Mostrando postagens com marcador memórias. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador memórias. Mostrar todas as postagens

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Memórias: Aqueles dias nublados

 


por José Emerson Monteiro Lacerda, do blog Cogitações Diversas (*)

A parecença com o momento de agora fica por conta da dominação que sacode a área externa do mundo convulso em suas práticas de guerra. Naquela fase, em 1966, a bola da vez prenunciava escalada vietnamita de largas proporções, o que se verificou nos princípios da década de 70. O Brasil vivia o desânimo libertário, pois perdia espaço, nas ruas, praças, escolas, o ímpeto de transformação democrática, a sumir nos calabouços e na clandestinidade.

Em Crato, achávamo-nos à frente do Grémio Farias Brito, do Colégio Diocesano. Encenávamos a peça Um chalé à beira da estrada, sob a direção de Alzir Oliveira, nosso professor de História e amigo dos alunos. Declamávamos poemas modernos em pontos diversos da cidade, através do Jogral Pasárgada, formado de sete componentes do colégio: Zadir, Pedro Antônio, Gilva, Eros Volúsia, Clenilson, Bebeto e eu.

Resolvemos, então, publicar um jornal mural, O Bacamarte, depois ampliado em um órgão mimeografado (à tinta), o Nossa Opinião, do qual chegaríamos a tirar até 100 cópias e ficou só nos dois primeiros números, abafado logo no seu nascedouro pelas ameaças daquele trágico período político.

Nesse mandato, estivemos, ao lado de Aglézio de Brito, presidente da União dos Estudantes do Crato, e de José Terto, presidente do Grêmio do Colégio Estadual, em um congresso do Centro dos Estudantes Secundaristas do Ceará, em Fortaleza, realizado sob fortes conotações militares repressivas.

Espírito de contestação impunha atitudes rebeldes. À noite, após reuniões de acalorados debates e transmissão de informações desencontradas, saíamos, nas madrugadas, a pichar as paredes das ruas centrais com dizeres relativos ao momento de expectativa, fogo consumidor daquele turno de existência. 

É um tempo de guerra, é um tempo sem sol. É um tempo de guerra, é um tempo sem sol. Sem sol, sem sol, tem dó. Sem sol, sem sol, tem dó, eram alguns dos versos que cantávamos, em segundo plano, característica das apresentações do Jogral, enquanto Pedro Antônio, à frente, declamava em altos brados: - Só quem não sabe das coisas é um homem capaz de rir! – seguido de outras palavras da canção Tempo de guerra, de Edu Lobo.

Esses são alguns quadros da época em que partilhamos das experiências culturais de um Crato fervilhante de jovens promessas e movimentações apreensivas, lembranças que retornaram esta semana, ao rever José Esmeraldo Gonçalves, velho amigo desse tempo, quando juntos elaboramos o Nossa Opinião. Ele que veio ao Cariri na ocasião do aniversário de 90 anos de sua genitora, dona Maria La-Salette Esmeraldo. Mora no Rio de Janeiro, onde trabalha na revista Caras (**). Dispõe de raros intervalos semelhantes a este de voltar à Região; o promete, no entanto, repetir, noutras oportunidades. (Texto de 2003). 

(*) José Emerson Monteiro Lacerda é escritor, fotógrafo, advogado e ewcreve no  blog https://monteiroemerson.blogspot.com

(**) Como observado, esse texto é de 2003. O jornalista cratense José Esmeraldo Gonçalves deixou a Editora Abril em 2014. Desde então, editou revistas de instituições e empresas, livros e folders corporativos.   

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Geraldo Matheus Torloni (1930-2023) : a Arte como destino

 

Geraldo Matheus Torloni.
Foto/Reprodução Instagram

Em uma mensagem sobre o falecimento do seu pai na tarde de sexta-feira, 29, a atriz Christiane Torloni escreveu no Instagram: 

- Despeço-me do meu amado pai, Geraldo Matheus, grata pela linda jornada que trilhamos juntos. Grata pela Arte, Ética e Amor com que ele me abençoou. E como diz Oscar Wilde: 'O mistério do Amor é maior do que o mistério da Morte'”. 


Geraldo Maheus Torloni tinha 93 anos e, de fato, dedicou sua vida à arte. Foi autor, ator, diretor, produtor e administrador teatral. 

