primeiro acidente, em 1970, o deixou com uma perna prejudicada; no segundo acidente, teve as pernas amputadas e no terceiro morreu.

Eden Ahbez, judeu americano do Brooklyn, primeiro hippie e vegano, vivia ao relento debaixo do primeiro L do famoso letreiro HOLLYWOOD em Los Angeles, quando sua composição Nature Boy se tornou um hit na voz de Nat King Cole. Ahbez viveu saudável até os 86 anos, mas não escapou às sequelas de um desastre de carro em Los Angeles, em 1995.

O terceiro homem a caminhar pelo solo da Lua morreu num banal passeio de moto na Califórnia.

Uma morte incomum: o terceiro homem a andar sobre a Lua, Charles “Pete”  Conrad Jr, comandante da missão Apolo 12, morreu num passeio de motocicleta na Califórnia em 1999, aos 69 anos. A moto também participa ativamente desta carnificina. O roqueiro Duane Allman, da banda Allman Brothers, em Macon, Georgia, em 1971, aos 24 anos. Um ano depois, a três quadras do local do seu acidente, também numa moto, morre o baixista da banda, Berry Oakley, aos 24 anos. Foi sepultado ao lado de Duane, no cemitério de Macon. Escritor, compositor, cantor folk, ícone da contracultura, Richard Farina ia na garupa de uma moto que se acidentou em Carmel, California, em 1966. Tinha 29 anos. Outros roqueiros famosos também sofreram acidentes de moto: Bob Dylan, Billy Joel, Billy Idol, Ozzy Osbourne, Steven Tyler, Mark Knopfler. 

Um detalhe curioso: a moto em que morreu Lawrence da Arábia foi presente da mulher de George Bernard Shaw. Outro: o neurocirurgião que pesquisou a morte de Lawrence se tornaria o pioneiro do capacete de proteção.

E a bicicleta? Em 2014, no Central Park de Nova York, o roqueiro Bono, do U2, caiu ao tentar se desviar de outro ciclista. Fraturou a omoplata, o úmero, a órbita ocular e o dedo mínimo. Numa cirurgia de cinco horas recebeu três placas metálicas e 18 parafusos. Por muito tempo, Bono pensou que jamais voltasse a tocar guitarra.

A cultura sempre glamurizou o carro. Já nos anos 1920 o italiano Filippo Marinetti, autor do Manifesto Futurista, afirmava: “O esplendor do mundo se enriqueceu com uma nova beleza, a beleza da velocidade: um carro de corrida é mais bonito que a Vitória de Samotrácia.” 

A pintora maior do estilo art déco, Tamara de Lempicka, celebrou o automóvel em 1929 no famoso autorretrato Tamara numa Bugatti verde. 


O automóvel tem presença tão marcante no cinema que chegou a criar um gênero: o chamado road movie



Os carros estão presentes no cinema desde o início. Nos filmes mudos dos Keystone Cops, eles se prestam a correrias intermináveis. Já aparecem mais carros do que pessoas nestes filmes, é muito provável que, ao longo da história do cinema, a quantidade de automóveis na tela supere a de seres humanos. Em alguns filmes, o carro é até o protagonista, como em Se meu fusca falasse...

No primeiro filme de Steven Spielberg, Duel/Encurralado, um homem que viaja sozinho de carro sofre a perseguição implacável de um grande caminhão dirigido por um motorista sem rosto. Com a sofisticação da “sétima arte”, surgem os “road movies”, filmes que se passam quase todos sobre quatros rodas (às vezes duas, como os Diários de motocicleta, de Walter Salles, que levaram Coppola a escolher o brasileiro para dirigir o clássico estradeiro On the Road, baseado no romance de Jack Kerouac.) Wim Wenders fez Paris, Texas, em que o protagonista passa a maior parte do tempo percorrendo a pé as estradas poeirentas da América. Entre meus favoritos estão o noir Detour/Curva do destino (1945), de Edgar Ulmer; o febril Vanishing Point/Corrida contra o destino (1971), de Richard Sarafian; o feminista Thelma e Louise, de Ridley Scott; e Il Sorpasso/Aquele quer sabia viver de Dino Risi, de 1966, com Vittorio Gassman e Jean-Louis Trintignant. De uma dinastia de pilotos de corrida, Trintignant também foi corredor, campeão em sua categoria no Rally de Monte Carlo, e herói romântico de Um homem, uma mulher, ao volante do seu bólido de Fórmula-1. (Não vou entrar nisso aqui, mas o automobilismo esportivo [!] é uma rica arena em estatísticas mortais, não só de pilotos, mas de uma quantidade de inocentes espectadores.)

Entre as cenas de perseguição antológicas estão as de Bullitt, nas ruas de San Francisco, e Operação França, nas ruas debaixo do metrô elevado de Nova York. Também em Nova York, entrou para a história a cena surreal de Al Pacino, um cego, dirigindo loucamente em Perfume de mulher. O filme de perseguições de 2001, Velozes e furiosos, criou uma espécie de franquia que já chegou a nove filmes. Um de seus atores, Paul Walker – numa espécie de macabro marketing involuntário, morreu em 2013, aos 40 anos, num Porsche que bateu num poste, numa árvore e pegou fogo. Houve rumores de que Walker estaria participando de um racha.

As histórias de Stephen King estão cheias de carros. Em Christine, o carro assassino, ele levou a alegoria ao pé da letra. Em Pet Sematary/O cemitério, uma família se muda para uma casa à margem de uma autoestrada trafegada por grandes caminhões e o filho morre atropelado. Em Misery/Louca obsessão um escritor de sucesso, depois de um grave acidente de carro, é socorrido por uma fã que o mantém sob cativeiro para obriga-lo a escrever o próximo romance do jeito que ela quer.

Em 1999, o destino deu o troco: um homem que dirigia sozinho, importunado por um cão solto dentro da sua van, atingiu Stephen King pelas costas enquanto ele caminhava no acostamento de uma estrada perto de sua casa. O autor de 52 anos sofreu traumatismo craniano, fraturas múltiplas e perfurações num pulmão. Foi submetido a três cirurgias. Quase impossibilitado de trabalhar, King pensou em parar de escrever em 2002, mas acabou reconsiderando a decisão.

Em 1996, um filme polêmico, Crash – Estranhos prazeres, revelou o mundo dos simforofílicos – pessoas sexualmente excitadas por desastres de carro. Dirigido por David Cronenberg, recebeu em Cannes o Prêmio Especial do Juri, cujo presidente, Francis Ford Coppola, anunciou o premiação pela originalidade, ousadia e audácia”. Cito a sinopse pela Wikipedia: “Um acidente de trânsito envolve um publicitário e um casal, cujo marido morre e a mulher fica em estado grave. Quando se recupera, ela e o publicitário se tornam amantes e conhecem grupo de pessoas cujo fetiche sexual é reconstituir acidentes automobilísticos sem nenhuma segurança, aumentando a excitação de todos. O publicitário e a mulher acabam descobrindo um novo prazer, e o sexo passa a ser mais frequente dentro de carros acidentados. 

