Folha de São Paulo, 19/1/2023 |
por José Esmeraldo Gonçalves
Jornalismo, mídia social, TV, streaming, opinião, humor, variedades, publicidade, fotografia, cultura e memórias da imprensa. ANO XVI. E, desde junho de 2009, um espaço coletivo para opiniões diversas e expansão on line do livro "Aconteceu na Manchete, as histórias que ninguém contou", com casos e fotos dos bastidores das redações. Opiniões veiculadas e assinadas são de responsabilidade dos seus autores. Este blog não veicula material jornalístico gerado por inteligência artificial.
Folha de São Paulo, 19/1/2023 |
José Ramos Tinhorão. Foto Instituto Moreira Salles/Divulgação |
Num século em que a música popular se enriqueceu através de fusões internacionais, aceleradas pelo advento do rádio, do cinema e dos discos, Tinhorão ainda se apegava à ideia do nacionalismo cultural. Por esse critério, ele cancelava a arte de um Johnny Alf, por ter adotado um codinome ianque (sic), e a de Baden Powell, por homenagear com seu nome o criador do escotismo.
Inimigo ferrenho da bossa nova, que definia como “uma versão pasteurizada do jazz”, Tinhorão dizia ter pena de Tom Jobim, “porque ele imagina que está compondo música brasileira”. Ficou famoso o líde de um texto seu para a revista Senhor em 1963: “Filha de aventuras secretas de apartamento com a música americana que é, inegavelmente, sua mãe – a bossa nova, no que se refere à paternidade, vive até hoje o drama de tantas crianças de Copacabana, o bairro em que nasceu: não sabe quem é o pai”.
Nascido em Santos, filho de português, José Ramos teve o Tinhorão acrescido ao seu nome na redação do Diário Carioca nos anos 50. Explicação: o tinhorão é uma planta altamente venenosa. Recorro aos compêndios:
“O tinhorão (nome científico Caladium bicolor) é considerado uma planta muito tóxica, devido à presença de cristais de oxalato de cálcio e saponinas em suas folhas. O contato destas substâncias com os olhos, mucosas e pele pode provocar intensa ardência, inflamação e vermelhidão. A ingestão pode provocar edema de glote e consequente asfixia e morte.”
No auge de suas investidas contra a bossa, Tom Jobim plantou um pé de tinhorão em seu jardim, no qual fazia pipi religiosamente toda noite antes de dormir.
Conheci Tinhorão de perto em 1968, quando ele foi trabalhar na editoria da Veja que eu chefiava, a de Artes e Espetáculos. Nunca entendi como um jornalista opiniático da sua cepa foi contratado por uma revista que pretendia implantar no Brasil o jornalismo objetivo da Time. Na verdade, Tinhorão chegou à minha editoria transferido da de Vida Moderna, com a qual se incompatibilizara. Uma coisa foi consenso na Veja: o Tinhorão não poderia nunca escrever sobre música. Principalmente no momento em que a bossa fazia o seu nome lá fora, com Sinatra gravando Jobim, e em que a Tropicália desfraldava a bandeira multicolorida da contestação. Não tive outra opção: escalei-o para responder as cartas dos leitores. Lembro-me do Tinhorão numa das “baias” da redação, discursando sobre o materialismo dialético e tentando doutrinar os jovens repórteres, entre eles Tárik de Souza, que se tornaria importante crítico musical.
Guardei um episódio pitoresco daqueles tempos. Uma das raras coisas ianques que Tinhorão tolerava – na verdade, adorava – eram os carrões. Mal começou a trabalhar em Veja, comprou um daqueles modelos vintage. Antes de chegar à redação, no prédio da Abril na Marginal do Tietê, costumava navegar lentamente pelas ruas da Lapa. Um belo dia, um coronel do Exército se apresenta na portaria da Veja com uma grave queixa: um funcionário da revista estaria assediando sua nora, seguindo-a insistentemente de carro ao longo das calçadas. Nunca ficou provado que o agressor seria de fato o nosso José Ramos, embora um desafeto tivesse trazido à baila que o Tinhorão foi personagem da peça de Nelson Rodrigues Bonitinha, mas ordinária, um sujeito metido a conquistador.