Pode-se dizer que foi um roteiro casual e não escrito que o levou à Manchete. Em meados dos anos 1970, Adolpho Bloch foi nomeado diretor da Fundação de Teatros do Estado do Rio de Janeiro. Assumiu o cargo disposto a não fazer figuração. Ao fim da administração, entre outras realizações, havia reformado o Theatro Municipal, instalado uma moderna Central Técnica de Produções Teatrais em apoio aos espetáculos e construído o Teatro Villa-Lobos. No campo artístico, montou uma programação  intensa, Foram 23 óperas e balés clássicos. Um destaque histórico foi a encenação da Traviata, sob direção do cineasta italiano e Franco Zefirelli. 

Geraldo Matheus assumiu esse desafio ao lado do Bloch que, no seu livro biográfico O Pilão, fez um registro à competência e dedicação do amigo.  Ao fim do seu mandato à frente da Funterj,  Adolpho o convidou para dirigir o teatro da Manchete instalado na sede da empresa, na Rua do Russell. Em pouco tempo, Geraldo também assumiu funções administrativas na Bloch e idealizou mudanças para agilizar o fluxo de trabalho nos vários setores da editora. É dessa fase que muitos colegas guardarão lembranças da convivência com ele. Era conciliador, educado e objetivo na execução das mais diversas missões exigidas por duas dezenas de revistas. Quando a Bloch instalou a Rede Manchete, Geraldo Matheus foi chmado a colaborar, mais uma vez, em um projeto desafiador.  Entre outras ações, coordenou  uma linha de shows onde somou sua experiência artística e talento de administrador à teledramaturgia da nova rede.  A partir do começo dos anos 1990, o Grupo Bloch entrou em crise, os problemas se agravaram e um turbilhão financeiro abateu a Rede Manchete, que foi vendida em 1999. No ano seguinte, em agosto, a Bloch Editores pediu falência. E aí começou a longa e dramática luta dos ex-empregados para receber seus direitos.  Nessa hora difícil, Geraldo Matheus não se omitiu, ao contrário, uniu-se à Comissão do Ex-Empregados da Bloch Editores e participou até recentemente das reivindicações trabalhistas junto à Massa Falida da Bloch Editores.            

Geraldo Matheus formou-se na primeira turma da Escola de Arte Dramática de São Paulo. Ele deixa a mulher, a atriz Monah Delacy, dois filhos, Christiane Torloni e Márcio Torloni, um neto, Leonardo Carvalho, e um bisneto, Lucca Carvalho. Nossos pêsames à família.  

Para os antigos colegas da Bloch, permanecem a admiração, as lembranças da convivência e a saudade do amigo.

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Quase memórias da falência da Bloch Editores (há 23 anos)

Foto Gil Pinheiro 

por José Esmeraldo Gonçalves

2 de agosto de 2000. Há 23 anos, em uma quarta-feira como hoje, os funcionários da Bloch Editores foram obrigados a abandonar às pressas a sede da empresa na Glória. Um oficial de justiça concedeu-lhes apenas alguns minutos para que reunissem seus objetos pessoais e, literalmente, fossem para a rua. No caso, a do Russell. 

A aglomeração no pequeno largo diante do imponente conjunto de três edifícios assinado por Oscar Niemeyer chamava atenção de quem passava de carro. Formou-se um pequeno engarrafamento, alguns indagavam se havia um incêndio. 

Não. Ninguém gritou fogo, mas a notícia da autofalência da Bloch queimava centenas de carreiras e lançava os mais idosos no desemprego. Aos mais jovens restava enfrentar o sempre difícil mercado de trabalho. No caso de jornalistas, fotógrafos, pessoal do administrativo e gráficos surgia um novo obstáculo: a mídia impressa entrava em grave crise que se agravaria ao longo da primeira década do novo milênio. O meio digital não ofereceria um número de vagas que compensasse a perda de cerca de quatro mil postos em todo o mercado de jornais e revistas do Brasil. 

A Bloch Editores agonizava desde meados dos anos 1990, abalada pela grave crise financeira e adminstrativa da Rede Manchete. Afinal, depois de várias vendas frustradas e desfeitas por falta de pagamento dos compradores, a TV foi vendida em 1999 ao grupo empresarial que fundou a RedeTV (que, na transação, atendia pelo nome fantasia de TV Ômega). 