O conceito da linha de montagem da Ford transformou os operários em robôs décadas antes da robotização das indústrias.

A linha de montagem da Ford foi pioneira na indúsria.

Já no começo do século 20, Henry Ford massificou a produção de automóveis com o seu Modelo T. Em 1914, um operário podia adquirir um carro ao preço de quatro salários mensais. Tudo isso graças ao conceito da linha de montagem, que transformava os operários em robôs décadas antes da robotização das indústrias. A pantomima do homem que passa a vida apertando parafusos foi satirizada magistralmente por Chaplin em Tempos modernos (1936).

O fordismo assumiu até ares doutrinários. Edsel Ford, filho de Henry, contratou em 1932 o mexicano Diego Rivera para pintar uma série de afrescos gigantescos glorificando os métodos de produção da Ford, o que levou Diego e sua mulher, Frida Kahlo, a passarem dois anos em Detroit. Vale salientar que Frida não teria se tornado pintora – e o maior fenômeno de culto a um artista, superando até Marilyn Monroe, e ganhando projeção ainda maior no século 21 – se não tivesse sofrido aos 18 anos um terrível acidente de ônibus, abalroado por um bonde na capital mexicana. Nos longos meses de convalescença, ela desistiu da carreira médica e voltou à pintura, que a tornaria famosa e na qual o desastre de ônibus seria um leitmotiv, em telas ostensivamente autobiográficas expondo seus ferimentos e os coletes e aparelhos ortopédicos que usaria pelo resto da vida.

O aspecto religioso do fordismo é satirizado em 1932 por Aldous Huxley na sua distopia Admirável mundo novo, que se passa no ano de 632 DF (Depois de Ford). Em vez de Our Lord (Nosso Senhor), é usada a expressão Our Ford e a cruz católica é substituída pelo T, de Tecnologia.

A cada 24 segundos o carro mata uma pessoa na terra. Quantas vão morrer no ar com o novo “carro voador”?

A primeira morte de uma pessoa num acidente de automóvel foi a da irlandesa Mary Ward, 42 anos, naturalista e astrônoma. Em 31 de agosto de 1869, passeando nos arredores de Dublin num automóvel a vapor, fabricação caseira de um primo, foi jogada para fora do veículo numa curva e esmagada pelas rodas do carro.

A primeira pessoa a morrer atropelada por um carro foi a também irlandesa Bridget Driscoll, 44 anos, atingida por um automóvel que fazia uma demonstração no Crystal Palace de Londres, em 17 de agosto de 1896.

No cipoal das estatísticas sobre acidentes de carros na internet, não encontrei uma resposta simples para esta pergunta: quantas pessoas morreram até hoje em desastres de carro? Mesmo porque – segundo estatística recente – a cada 24 segundos morre alguém em decorrência dessa causa.

Cito um informe da Organização Mundial da Saúde que dá uma ideia da imensidão do problema:

“De acordo com o Global status report on road safety 2018, lançado em dezembro de 2018, as mortes nas estradas continuam aumentando em todo o mundo e mais de 1,35 milhão de pessoas perdem a vida todos os anos em decorrência de acidentes de trânsito, o que significa que, em média, morre uma pessoa a cada 24 segundos. O documento revela ainda que as lesões causadas pelo trânsito são hoje a principal causa de morte de crianças e jovens entre 5 e 29 anos.”

A conclusão é arrasadora: desde que passou a ocupar o espaço das ruas – os primeiros carros já circulavam na segunda metade do século 19 – o automóvel já matou mais gente do que todas as guerras, os genocídios, atentados terroristas, as pandemias e outras causas somadas.

Representação artística do eVtol da Embraer. Imagem de divulgação

Nos últimas semanas, a mídia tem publicado notícias eufóricas sobre o “carro voador”. Cito algumas manchetes: 

•“Startup está perto de por o eVTOL* no ar” (*eVTOL = electric  vertical take-off and landing)” • “Embraer forma parceria para desenvolver mercado de ‘carro voador’ na América Latina” • “Azul aposta em ‘carro voador’ para competir com helicóptero”.

Parabéns, bravos empreendedores! Como se não bastassem os acidentes de automóvel em terra, agora vão provoca-los também nos ares...

domingo, 8 de agosto de 2021

Isso a Fatos & Fotos não mostrou - Livro revela que reportagem da revista pode ter facilitado tocaia contra matador de Lampeão

 

A capa do livro e o trecho que relaciona a revista com tocaia a Noratinho, o sargento
que matou Lampião

por Nilton Muniz de Oliveira (*)


A revista Fatos & Fotos, quem diria, pode ter se envolvido involuntariamente em uma vingança fatal contra um dos matadores de Lampião, o rei do cangaço. 

Em textos recentes, (mês passado) muito se publicou sobre a data da morte de Lampião, em 28 de julho de 1938, aos 40 anos. Lendo o livro "Apagando o Lampião, Vida e Morte do Rei do Cangaço" , do historiador Frederico Pernambucano de Mello, encontrei na página 20, dois trechos em que ele cita a revista Fatos e Fotos. Pelo que o livro registra, a reportagem pode ter ajudado em uma provável vingança da morte de Lampião. Leia a página acima reproduzida. Em março de 1962 a FF publicou uma matéria com um sargento reformado que fez parte da "volante" policial que matou o rei do cangaço. Depois de duas décadas de silêncio, Noratinho, era o apelido de Antonio Honorato, assumia na entrevista: "Eu matei Lampião".  Na reportagem, segundo o livro, ele "cometeu o descuido de revelar onde morava". Poucos meses depois, em setembro de 1962, Noratinho foi morto  "com um tiro no peito dado de longa distância". E a Fatos & Fotos publicou nova reportagem dessa vez com o título "A vingança de Lampião".

(*) Nilton Muniz de Oliveira trabalhou na Bloch, no Departamento de Serviços Editoriais, setor diretamente ligado às revistas Manchete, Fatos & Fotos e demais publicações da Rua do Russell.

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Olimpíada também tem "Centrão"


Do Washington Post: Estados Unidos criaram contagem própria. Não é fake news mas manipula o critério do COI. Total de medalhas quando os gringos ganham mais pódios e soma de ouros quando estão à frente em... ouro. Assim é mole liderar


New York Times ficou nervoso porque os russos mesmo punidos estão em Tóquio.
 E ganhando medalhas

Corr


Corriere prefere não esconder: Comitê Olímpico Russo é Rússia. 


L'Equipe também não adota o eufemismo. ´É Rússia.

por José Esmeraldo Gonçalves

A Olimpíada é um evento fascinante. Uma pausa agradável em meio a conflitos e interesses de países, não importa a ideologia. Para todos é questão estratégica do tal soft power. O público em geral, uma audiência de bilhões de pessoas, se liga na TV, redes sociais e demais meios de comunicação para curtir apenas o Esporte.