Figura polêmica, uma coisa ninguém poderá tirar de José Ramos Tinhorão: a importância cultural de livros como Pequena História da Música Popular, História Social da Música Popular Brasileira e A Música Popular no Romance Brasileiro. Num comentário contra a Universidade de São Paulo, ele ironizou um dia: “Eles comem Tinhorão e arrotam Mário de Andrade”. E não é que tinha razão?
Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sergio Dias. Foto de Antonio Trindade/Manchete |
Numa estratégia equivocada, o velho VeeCee, 61 anos, adotou a grade funcional da Time, copiando seu expediente, preenchendo centenas de empregos com os melhores jornalistas do Brasil. O êxodo das redações cariocas para a Pauliceia somava algumas dezenas de editores, redatores e repórteres. Acontece que a Time – iniciada com um punhado de bravos em 1923 – evoluiu palmo a palmo até sua configuração de 1968, ao longo de cinco décadas, num cenário sociocultural específico, atravessando os crazy twenties, o crack da Bolsa, a Depressão, a Segunda Guerra, o boom dos anos 50, a Guerra Fria e os swinging sixties, ou seja, um cenário tipicamente norte-americano.
Ainda: a campanha publicitária dava a impressão de que a Veja seria a Manchete da Abril. Esse erro foi bombasticamente reforçado na véspera do lançamento: transmitido pela TV em cadeia nacional às 20 horas de domingo 8 de setembro (a revista saía às segundas com a data de capa de quarta), um documentário de Jean Manzon mostrava a Veja cobrindo todas as frentes de guerra do mundo, que não eram poucas na época. A Abril se deu conta da imagem truncada ainda na fase dos “números zero” e – pior a emenda que o soneto – acrescentou ao veja do logotipo as palavras e leia. Fez ainda uma maciça distribuição de brindes para meio Brasil: uma lupa num estojo com a logomarca veja e leia.
A "Árvore" no topo da antiga sede da Abril, na Marginal Tietê |
Record acompanhando Gilberto Gil em Domingo no Parque; no ano seguinte fizeram história na final paulista do FIC, cantando sob vaias o polêmico É proibido proibir de Caetano Veloso.
O recente anúncio da doença de Rita Lee me fez voltar àqueles tempos e me sentir, de certa forma, culpado. Não havia nenhum espaço decente na Abril para receber celebridades. Tinham de comer no horroroso galpão de madeira comunal dos jornalistas e demais empregados, que ficava num anexo ao lado do prédio da editora – quando chovia, e amiúde chovia grosso, todo mundo se encharcava. Senti-me vexado ao receber os garotos – Rita e Arnaldo tinham 20 anos, Sérgio 18. Ainda não tinha aflorado ao sangue da ruivinha a rebeldia sulista de seus antepassados que lutaram na Guerra da Secessão – as irmãs, Mary Lee e Virginia Lee também foram nomeadas em homenagem ao general confederado Robert E. Lee – mas cheguei a recear, da parte de uma Rita Lee afrontada, algum protesto, como batucar numa panela, igual à matriarca dos filmes de faroeste, e chamar os caubóis para o rancho: “Come and get it!”
No ano e meio que passei na Veja em São Paulo só uma vez fui convocado por Seu Victor para receber um convidado VIP, Abelardo Barbosa, o Chacrinha, recém-consagrado “Velho Guerreiro” por Gilberto Gil em Aquele abraço, o hino de despedida do baiano ao partir para o exílio em Londres. Foi um almocinho tacanho naquele pequeno anexo na cobertura do prédio encimado pela árvore da Abril. Um cardápio tão banal que não guardo a menor lembrança do que foi servido. Não podia haver maior disparidade de temperamento entre o Civita e o Chacrinha, o motivo do encontro era um negócio, os dois iam ganhar muito dinheiro à custa do outro. Chacrinha era tão genial que tinha resumido toda a teoria do Marshall McLuhan num bordão: “Quem não se comunica, se trumbica.”
Glauber Rocha na capa da Veja, 1969 |
Na Veja, em 1968. Foto Acervo Pessoal |
Pouco depois, eu voltava ao “balneário da república” para dirigir a Fatos&Fotos, na empresa que Adolpho Bloch definia como “um grande restaurante que, por acaso, imprimia revistas”. Em breve, aguardem no Panis Cum Ovum – até o título do nosso blog é uma referência culinária – um suculento relato sobre o Império Gastronômico da Manchete.
Friederich Herman Schönberg, o popular "Chumbrega" (1615-1690). Reprodução |