Um reposicionamento da Revista Manchete nos últimos anos daquela década deu esperança de novo vigor ao braço editorial das revistas impressas da Bloch. Mas era tarde. Imposta pela internet, a acelerada mudança do mercado de revistas já se anuncava em 2000 e em menos de dez anos decretaria o fim de centenas de publicações impressas no Brasil e no mundo. 

A Bloch não resistiu e pediu falência.

Carlos Heitor Cony testemunhou a queda do raio que partiu de vez o futuro da empresa. Ele confessou que só sete anos depois conseguiu descrever um pouco do que sentiu ao ser enxotado naquele fatídico agosto. Seu relato foi publicado na Folha de São Paulo em 2007. Segue-se um pequeno trecho do texto do Cony, que faleceu em 2018. 

- Penso que remeti as impressões todas para a caverna mais funda da memória, mais cedo ou mais tarde conseguirei articular alguma coisa expressando meu espanto, minha tristeza. A decepção de ver um mundo colorido, alegre e despreocupado, depois de uma ruína gradual e dolorosa que já durava dois anos, fechar-se como um túmulo que sepulta fantasmas, alguns mortos (Adolpho Bloch, Justino Martins, Magalhães Jr e outros ainda vivos, nós todos). Sinto em cima de mim o gosto de terra e o cheiro de flores apodrecendo".

Em 2008, como um dos autores da coletânea "Aconteceu na Manchete - as histórias que ninguém contou" (Desiderata), lançado por um grupo de ex-funcionários da Bloch, Cony voltou ao assunto e, entreo outras revelações destacou;: 

- Foi na Manchete que fiz e conservei alguns dos amigos mais queridos. Por ocasião da falência do grupo, eu ocupava o antigo escritório de JK no décimo andar do 804, dava apenas assistência não mais às revistas, mas à diretoria, sofri com Adolpho o trauma das tentativas de venda da TV a outros grupos".

Cony certamente não imaginou que aquele trágico 2 de agosto era apenas o primeiro e sofrido capítulo de um drama que se arrasta até hoje quando a Massa Falida da Bloch Editores completa inacreditáveis 23 anos. 

Não há justiça plena enquanto uma instituição que deveria privilegiar os trabalhadores consome partrimônio, tempo e esperanças ao não restituir todos os legítimos direitos às vítimas da implosão de uma corporação. Massas falidas não pode se eternizar enquanto vidas passam. 

Registre-se que uma parcela majoritária de credores trabalhistas da Bloch recebeu seus valores chamados principais. A estes - seriam quase três mil ex-funcionários da Bloch Editores  e Gráficos Bloch -, a Massa Falida pagou depois três parcelas de juros e correção monetária, mas há quase dez anos interrompeu essa recomposição devida. Por outro lado, ainda há credores trabalhistas habilitados que não receberam seus valores principais. 

A Massa Falida da Bloch Editores foi constituída em 2000. Apesar disso, o atual administrador judicial cita uma lei de 2005 segundo a qual valores referentes a juros só poderão ser pagos após a quitação das dívidas da extinta Bloch com todos os seus credores, trabalhalistas, financeiros, comerciais, institucionais etc. Então a lei retroage? Essa é a pergunta que muitos ex-funcionários fazem. Há outras indagações. No ano passado o síndico da Massa Falida da Bloch Editores informou a procuradores do Estado do Rio de Janeiro que "o ativo da massa falida foi praticamente liquidado, encontrando-se o processo falimentar na fase de pagamento de credores para posterior encerramento". Isso indica que o caixa se esvaziará antes do pagamento dos valores históricos e de juros e correção monetária de todos os credores trabalhistas?

Um bem valioso que pertencia ao extinto Grupo Bloch era o grande prédio da sede em São Paulo. Tal patrimônio teria ido a leilão, mas, em primeira chamada,, em outubro do ano passado, não apareceram potenciais compradores. Não tenho informação se foi arrematado posteriormente. No caso, o valor arrecadado seria, segundo dizem credores trabalhistas, dividido entre as massas falidas da Bloch e da TV Manchete.  Outro item de valor são as obras de arte restantes do acervo da editora. Aparentemente continuam aguardando uma data para leilão. Enquanto isso, custam à MFBloch o aluguel de salas para guarda, seguro etc.