À margem dos Jogos, a política sempre esteve e está presente. A visibilidade proporcionada pelos atletas costuma sofrer um sequestro por parte de chefes de governo e Estados. Dê como certo que em breve veremos uma ofensiva política por parte do governo brasileiro para receber atletas medalhados em Tóquio. 

Meios de comunicação também extraem significados geopolíticos em torno das Olimpíadas. Fora do ambiente esportivo denúncias barulhentas, forças-tarefa do tipo Lava-Doping, disputas entre cartolas e acusações de suborno eventualmente permeiam algumas edições dos Jogos. 

É curioso observar como, às vezes, a cepa da política contamina sutilmente o jornalismo. Os meios de comunicação estadunidenses têm, por exemplo, um modo próprio e ultra patriota de contar as vitórias. Se os EUA perdem em ouros mas ganham no total de medalhas, os quadros publicados registram em primeiro lugar a soma dos pódios dourados mais a prata e o bronze; se, em algum momento, os EUA passam a totalizar mais ouros, a tabela é modificada e o primeiro lugar passa a ser do país que alcançou mais vezes o degrau mais alto do pódio, desde que esse pais seja os EUA. Eles se lixam para o padrão tradicional de contagem do Comitê Olímpico Internacional. A mídia brasileira por enquanto não adotou tal critério.

Outra anomalia surgiu agora em relação aos atletas da Rússia. As equipes foram envolvidas em um rumoroso escândalo de doping em grande escala, segundo investigação promovida pela Agência Mundial Antidoping com apoio dos Estados Unidos. Sofreu uma mega e inédita punição. Sentenciada em 2016 e agora, além de afastada da Copa do Catar (2022) e das Olimpíadas de Inverno na China, 2022 (não será surpresa se o caso for  requentado e venha nova punição para a Rússia nos Jogos de Paris, em 2024), o país de Putin compete como Comitê Olímpico Russo, sem bandeira nacional e sem hino. Ouve-se Tchaicovsky na hora do pódio. O que, aliás, é ótimo. Foi a maneira que o COI encontrou para preservar os atletas ditos "limpos" e não lhes tirar o direito de competir. The New York Times e Washington Post não gostaram disso e analisam que a punição não valeu já que os russos permanecem visíveis e ainda por cima estão ganhando muitas medalhas. A "narrativa", como dizem os bolsonaristas, pegou. No Brasil, O Globo publicou editorial protestando contra o  arranjo do COI e só se refere aos atletas como do Comitê Olímpico Russo (ROC na siglas em inglês). Veículos da França e da Itália, entre outros, não seguem a cartilha de Washington. Para eles, russos são russos.

Em Tóquio, restou aos atletas russos cantarem We will ROC you. Uma irônica paródia do clássico We will Rock You. 

Vem mais aí. Como sede da próxima Olimpíada de Inverno, a China pode ser alvo de boicote. É o que recomenda oficialmente a União Europeia, embora deixe a cada país a decisão de ir ou não a Pequim. 

Como se vê, a geopolítica não vai deixar de invadir o pódio dos atletas.  Melhor seria a política virar logo modalidade. Daria grande audiência ver Biden, Macron, Boris Johnson, Xi Jinping, Putin etc disputando luta romana, por exemplo. É luta de contato intenso. No mínimo, conheceriam uns aos outros. Bem intimamente. 

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

A mosca na sopa da bossa nova • Por Roberto Muggiati

José Ramos Tinhorão. Foto Instituto
Moreira Salles/Divulgação
José Ramos Tinhorão – morto nesta terça-feira aos 93 anos – foi um dos maiores pesquisadores da música popular brasileira, isso ninguém nega. Mas ele aplicava à sua opinião parâmetros da critica marxista, com um radicalismo que chegava às raias da paranoia. 

Num século em que a música popular se enriqueceu através de fusões internacionais, aceleradas pelo advento do rádio, do cinema e dos discos, Tinhorão ainda se apegava à ideia do nacionalismo cultural. Por esse critério, ele cancelava a arte de um Johnny Alf, por ter adotado um codinome ianque (sic), e a de Baden Powell, por homenagear com seu nome o criador do escotismo. 

Inimigo ferrenho da bossa nova, que definia como “uma versão pasteurizada do jazz”, Tinhorão dizia ter pena de Tom Jobim, “porque ele imagina que está compondo música brasileira”. Ficou famoso o líde de um texto seu para a revista Senhor em 1963: “Filha de aventuras secretas de apartamento com a música americana que é, inegavelmente, sua mãe – a bossa nova, no que se refere à paternidade, vive até hoje o drama de tantas crianças de Copacabana, o bairro em que nasceu: não sabe quem é o pai”. 

Nascido em Santos, filho de português, José Ramos teve o Tinhorão acrescido ao seu nome na redação do Diário Carioca nos anos 50. Explicação: o tinhorão é uma planta altamente venenosa. Recorro aos compêndios:

“O tinhorão (nome científico Caladium bicolor) é considerado uma planta muito tóxica, devido à presença de cristais de oxalato de cálcio e saponinas em suas folhas. O contato destas substâncias com os olhos, mucosas e pele pode provocar intensa ardência, inflamação e vermelhidão. A ingestão pode provocar edema de glote e consequente asfixia e morte.”

No auge de suas investidas contra a bossa, Tom Jobim plantou um pé de tinhorão em seu jardim, no qual fazia pipi religiosamente toda noite antes de dormir. 

Conheci Tinhorão de perto em 1968, quando ele foi trabalhar na editoria da Veja que eu chefiava, a de Artes e Espetáculos. Nunca entendi como um jornalista opiniático da sua cepa foi contratado por uma revista que pretendia implantar no Brasil o jornalismo objetivo da Time. Na verdade, Tinhorão chegou à minha editoria transferido da de Vida Moderna, com a qual se incompatibilizara. Uma coisa foi consenso na Veja: o Tinhorão não poderia nunca escrever sobre música. Principalmente no momento em que a bossa fazia o seu nome lá fora, com Sinatra gravando Jobim, e em que a Tropicália desfraldava a bandeira multicolorida da contestação. Não tive outra opção: escalei-o para responder as cartas dos leitores. Lembro-me do Tinhorão numa das “baias” da redação, discursando sobre o materialismo dialético e tentando doutrinar os jovens repórteres, entre eles Tárik de Souza, que se tornaria importante crítico musical.

Guardei um episódio pitoresco daqueles tempos. Uma das raras coisas ianques que Tinhorão tolerava – na verdade, adorava – eram os carrões. Mal começou a trabalhar em Veja, comprou um daqueles modelos vintage. Antes de chegar à redação, no prédio da Abril na Marginal do Tietê, costumava navegar lentamente pelas ruas da Lapa. Um belo dia, um coronel do Exército se apresenta na portaria da Veja com uma grave queixa: um funcionário da revista estaria assediando sua nora, seguindo-a insistentemente de carro ao longo das calçadas. Nunca ficou provado que o agressor seria de fato o nosso José Ramos, embora um desafeto tivesse trazido à baila que o Tinhorão foi personagem da peça de Nelson Rodrigues Bonitinha, mas ordinária, um sujeito metido a conquistador.

