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quinta-feira, 5 de agosto de 2021

A mosca na sopa da bossa nova • Por Roberto Muggiati

José Ramos Tinhorão. Foto Instituto
Moreira Salles/Divulgação
José Ramos Tinhorão – morto nesta terça-feira aos 93 anos – foi um dos maiores pesquisadores da música popular brasileira, isso ninguém nega. Mas ele aplicava à sua opinião parâmetros da critica marxista, com um radicalismo que chegava às raias da paranoia. 

Num século em que a música popular se enriqueceu através de fusões internacionais, aceleradas pelo advento do rádio, do cinema e dos discos, Tinhorão ainda se apegava à ideia do nacionalismo cultural. Por esse critério, ele cancelava a arte de um Johnny Alf, por ter adotado um codinome ianque (sic), e a de Baden Powell, por homenagear com seu nome o criador do escotismo. 

Inimigo ferrenho da bossa nova, que definia como “uma versão pasteurizada do jazz”, Tinhorão dizia ter pena de Tom Jobim, “porque ele imagina que está compondo música brasileira”. Ficou famoso o líde de um texto seu para a revista Senhor em 1963: “Filha de aventuras secretas de apartamento com a música americana que é, inegavelmente, sua mãe – a bossa nova, no que se refere à paternidade, vive até hoje o drama de tantas crianças de Copacabana, o bairro em que nasceu: não sabe quem é o pai”. 

Nascido em Santos, filho de português, José Ramos teve o Tinhorão acrescido ao seu nome na redação do Diário Carioca nos anos 50. Explicação: o tinhorão é uma planta altamente venenosa. Recorro aos compêndios:

“O tinhorão (nome científico Caladium bicolor) é considerado uma planta muito tóxica, devido à presença de cristais de oxalato de cálcio e saponinas em suas folhas. O contato destas substâncias com os olhos, mucosas e pele pode provocar intensa ardência, inflamação e vermelhidão. A ingestão pode provocar edema de glote e consequente asfixia e morte.”

No auge de suas investidas contra a bossa, Tom Jobim plantou um pé de tinhorão em seu jardim, no qual fazia pipi religiosamente toda noite antes de dormir. 

Conheci Tinhorão de perto em 1968, quando ele foi trabalhar na editoria da Veja que eu chefiava, a de Artes e Espetáculos. Nunca entendi como um jornalista opiniático da sua cepa foi contratado por uma revista que pretendia implantar no Brasil o jornalismo objetivo da Time. Na verdade, Tinhorão chegou à minha editoria transferido da de Vida Moderna, com a qual se incompatibilizara. Uma coisa foi consenso na Veja: o Tinhorão não poderia nunca escrever sobre música. Principalmente no momento em que a bossa fazia o seu nome lá fora, com Sinatra gravando Jobim, e em que a Tropicália desfraldava a bandeira multicolorida da contestação. Não tive outra opção: escalei-o para responder as cartas dos leitores. Lembro-me do Tinhorão numa das “baias” da redação, discursando sobre o materialismo dialético e tentando doutrinar os jovens repórteres, entre eles Tárik de Souza, que se tornaria importante crítico musical.

Guardei um episódio pitoresco daqueles tempos. Uma das raras coisas ianques que Tinhorão tolerava – na verdade, adorava – eram os carrões. Mal começou a trabalhar em Veja, comprou um daqueles modelos vintage. Antes de chegar à redação, no prédio da Abril na Marginal do Tietê, costumava navegar lentamente pelas ruas da Lapa. Um belo dia, um coronel do Exército se apresenta na portaria da Veja com uma grave queixa: um funcionário da revista estaria assediando sua nora, seguindo-a insistentemente de carro ao longo das calçadas. Nunca ficou provado que o agressor seria de fato o nosso José Ramos, embora um desafeto tivesse trazido à baila que o Tinhorão foi personagem da peça de Nelson Rodrigues Bonitinha, mas ordinária, um sujeito metido a conquistador.

Figura polêmica, uma coisa ninguém poderá tirar de José Ramos Tinhorão: a importância cultural de livros como Pequena História da Música Popular, História Social da Música Popular Brasileira e A Música Popular no Romance Brasileiro. Num comentário contra a Universidade de São Paulo, ele ironizou um dia: “Eles comem Tinhorão e arrotam Mário de Andrade”. E não é que tinha razão?