Trabalhei muito anos com Carlos Heitor Cony na Fatos & Fotos, na Fatos e na Manchete, mas não estive no fatídico dia do despejo do prédio da Rua do Russell, que frequentei por longos 17 anos. Saí antes do desfecho da Bloch, não tive motivos para me habilitar a qualquer indenização. Em 1996, o editor e fotógrafo Sergio Zalis, com que eu havia trabalhado na revista Fatos, me convidou para participar da equipe da Caras, no Rio. Deixei a Manchete e me mudei para a Torre do Rio Sul, onde ficava a redação carioca da então recem-lançada revista sediada em São Paulo. Foi uma ótima expriência que durou oito anos. A Caras era fruto de uma parceria da Editora Perfil, argentina, com a Abril. Em 2004, fui demitido após uma discussão com o diretor-geral da Caras. Para minha supresa, no dia seguinte, por indicação de Patricia Hargreaves e Vanessa Cabral, ambas ex-Caras, Edson Rossi, que ao lado de Claudia Giudice, também ex-Caras, planejava o reposicionamento editorial da Contigo, publicação da Editora Abri, me convidou para integrar a sua equipe. Topei e foram, novamente, bons anos, até 2014, quando meu tempo de trabalho fixo em redações se esgotou em parte pela crise, em parte pela minha idade - era veterano demais para os novos tempos.  

Em todos eesses anos distante da Manchete nunca deixei de acompanhar a luta sem fim dos antigos colegas pelos seus direitos. De certa forma, eu estava naquela dramática aglomeração na Rua do Russell. Por fim, lamento que esse post não seja otimista, tanto que vale voltar ao Cony e a uma das frases que ele gostava de repetir.   

- Insisto em ser pessimista por antecipação e cálculo. O que me sobra é lucro''.

domingo, 25 de setembro de 2022

Sou italiano graças ao Senegal • Por Roberto Muggiati

 

Cartão enviado de Dacar, por Diogo Muggiati, em 1911

O Senegal em sua segunda participação numa Copa (se seguir em frente poderá enfrentar o Brasil nas quartas de final) me levou a divagar sobre minha relação com aquele país do oeste africano. Entre velhos papeis da família que dormiam no fundo de uma gaveta, tive um dia minha atenção chamada para um pequeno cartão postal enviado de Dacar por meu avô paterno para minha avó em Curitiba. 

Resumo a história de sua breve vida: com pai mãe, irmão mais velho e duas irmãs deixou a Itália aos doze anos, em 1889, e veio participar do sonho da Colônia Cecília, uma comunidade anarquista que se instalaria nos campos de Palmeira, a cem quilômetros de Curitiba. O sonho virou pesadelo quando o pai morreu de febre amarela ao chegar em Paranaguá. A viúva subiu para Curitiba e, sem meios para criar as crianças, as destinou a famílias locais em cujas casas teriam cama e comida, é claro, ajudando como serviçais, cumprindo pequenas tarefas., Maria Quaroni Muggiati, com os ganhos do trabalho de costureira logo, resgatou os dois filhos e as duas filhas. Os meninos, começando como sapateiros acabaram em pouco tempo donos de uma próspera indústria de calçados.

Meu avô casou com uma italiana nascida já no Brasil e teve cinco filhos, quatro homens e uma mulher. Pouco depois de completar 34 anos, uma doença pulmonar o levou a procurar cura na Itália. O cartão enviado de Dacar em 3 de agosto de 1911 – cuja imagem destaca um embarque de tropas sei lá de que guerra, o Senegal seria colônia francesa até 1960 – descreve as vicissitudes por que passava meu avô Diogo:

 “Acho-me na metade da viagem, pior do que imigrante, devido ao grande número de passageiros que somos não me foi possível passar para a 2ª nem 1ª classe por não haver lugar, minha saúde sempre o mesmo, não tive nenhuma melhora, paz.”