Figura polêmica, uma coisa ninguém poderá tirar de José Ramos Tinhorão: a importância cultural de livros como Pequena História da Música Popular, História Social da Música Popular Brasileira e A Música Popular no Romance Brasileiro. Num comentário contra a Universidade de São Paulo, ele ironizou um dia: “Eles comem Tinhorão e arrotam Mário de Andrade”. E não é que tinha razão?

terça-feira, 3 de agosto de 2021

A falência da Bloch estreia nesse mês a 21ª Temporada. Não é um bom seriado...

- É massa!

A curiosa gíria baiana remete a uma coisa legal, bonita, bacana. Uma boa música é massa! Um acarajé bem apimentado é massa! A skatista Rayssa é massa! Rebeca é massa! 

Para os ex-funcionários da Bloch Editores, essas são, ao contrário, as cinco letras que choram, como dizia um antigo samba.     

Neste agosto a Massa Falida da Bloch Editores completa 21 anos. O drama de milhares de ex-funcionários e suas famílias alcança uma triste maioridade. 

Você já leu neste blog muitas matérias sobre o assunto. Também já foi dito aqui que massas falidas são empresas sob administração judicial e, em geral, são autofágicas. Consomem suas próprias entranhas. A autofagia, como se sabe, se realiza quando as células se mobilizam para eliminar as toxinas que envelhecem os corpos. Esse processo, a autofagia, tenta retardar ao máximo o envelhecimento e ganhar vida longa. 

Assim são as massas falidas. 

A MF da extinta Bloch Editores não é diferente. 

É fato que ao longo de pouco mais de duas décadas a maioria dos trabalhadores habilitados recebeu os valores principais das indenizações. Também é fato que muitos foram levados a fazer "acordos" que reduziram esses valores. Posteriormente, segundo relatos de jornalistas que trabalharam na Bloch,  receberam parte da correção monetária devida sobre o montante daquelas indenizações. Contudo, esses pagamentos, chamados "rateios", foram suspensos há cerca de cinco anos. Outro grupo de ex-funcionários da Bloch, numericamente menor, permanece habilitado aguardando ainda o pagamento dos valores chamados principais a que tem direito. E um terceiro grupo - daqueles ex-funcionários da Bloch que indicaram ter funções na Rede Manchete - optou por entrar com ações trabalhistas contra a TV Ômega, a adquirente das concessões das emissoras. A Ômega chegou a pagar indenizações a muitos ex-Bloch, mas quando a Justiça determinou que a empresa que controla a RedeTV não era sucessora da TV Manchete e muito menos da Bloch Editores a conta de muitos e muitos dígitos - apenas um desses "boletos" está em torno de R$ 4 milhões - foi espetada no caixa da Massa Falida da Bloch Editores.

A legitimidade e o volume dos custos da MF da Bloch. as disputas jurídicas, não estão em questão aqui. O que se constata é o que o tempo consumiu e consome dos bens destinados a  garantir os direitos plenos dos credores trabalhistas. E o quanto esse mesmo tempo impactou os ex-funcionários, suas famílias, seus herdeiros.

Por fim: há meses ex-funcionários da Bloch pedem ao administrador da Massa Falida da Bloch Editores uma reunião para discutir a quitação da correção monetária e das indenizações trabalhistas ainda pendentes. Você recebeu uma resposta? Nem eles. 

21 anos? Isso não é massa! (J.E)


segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Você conhece algum letão?

 

Evandro boquiaberto diante de Točs. Foto de Pilar Olivares/Reuters  (*)

Você conhece algum letão? 

Nem eu. Isto é, posso dizer que passei a conhecer na madrugada desta segunda-feira a fenomenal dupla de vôlei-de-praia Edgars Točs e Mārtiņš Pļaviņš, que eliminou os brasileiros Evandro-Bruno Schmidt e agora enfrenta Alison e Álvaro Filho no próximo mata-mata. As meninas letãs, Graudina e Kravčenoka, também mostraram que são boas de bola em Tóquio: bateram a dupla brasileira Ana Patrícia e Rebecca por dois sets a um. 

E o hóquei-no-gelo é que é o esporte nacional da Letônia, uma das três repúblicas bálticas, com a Estônia, ao norte, e a Lituânia, ao sul. A população do país está em torno dos dois milhões de habitantes, equivalente à da cidade de Curitiba. E a grande contribuição cultural da Letônia é o fato de ser um letão o personagem principal do primeiro romance do belga Georges Simenon sobre o Comissário Maigret, um dos maiores investigadores da literatura policial. Maigret aparece em 75 romances e 28 contos e surgiu pela primeira vez em 1931 – há exatos 90 anos – no livro Pietr-o-letão. R.M.

(*) Uma Olimpíada produz muitas imagens, mas algumas são especiais. Como essa que ilustra esse post. A defesa de Točs parece deixar perplexo o brasileiro Evandro. A foto é de Pilar Olivares, fotógrafa que mora no Brasil e tem um trabalho importante sobre as cores e dores da América do Sul. Clique AQUI para conhecer um pouco mais do trabalho da peruana. Ou acesse  https://www.instagram.com/pilarrio/?hl=pt

Na capa do Globo: Paolla Oliveira é vacina contra a tradição de desfortunas de Agosto

 

por Flávio Sépia 

Em tempos sombrios o Globo enfeitou o domingo, 1° de agosto, com uma capa que destaca a  exuberante Paolla Oliveira em foto de Fe Pinheiro para a revista ELA. Um tipo de primeira página mais rara na linha do jornal carioca. Bem melhor do que uma capa com Michel Temer, Bolsonaro e, com todo o respeito, o Dalai Lama também citados no noticiário de ontem. 

É um mês que costuma aprontar. A história da política brasileira guarda decepções o ano todo, mas Agosto, que homenageia o imperador César Augusto, é campeão em crises. 

Que a bela Paolla seja a melhor vacina. 

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Incêndio da Cinemateca Brasileira: as chamas do ódio à Cultura.

 

Foto Instagram

Manifesto dos trabalhadores da Cinemateca Brasileira sobre o incêndio na unidade da Vila Leopoldina

"O incêndio que acometeu o edifício da Cinemateca Brasileira na Vila Leopoldina na noite de 29 de julho de 2021 foi um crime anunciado, que culminou na perda irreparável de inúmeras obras e documentos da história do cinema brasileiro. Essas instalações são parte fundamental e complementar em relação ao espaço da Vila Clementino, onde se encontra armazenada a maior parte do acervo da Cinemateca Brasileira. Recentemente, em fevereiro de 2020, uma enchente já havia afetado grande parte do acervo documental e audiovisual lá depositado.

Há mais de um ano denunciamos publicamente a possibilidade de incêndio nas dependências da Cinemateca pela ausência de quaisquer trabalhadores de documentação, preservação e difusão. Houve o alerta sobre a chance de o sinistro ocorrer nos acervos de nitrato da Vila Clementino, pois trata-se de material inflamável que pode entrar em autocombustão sem revisão periódica. Não foi o caso deste, o quinto incêndio na instituição. No entanto, as causas são as mesmas. Seguramente, muitas perdas poderiam ter sido evitadas se os trabalhadores estivessem contratados e participando do dia a dia da instituição.