Um mês depois, em 3 de setembro, meu avô morria num hospital de Pavia. 0itenta anos depois, inspirado nessa informação, dei início ao processo de aquisição da cidadania. O consulado italiano no Rio redigiu uma carta em para a prefeitura de Pavia requisitando o atestado de óbito. Através desse documento ficamos sabendo que tinha nascido em Stradella. A certidão de nascimento o dava como Pietro Giuseppe Diego Muggiati, o escriba da imigração, que não gostava de nomes compridos, o reduziu a Diogo Muggiati. 




Juntando toda essa papelada e vertendo os documentos brasileiros para o italiano por um tradutor juramentado, ganhei o passaporte italiano, extensivo a minha mulher e meus dois filhos. Morando no exterior (ele há 14 anos, ela há seis anos), recebem o tratamento condigno de cidadãos da comunidade europeia, que jamais receberiam como brasileiros.

• Em outubro de 1960, a caminho de uma bolsa de estudos em Paris, na escala do voo São Paulo-Lisboa eu teria no aeroporto de Dacar o meu gostinho do Senegal – ou pior, meu cheirinho, o bodum descomunal de um punhado de burocratas soviéticos com ternos grossos, pulôveres, camisas, camisetas e ceroulas, vendendo seu peixe em longas viagens ao redor do mundo.

• Em Paris, estudando no Centre de Formation des Journalistes, ao voltar certas noites para a Cité Universitaire, comia algo no bistrô La Petite Source, no Carrefour de l’Odéon, muitas vezes na companhia do colega Cissé, do Senegal, que me assediava sedento de notícias do Brasil. Quando nos conhecemos olhou para mim como se eu fosse um ser extraterreno e me perguntou, solene:

– Monsieur Muggiatí, est-ce que tu connais vraiment le Roi Pelé?

Na sua visão, Sua Majestade Edson Arantes do Nascimento reinava supremo sobre um vasto império tropical cheio de súditos felizes. Curiosamente, eu acabara de assistir em 13 de junho, no Parc des Princes, à fabulosa vitória do Santos de Pelé sobre o Racing por 5x4 no Torneio de Paris, diante de de 40 mil pessoas extasiadas. 

Outra das fantasias do bom Cissé eram as brasileiras:

– Ah, les femmes brésiliennes... Ce que je ferais pour les connaître!

• Dezoito anos depois, em outra escala no aeroporto de Dacar, no voo Rio-Genebra a caminho do Festival de Jazz de Montreux, com Hermeto Pascoal e sua banda, conversei com o saxofonista Nivaldo Ornelas que, ao saber que eu era da Manchete, me inquiriu exaustivamente sobre seu conterrâneo Argemiro Ferreira, que trabalhava na revista, contrariando a frase famosa que Nelson Rodrigues atribuía a Otto Lara Resende: “O mineiro só é solidário no câncer.”

• Em tempo: um dos senegaleses mais célebres foi Léopold Sédar Senghor, seu primeiro Presidente da República, criador – com o martiniquense Aimé Cesaire – da palavra e do conceito da negritude.



quarta-feira, 29 de junho de 2022

Rio, 1959: ouvindo Sarah Vaughan com Danuza • Por Roberto Muggiati

O último baile do Rio de Janeiro como capital da república.Na mesa principal, Danuza, Viniciu e Samuel Wainer. Assinalado pela sete, o autor dessas memórias. Foto Arquivo Pessoal 

Do Galeão Velho você  podia esperar tudo. Marlene Dietrich embarcando e Sarah Vaughan desembarcando, a ariana e a afroamericana trocando olhares cáusticos. Marlene acabara de fazer uma temporada no Golden Room do Copacabana Palace. Sarah faria sua estreia brasileira na noite de 6 de agosto de 1959 no Fred’s, a boate da moda que ficava em cima de um posto de gasolina na esquina da Avenida Atlântica com Princesa Isabel, onde depois seria construído o Hotel Méridien. Eu estava lá. 

Explico: curitibano chique passava as férias de inverno no Rio, esticava a temporada até o início de agosto para comparecer ao GP Brasil no hipódromo da Gávea. (O Jockey Club do Paraná tinha intercâmbio com o Jockey Club Brasileiro.) Depois da corrida de gala do domingo – em que os chapéus das dondocas predominavam sobre os cavalos – havia na terça-feira uma Nuit de Longchamps, com traje a rigor, foi assim que assisti ao vivo aquela beleza da Julie London na sua fase de ouro, cantando Cry Me a River.