No próximo dia 8 de agosto completará um ano do abandono da Cinemateca Brasileira pelo Governo Federal e a demissão de todo seu corpo técnico, que sequer recebeu os salários não pagos e as rescisões pela anterior gestora,

Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto – Acerp. Ainda assim foi noticiada a contratação de equipes de manutenção, bombeiros e limpeza. Apesar de serem fundamentais para o funcionamento do arquivo de filmes, não são suficientes para suas demandas específicas, como evidenciado neste dia fatídico.

A situação se torna mais crítica se pensarmos que essa ausência de equipe técnica especializada por um ano possivelmente teve consequências irreversíveis para o estado de conservação dos materiais. Certos danos são silenciosos, porém tão trágicos quanto um incêndio, e igualmente irrecuperáveis. Trata-se do tempo de vida dos diversos materiais, diminuindo drasticamente, e da perigosa deterioração dos filmes de nitrato e de acetato. Apenas com o retorno da equipe especializada será possível avaliar as extensões das perdas e danos para que então as atividades de conservação sejam retomadas.

O acervo que estava armazenado na Vila Leopoldina, apesar de em menor número, possuía igual relevância e importância ao da Vila Clementino. Abaixo listamos alguns dos materiais possivelmente perdidos ou afetados no incêndio de 29 de julho de 2021:

Do acervo documental: grande parte dos arquivos de órgãos extintos do audiovisual como parte do Arquivo Embrafilme – Empresa Brasileira de Filmes S.A. (1969 – 1990), parte do Arquivo do Instituto Nacional do Cinema – INC (1966 – 1975) e Concine – Conselho Nacional de Cinema (1976 – 1990), além de documentos de arquivo ainda em processo de incorporação. Para evitar que novas enchentes atingissem o acervo, parte desses materiais foi transferida do térreo para os depósitos climatizados no primeiro andar, principal área atingida pelo incêndio. Tal medida ocorreu após uma grave enchente em fevereiro de 2020. Parte do acervo de documentos oriundos do arquivo Tempo Glauber, do Rio de Janeiro, inclusive duplicatas da biblioteca de Glauber Rocha e documentos da própria instituição.

Do acervo audiovisual: parte do acervo da distribuidora Pandora Filmes, de cópias de filmes brasileiros e estrangeiros em 35mm. Matrizes e cópias de cinejornais únicos, trailers, publicidade, filmes documentais, filmes de ficção, filmes domésticos, além de elementos complementares de matrizes de longas-metragens, todos estes potencialmente únicos. Essa parcela do acervo já havia sido parcialmente afetada pela enchente recente. Parte do acervo da ECA/USP – Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo da produção discente em 16mm e 35mm. Parte do acervo de vídeo do jornalista Goulart de Andrade.

Do acervo de equipamentos e mobiliário de cinema, fotografia e processamento laboratorial: além do seu valor museológico, muitos desses objetos eram fundamentais para consertos de equipamentos em uso corrente, pois, para exibir ou mesmo duplicar materiais em película ou vídeo, é necessário maquinário já obsoleto e sem reposição no mercado.

O incêndio da noite de ontem é mais um motivo pelo qual não podemos esperar para dar um basta à política de terra arrasada e de apagamento da memória nacional! Estamos em luto, pela perda de mais de meio milhão de brasileiros, e agora pela perda de parte da nossa história. Incêndio na Cinemateca Brasileira em 2016, no Museu Nacional em 2018 e, novamente, na Cinemateca em 2021. Além de todas as mortes evitáveis, nossa história vem sendo continuamente extirpada – como um projeto. Infelizmente, perdemos mais uma parte do patrimônio histórico-cultural brasileiro.

A Cinemateca Brasileira não pode ficar à mercê de novas intempéries. A gestão da instituição por meio de terceirização via Organização Social, da forma como foi realizada, mostrou como pode ser frágil essa relação, e que tal modelo não

dá conta da complexidade de um órgão cultural desse porte. O edital prometido pelo Governo Federal, sem debate, ferramentas de transparência, a participação da população, de pessoas da área de patrimônio cultural e, principalmente, do coletivo dos ex-trabalhadores da instituição, não será a solução. Alerta-se ainda que o orçamento anunciado é significativamente inferior ao necessário. É preciso estabilidade e garantia de equipe técnica a longo prazo, oferecendo à instituição um orçamento compatível com os necessários serviços de preservação e difusão do audiovisual brasileiro."

Sem trabalhadores não se preservam acervos!

Trabalhadores da Cinemateca Brasileira

São Paulo, 30 de julho de 2021.


quinta-feira, 29 de julho de 2021

China protesta contra a Reuters. Na edição de fotos só a chinesa é "feia"?

Todo atleta faz careta em momento crítico. Mas a edição da Reuters só
não poupou a chinesa. Foto Reprodução Twitter


por Clara S. Britto
Confira acima. O embaixador chinês viu preconceito na escolha da foto "feia".
Quando não gostava de uma foto Adolpho Bloch mastigava e comia o indigitado cromo. Era a versão que corria na Bloch, sempre melhor do que o fato.  Ontem, o embaixador chinês em Sri Lanka praticamente deglutiu uma foto da Reuters. Ele não gostou de uma montagem que a agência divulgou no Twitter com três fotos de atletas ocidentais como espécimes quase perfeitos ao lado de um halterofilista chinesa fazendo careta, obviamente contraída pelo esforça ao levantar mais de 150kg. O embaixador achou a foto "feia" do postada de propósito ao lado de sorridentes ocidentais e acusou a Reuters de preconceito. 

Isso leva a um observação. De fato, aparentemente, as rede sociais passaram a observar a estética dos atletas. E não raro com preconceito. A goleira Bárbara, da seleção brasileira feminina, tem sido alvo de críticas preconceituosas. É acusada de "gorda".

Felizmente, a Olimpíada ainda permite uma diversidade de corpos e raças. Essa é a beleza do jogo. Os halterofilistas têm curvas e músculos, nadadores são enxutos, quenianos são magros,  judocas são pesados, arqueiros são gordos, magros ou barrigudinhos, ao pessoal do tiro não importa o peso, a galera da luta romana repete várias vezes o prato feito do restaurante olímpico, as lançadoras do martelo são volumosas. 

Cabe tudo na passarela dos Jogos.


Rebeca Andrade, a menina de prata

Rebeca quer inspirar crianças. Foto de Ricardo Bufolin/CBG/Divulgação

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por Niko Bolontrin 

A primeira medalha da ginástica artística feminina do Brasil em Jogos Olímpicos. Esse é o tamanho do feito de Rebeca Andrade. 

E tudo isso ao som do funk Baile de Favela. 

Você acha que a vida está fácil? Pois bem antes de ganhar a prata inédita e escalar o degrau do pódio, a menina de Guarulhos (SP) passou por três cirurgias no joelho. 