Apesar de meus 21 anos, estava longe de ser um “foca”, trabalhava na Gazeta do Povo desde os dezesseis. Mas não tinha cacife para competir com jornalistas cariocas como Sílvio Túlio Cardoso (tido como “ghost” do livro Jazz Panorama de Jorginho Guinle), Sérgio Porto (também autor de um livro sobre jazz) e principalmente Vinicius de Moraes (parceiro de Tom Jobim, com o filme recém-lançado Orfeu Negro recheado de suas músicas). Quando cheguei finalmente à diva, no seu minúsculo camarim, numa abordagem desastrada, ela fez uma cara feia e me mandou passear. Foi o primeiro de uma série de episódios que me ensinariam muito sobre o ressentimento dos músicos negros diante do que eles consideravam a atitude “folgada” e desrespeitosa dos branquelos.

A mesa principal, com cerca de vinte assentos, era capitaneada pelo homem mais importante do Rio de Janeiro na época, Samuel Wainer, dono do jornal Última Hora. Tenho a cópia de uma foto do desaparecido arquivo da revista Manchete. Em primeiro plano, sentados, a partir da esquerda, aparecem a bela Danuza Leão, mulher de Wainer, na plenitude dos seus 25 anos; depois de um casal, Vinicius de Moraes e Samuel Wainer conversam diante de um enorme balde de gelo, o poetinha empunhando um cigarro quase na cara de Samuel. De pé, com um de seus fabulosos colares de pérolas, a socialite Josefina Jordan conversa com alguém que pode ser o Didu de Souza Campos. Casais rodam pela pista com uma orquestra ao fundo. Também no fundo, ao centro da foto, assinalado pela seta vermelha, este que vos escreve dança cheek to cheek com a namorada do amigo carioca.  Não aparecem na foto, mas estavam lá, recém-casados, João Gilberto e sua Astrud, que se tornaria cantora e cinco anos depois conquistaria o mundo com sua versão em inglês de “The Girl from Ipanema”, vendendo muito mais discos do que a lendária Sarah Vaughan. 

O show, irretocável, culminou com “Misty”, a canção de Erroll Garner que “Sassy” (Atrevida) adotou como sua assinatura musical. Um jornalista que cobriu a noitada a chamou de “último baile da Ilha Fiscal da República”. Era o derradeiro inverno do Rio de Janeiro como capital da república, em abril de 1960 Brasília assumiria o facho.  O Rio se tornaria o minúsculo Estado da Guanabara. Mas, com irreverência e humor típicos, o carioca deu o troco. Brasília fixou conhecida pelo nome da empreiteira que a construiu, a Novacap. O Rio adotou então o nome imbatível de Belacap, o que continua sendo até hoje.

sexta-feira, 17 de junho de 2022

Maria Lúcia Dahl: da sombra do Arco do Triunfo às madrugadas do Baixo-São João Baptista • Por Roberto Muggiati

Aos 20 anos, então Maria Lúcia Pinto, no palacete do embaixador Paulo Carneiro, em Paris.
Fotos: Arquivo Pessoal

Foram cinquenta anos de amizade, entrecortados por nosso Wanderlust em várias paragens mundo afora. Conheci Maria Lúcia Pinto em Paris, 1961, no palacete de Paulo Carneiro, nosso embaixador junto à Unesco, numa transversal de uma das grandes avenidas que irradiavam da Étoile do Arco do Triunfo. Tinha 19 anos e, para mim, era a mulher mais bonita e desejável do mundo. Elegante, sua griffe era Chanel, roupas e perfume.