“Eu nem sei explicar o que passou pela minha cabeça. Eu queria muito me sair bem hoje, não digo nem para ganhar medalha, mas fazer uma boa ginástica, uma boa inspiração para outras crianças pretas, brancas, todas as crianças que estão vendo. E um orgulho para o Brasil. Está sendo incrível. Todas as mulheres que passaram pela ginástica artística do Brasil se veem nessa medalha, elas estão muito orgulhosas de mim e se sentindo orgulhosas dessa história”, disse ela ao site do COB.  

Os melhores resultados da ginástica feminina do Brasil até então eram os quintos lugares de Daiane dos Santos (solo), em Atenas 2004, e de Flavia Saraiva (trave), no Rio 2016.

Rebeca Andrade ainda competirá nas finais do salto, no dia 1 de agosto, e do solo, no dia 2.

Boa sorte!

Em Tóquio, a geopolítica não sobe ao pódio. Os atletas, sim.

O Globo, 28-7-2021

por José Esmeraldo Gonçalves

No endereço que atende pelo nome 1600 Pennsylvania Ave NW, Washington, DC, o editorial do Globo ontem, deve ter sido recebido com muita satisfação.

Joe Biden e o Departamento de Estado assinariam embaixo.

O jornal não está contente com a participação da Rússia na Olímpiada do Japão. A cada medalha, lábios trêmulos e olho rútilo, como descreveria Nelson Rodrigues, ele baba a espuma da indignação. 

Como todos sabem, a Rússia está competindo em Tóquio sob a bandeira do ROC (Russian Olympic Cometee, na sigla em inglês, sem lenços, documentos e bandeira. O uniforme exibe discretamente as cores nacionais. Quando sobem ao pódio, o que tem acontecido com frequência, os atletas russos ouvem música de Tchaikovsky, como o Concerto para Piano Nº1. 

Mas o editorialista acha pouco e quer botar pra quebrar. Decreta que a Rússia deveria competir sem nome e apenas com a bandeira do Comitê Olímpico Internacional, assim como atuam os refugiados. 

Nos estádios, piscinas, ginásios, pistas e raias de Tóquio ninguém está preocupado com a geopolítica.  

Os atletas de todos os países dão exemplo de confraternização, estão em uma prateleira acima da raiva. Convivem com os colegas russos, tiram selfies juntos.  

De fato, são polêmicos o contexto, as conclusões e as punições que resultaram de uma suposta e massificada operação de doping comandada pela Rússia. Cerca de mil atletas russos sofreram sanções, 14 medalhas olímpicas conquistadas em Londres 2012 foram cassadas. Depois dessa primeira onda de punições, vieram outras em 2019 e o país foi banido de competições esportivas até 2022. Isso inclui a Copa do Catar e a próxima Olimpíada de Inverno  A Rússia acusa a WADA (World Anti-Doping Agency) de atuar sob comando de americanos e ingleses, com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos participando da investigação. Parece claro que a isenção não ganhou medalha nesse rumoroso caso.

Folha de São Paulo, 29-7-2021

Ao tratar do mesmo assunto, a Folha de São Paulo "controlou o psicológico", como dizem os atletas, e foi mais sóbria. Não ligou o megafone do ativismo para pedir mais punicões. 

Apesar da pandemia e da indefinição sobre a realização dos jogos, o que tornou tensa a preparação dos atletas, tem sido bonita a festa e o brilho dos atletas em Tóquio. 

Inclusive dos atletas russos.

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Governo homenageia o "Rambo" ruralista

 

Reprodução Twitter

Além de ter armas como "instrumentos de trabalho", traficantes e milicianos cultivam uma espécie de fetiche por fuzis, pistolas e espingardas 12. É comum postarem nas redes sociais fotos em que exibem o arsenal. 

A Secom, da Presidência da Republica, parece gostar da mesma estética. 

Para homenagear os ruralistas - hoje é o Dia do Agricultor - o Planalto elaborou uma campanha cujo destaque é um homem com um rifle em meio a uma plantação. Os "gênios" da Secom devem achar que essa é a ferramenta principal dos agricultores, antes de arados, tratores e enxadas. A cena remete à política do governo Bolsonaro empenhado em armar apoiadores. 

Para a ultra direita em se plantando tudo é bala.


Brasileiro tem que ser estudado... O Bananão, como dizia Ivan Lessa, não é para amadores

 

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segunda-feira, 26 de julho de 2021

Sobrou emoção no Japão. Rayssa é prata! Ítalo é ouro!

 

Rayssa, a pequena  heroína. Foto de Wander Roberto/ COB/Divulgação

Rayssa Leal, 13, circulava pelo Skate Park Olímpico com a mesma naturalidade que demonstra nos seus vídeos na cidade natal, Imperatriz, no Maranhão. A menina que conquistou Tóquio fez história nos como a atleta mais jovem a ganhar uma medalha nas Olimpíadas, isso em longos 85 anos, e na estreia do skate como modalidade olímpica..

“Não caiu a ficha ainda. Poder representar o Brasil e ser uma das mais novas a ganhar uma medalha. Eu estou muito feliz, esse dia vai ser marcado na história. Eu tento ao máximo me divertir porque eu tenho certeza de se divertindo as coisas fluem”, disse, ainda sob a emoção da vitória. Na disputa final, Rayssa somou 14,64 pontos. As japonesas Nishiya Momiji, com 15s26, foi ouro, e Funa Nakayama, com 14,49, ganhou a medalha de bronze. 

Rayssa revelou esperar que em 2024, nos Jogos de Paris, as meninas do Brasil estejam de novo representando país. 


Italo Ferreira: na onda do ouro. Foto Jonne Roriz. COB/Divulgação

Italo Ferreira, de Baía Formosa, Rio Grande do Norte, ganhou medalha de ouro. Também fez história ao subir no pódio na estreia do surfe nas Olimpíadas. Ítalo deu um show nos aéreos. Certamente, em 2024, poderá brilhar ainda mais nas ondas gigantes de Teahupoo, no Taiti, Polinésia Francesa, que será o palco da disputa como parte da Olimpíada de Paris.

domingo, 25 de julho de 2021

Já temos polícia política. Leia o artigo abaixo que circula nas redes sociais desde as manifestações de ontem

por Mauro Ventura (do Facebook)

Ao fim da manifestação do dia 3 de julho, no Rio, um amigo jornalista passou por um cordão de policiais e ouviu:

- Vontade de jogar uma granada.

A frase foi dita provavelmente como uma afronta a ele, que estava com uma bandeira de “Fora Bolsonoro”. Meu amigo, claro, não reagiu. Com meu pessimismo habitual, pensei: “Vai chegar o momento em que as provocações vão deixar de ficar na ameaça e se tornar realidade.” É explicável. À medida que os protestos se avolumam e incomodam cada vez mais o governo, a tendência é começarem as confusões, numa tentativa de macular e criminalizar as manifestações. Seja por parte de vândalos, black blocs, policiais ou extremistas de direita infiltrados. 

Não deu outra, ainda que de forma isolada. Eu só não poderia imaginar que viraria alvo. Antes de continuar o relato, recuemos até o início do ato deste 24 de julho. Estava lindo, como os anteriores. Mas a impressão que dava era a de que os cariocas vivem na cidade mais tranquila do mundo - e a de que todos os possíveis criminosos estavam concentrados na Avenida Presidente Vargas. Afinal, parecia que boa parte do aparato policial do Rio tinha sido deslocado para lá. Isso criava uma tensão desnecessária no ar – as pessoas ali estavam mais interessadas em se manifestar de forma incisiva, mas ao mesmo tempo criativa contra o governo. 

 Em alguns trechos, os policiais chegaram a montar barreiras para bloquear o caminho das pessoas, algo que não havia acontecido nos três primeiros atos. Fiquei me perguntando a razão. Um dos PMs exibia ostensivamente a arma - que me parecia de bala de borracha -, movendo-a de um lado para outro, numa manifestação de força dispensável.

Mais para o fim do protesto, um grupo de policiais começou a se movimentar ruidosamente para a Avenida Rio Branco. A curiosidade profissional falou mais alto e decidi segui-los. Junto, havia um pequeno grupo de manifestantes, fotógrafos e jornalistas. 

A certa altura, os policiais começaram a revistar aleatoriamente quem estava em volta. Não sei por que me pouparam. Não encontraram nada além de documentos, álcool gel, celulares. Um dos policiais disse aos demais:

- Vamos arrumar um sozinho. Faz um cerco por todos os lados. 

Os PMs formaram então um cordão. O que parecia o chefe elegeu um rapaz que estava com uma mochila e alguns malabares e disse: 

- Tá preso! Desacato.

Não entendi a razão. O problema é que desacato a autoridade é algo complicado. Debaixo desse guarda-chuva, pode estar de fato uma ofensa a um funcionário público como pode estar uma simples cisma de uma autoridade. 

Os policiais empurraram o rapaz para a parede, revistaram-no e o obrigaram a se sentar. As pessoas em volta, indignadas, começaram a gritar: “Solta!”, “Os bandidos estão em Brasília!”, “Polícia de Bolsonaro!”. 

Os PMs fizeram uma barreira para impedir que as pessoas se aproximassem, e trataram de afastar quem protestava – e até quem só observava, como era meu caso. Primeiro com empurrões, depois com spray de pimenta. Num determinado momento, um dos jatos atingiu meus olhos, provocando uma ardência indesejada. Para minha sorte, não foi disparado diretamente a mim, mas sim a quem estava a meu lado. Mas foi suficiente para me deixar ligeiramente desnorteado.

 Nessa hora, percebi que todo mundo se afastava de mim. Esfreguei os olhos, espiei para baixo e notei a razão. Haviam jogado o que parecia ser uma bomba do meu lado. Não tinha ideia do que poderia ser. Se fosse de gás lacrimogêneo, eu ia penar. Já estive em protestos em que a polícia jogou bombas de gás e sofri, mesmo estando à distância. E se, por outro lado, fosse bomba de efeito moral, daquelas que explodem com grande estrondo e soltam nuvem de talco? Ou daquelas que produzem um clarão que desorienta temporariamente? Na hora, não deu para pensar em nada disso. Somente: “Ferrou.”

O artefato explodiu junto a meus pés. Felizmente, não era nada demais. Fiquei curioso de saber do que se tratava, já que só fez algum barulho. Não teve nenhuma consequência além de um susto. 

- Vou tacar outra! – gritou um policial. 

Ainda que a primeira não tenha causado nenhum estrago, achei mais prudente me afastar. E continuei acompanhando. Logo depois, os policiais pararam uma patrulhinha do 5º Batalhão, pegaram uma algema e arrastaram o malabarista agressivamente para dentro da viatura. 

- Malabar agora é crime – espantou-se uma moça a meu lado.

Na capa da Veja: uma teocracia sobre a sua cabeça


Da Veja: "A defesa dos interesses da Universal em Angola — uma violação à Constituição — é o exemplo mais recente da aproximação Igreja-Estado no Brasil"



Arles: do café de Van Gogh à Torre de Frank Gehry • Por Roberto Muggiati

Le Café de nuit,Van Gogh, Arles

Como bolsista do Centre de Formation des Journalistes de Paris, em 1961 – já rolaram 60 anos num piscar de olhos – fui escalado nas férias de Páscoa para estagiar no Midi Libre de Montpellier. Um redator do jornal, ex-aluno do CFJ, me despachou logo: não tinham tempo para me dar atenção, os fechamentos eram corridos e desgastantes. O diretor de redação assinou uma carta atestando que eu fizera um brilhante estágio e me liberaram. Além do estágio, eu devia escrever uma matéria sobre a região, o Hérault. Passei dois dias ouvindo funcionários locais e recolhendo farto material, escreveria quando voltasse a Paris. Sobrou muito tempo para fazer turismo no local, na época um destino de viagem quase virgem na França.

Visitei Carcassonne – cidade medieval preservada intacta – a região selvagem e pantanosa da Camarga – onde os ciganos da Europa fazem seu encontro anual em Les Saintes Maries de la Mer – e, na segunda-feira de Páscoa, fui até Arles – era dia de touradas – mas preferi procurar o café amarelo pintado por Van Gogh. Não existia mais, fora destruído por uma bomba na Segunda Guerra. (Nos anos 1990, reconstruíram algo no local simulando o “café Van Gogh”, atração turística que os incautos julgavam fosse o original.) Percorri os Alyscamps – também pintados por Van Gogh – necrópoles romanas: na língua da Ocitânia Alys Camps nada mais eram do que Campos Elísios... Depois de visitar em Paris a ilha da Grande Jatte – a obra-prima do pontilhista Seurat, que retrata um domingo de verão da belle époque, onde só encontrei lixo e ferro-velho – o Terraço do café à noite em Arles de Van Gogh foi outra que me ficaram devendo...

Luma Arles, de Frank
Gehry. Foto Divulgação
Um fato novo me leva àqueles tempos. Arles acaba de ganhar um museu fabuloso projetado pelo arquiteto canadense especialista em grandes museus, Frank Gehry – aquele do Guggenheim de Bilbao. A torre de sessenta metros não teria surgido sem o patrocínio da grande colecionadora suíça Maja Hoffman, herdeira das indústrias farmacêuticas do mesmo nome, em cujos laboratórios o cientista Albert Hoffman sintetizou em 1938 o ácido lisérgico, mais conhecido como LSD. Gehry disse que a inspiração da torre Luma foi a tela pintada por Van Gogh em Arles, Noite estrelada. Pelo visual da coisa, suspeito que ele possa ter recebido um “little help” psicodélico. Aliás, Van Gogh pintava como se tivesse tomado ácido. 

E, já que estou viajando, vamos ao prelúdio da Suite L’Arlesienne, dedicada à mulher de Arles, composta por Georges Bizet – sim, o pai da Carmen – adoro Bizet, pena que só viveu 36 anos, reparem o saxofone já no naipe de sopros, numa época em que a sinfônica esnobava o instrumento criado por Adolphe Sax.

Ouçam AQUI



sábado, 24 de julho de 2021

Até o dia clarear

Reprodução Twitter

A liturgia da bandalha

Reproduzido d Globo (24-7-2021)

O colunista Ascânio Seleme, do Globo, compara a primeira camada da linguagem do Senado e da Câmara, a versão cenográfica, com a segunda camada, a verdadeira. Entre uma e outra o jogo sem vergonha dos eufemismos. 

sexta-feira, 23 de julho de 2021

Cicciolina ainda choca? • Por Roberto Muggiati

Cicciolina na Manchete.
Foto de João Miguel Jr/Manchete


Dewi Sukarno, também à mesa na sede da Rua do Russel

Foto de Gil Pinheiro/Manchete


Em 1997, aos 45 anos, a musa do pornô italiano chocava (duplo sentido), em poses lascivas de galinha poedeira – só ela mesmo seria capaz – sobre a grande mesa de jacarandá do restaurante da Bloch para as câmeras da Manchete e da imprensa brasileira e internacional. (Na ocasião, fez uma ponta na telenovela Xica da Silva como uma cortesã genovesa.)

É bom explicar à rapaziada que pegou o bonde da História andando no milênio: Ilona Staller nasceu em 1950 na Hungria, foi espiã soviética na Itália, ganhou cidadania ao casar com um italiano, entrou com furor no nascente pornô peninsular com o nome de guerra de Cicciolina (“Fofinha”), daí como um vendaval na política radical, fundando o Partido do Amor e depois o DNA (Democracia, Natureza e Amor), tendo sido a segunda deputada mais votada nas eleições de 1987.

Agora, à véspera dos 70 anos, ela embarcou num projeto polêmico, o “Classic Nudes” (disponível no You Tube), um guia interativo que faz, sem autorização, para o site Pornhub, uma releitura picante de mais de cem obras-primas de museus como Louvre, Prado, MoMA, Uffizi e outros grandes. A volta de Cicciolina às manchetes me lembrou que não foi ela a única a sentir uma atração erótica irresistível pelas mesas da Manchete

Nos anos 1970, Adolpho Bloch recebeu no primeiro prédio do Russell a viúva do presidente da Indonésia, Dewi Sukarno, hoje com 81 anos, socialite, celebridade da TV, filantropa. Nascida em Tóquio, estudante de artes e garçonete, aos 19 anos conheceu o presidente indonésio de 57 anos, que casou com ela em 1962, nomeando-a Ratna Sari Dewi Sukarno – no sânscrito javanês, “a joia essência de uma deusa”. Presidente desde 1945, Sukarno foi derrubado por um golpe de Suharto em 1967 e morreu três anos depois. Ao visitar o Teatro Adolpho Bloch em novembro de 1974, a bela Dewi, no viço dos seus 34 anos, posou soberana e suavemente sexy sobre a mesa do foyer. 

Reparem: Cicciolina e Dewi ambas virginalmente de branco...


quinta-feira, 22 de julho de 2021

Forças nada ocultas (e o "voto impresso" como pretexto para um ataque desesperado à democracia)




por José Esmeraldo Gonçalves
O fato político do dia decorre de uma matéria do Estadão. Segundo o jornal, o ministro da Defesa, general Braga Neto, teria mandado um recado para o presidente da Câmara, Arthur Lira, basicamente avisando que as eleições de 2022 só acontecerão se o voto impresso for aprovado. 

O motivo da suposta pressão é a emenda em análise na Câmara que se aprovada obrigará a emissão de um "recibo" impresso do voto (mais conhecido, nas redes sociais, como "boleto da milícia", uma irônica referência ao que poderia ser um "comprovante" da compra e venda do voto. O projeto propõe que uma cédula seja impressa após a votação eletrônica, de modo que o eleitor possa conferir o voto antes que ele seja depositado 

(Veja informação abaixo, ao fim do post*)

Há cerca de duas semanas Bolsonaro expressou a mesma ameaça, publicamente. O que o general fez agora, de acordo com a reportagem, foi referendar e assinar embaixo da ofensiva contra a Constituição e a democracia. 

A matéria do Estadão protege as fontes, mas ressalta que vários políticos e até um ministro do STF têm conhecimento da ameaça de Braga, alguns testemunharam o recado. Os repórteres, como mostra a denúncia, checaram as informações em vários níveis. Braga Neto nega que tenha enviado o recado, mas admite que o Governo Federal defende o "voto eletrônico auditável". 

Bolsonaro e adeptos denunciam repetidamente fraude na apuração de votos. Desafiado a mostrar provas se acovarda também seguidamente. E já antecipa que só a fraude impedirá sua reeleição no ano que vem. Bolsonaro não é original ao lançar suspeitas sobre as urnas. Apenas segue a tática de Donald Trump, que aliás levou uma horda de apoiadores a invadir o Congresso americano, no dia 6 de janeiro, quando deputados e senadores confirmavam oficialmente a vitória de Joe Biden. 

A propósito dos instintos do ex-presidente americano, os jornalistas investigativos Philip Rucker e Carol Leonnig, do Washington Post, lançam o livro “I alone can fix it: Donald J. Trump's catastrophic final year” (“Só eu posso resolver isso: o catastrófico ano final de Donald J. Trump”), onde revelam que a cúpula militar dos Estados Unidos chegou a temer um golpe de Estado e teria se preparado para reagir. A primeira resposta seria um pedido de demissão coletiva caso Trump passasse a dar ordem ilegais. 

(*) O projeto que cria o voto impresso, apoiado pelo governo, vem na sequência de fake news que circulam nas redes sociais, Os defensores da medida alegam que o voto eletrônico não pode ser auditado. O TSE desmente. Veja trechos de matéria no site do tribunal: 

"Depois que a votação é encerrada, o total de votos registrados em cada aparelho é gravado em uma mídia digital. Posteriormente, o resultado é transmitido ao TSE por meio de uma rede exclusiva da Justiça Eleitoral, o que impede qualquer tentativa de interceptação por hackers. Os dados chegam criptografados ao Tribunal, onde são checados e somados por um programa. (...) Todo o processo pode sim ser auditado".

"Antes da eleição, os códigos-fonte usados na urna eletrônica podem ser conferidos no TSE. Durante todo o processo eleitoral, é permitido checar e auditar todos os softwares que realizam a totalização dos votos. Por fim, depois da votação, tudo fica registrado no Boletim de Urna (BU), um relatório detalhado, que contém, entre outras informações, o total de votos por partido e por candidato, bem como a totalidade de eleitores aptos a votar na seção e a quantidade de votos nulos e brancos".

"Quer verificar o resultado da sua seção eleitoral, cidade ou até de todo o país? Você pode: basta checar o Boletim de Urna disponibilizado após o término da votação ou no Portal do TSE. 

Nas telas do 'Braziu!'