Eu era um bolsista pobre, mas tive a sorte de encontrar um hotelzinho no local mais charmoso de Paris, na Place Dauphine, na proa da Île de la Cité, onde as águas do Sena se bifurcam debaixo do Pont Neuf. O pai do surrealismo André Breton também morou lá e menciona o City Hôtel em seu romance-chave Nadja.  Eu recebia um dinheirinho de minha família de Curitiba e o reservava para concertos de jazz no Olympia e noitadas excepcionais no Blue Note. Maria Lúcia viajava com os pais, Mário e Regina, e com a irmã Marília. Tentei seduzi-la convidando para shows de jazz. SeLembro de uma noitada com o quinteto dos irmãos Adderley, Julian “Cannonball” e Nat no Olympia, depois do show nos juntamos a amigos que nos esperavam no Harry’s New York Bar: Marília, Joaquim Pedro de Andrade, duas ou três funcionárias da coorte de Paulo Carneiro na Unesco. Uma delas, Neusa Azambuja, tinha um carro. Depois de umas e outras, nos pusemos a tramar uma incursão a Bruxelas para sequestrar a estátua do Manneken Piss – o famoso Manequinho Mijão. Os vapores etílicos acabaram dissipando a brilhante ideia. Quando saímos do Harry’s, a manhã precoce de primavera já raiava, fomos passear no Jardim das Tulherias, Maria Lúcia mais inclinada pelo Joaquim Pedro, eu com Marília, que era noiva do filho do embaixador, Mário Carneiro, grande fotógrafo do Cinema Novo, com quem casaria depois. (Marília Carneiro tornou-se figurinista da TV Globo e uma das melhores do país.)

Corte rápido do Sena para o Tâmisa, às margens do qual eu morava em  1963. Depois de uma noitada num pub à beira-rio, levei um grupo para o meu apartamento no 8 Embankment Gardens. Eu ia passar um mês de férias na Itália e o decorador Rodrigo Argollo, que fazia parte da turma, queria sublocar meu apartamento. Maria Lúcia foi junto, toda de preto. Reparei um furo no seu suéter, a região da omoplata, e enfiei o dedinho nele. Era o detalhe do fim da farra: em breve todos nós, por absoluta falta de dinheiro, voltaríamos para o Brasil, pisando pela primeira vez no Rio da ditadura militar. Casado com a Lina, que conheci em Paris, e era amiga da Maria Lúcia, fomos visita-la e ao marido Gustavo Dahl, cineasta que ela conhecera em Roma, na casa de vila que ela ganhou do pai, o engenheiro e empreiteiro Mário Pinto. Na tarde do réveillon de 66 para 67, Mário morre de mal súbito. A viúva, Regina – outro golpe brutal para Maria Lúcia – suicida-se saltando do seu apartamento no Flamengo. No réveillon seguinte, na famosa festa na casa de Heloisa Buarque de Holanda, duas dezenas de casais se separaram, inclusive a anfitriã e Maria Lúcia, depois de tomar uns sopapos do enciumado Gustavo por ter dançado de rosto colado com um galã egípcio, ou coisa parecida.

Novo corte, para 1972 em Paris. Lina e eu visitamos Maria Lúcia, que está grávida de sua única filha, Joana, com o segundo marido, o líder estudantil exilado Marcos Medeiros.

Com Malu: bom humor no lançamento
do livro Aconteceu na Manchete,
na Travessa do Leblon, em 2008.
Foto: Jussara Razzé
E então um hiato enorme, até o final de 2008, quando – um dos 16 autores do livro Aconteceu na Manchete – estou na noite de autógrafos na Travessa do Leblon. Começo a visita-la na eterna casa de vila coberta por uma mangueira na São João Baptista, 41. Toda noite de sexta-feira, compareço com um vinho tinto chileno e uma pizza gigante (sem duplo sentido). Mal me sento no sofá esfarrapado, o gato Netuno vem sentar-se no meu colo, um grafite, uma gracinha. Vemos um filme (lembro uma noite, com uma grande amiga dela, assistimos àquela obra-prima do Fritz Lang, Metropolis.) Depois ficamos horas jogando conversa fora, fofocando, lembrando os velhos tempos. Saio de madrugada e a quadra final da rua ainda está tomada por um burburinho de mesas e cadeiras que avançam até a metade da pista naquelas loucas baladas eufóricas da década que seria liquidada pela Covid-19 (de 2019). Certa noite, vamos de táxi ao lançamento de um livro de frei Leonardo Boff no Colégio Bennett. Sugiro que, para encurtar o trajeto, a gente pegue a Travessa dos Tamoyos. “Prefiro não”, diz Maria Lúcia, “minha mãe se matou nesta rua.”

Eu a chamo de Maria Lúcia Dahl-ou-desce! – incorrendo naquela piada-chavão machista. Malu também  tem humor, me contou uma história deliciosa. Idosos, com planos de saúde que nos tratam como debilóides (o meu, do Silvestre, fazia testes me obrigando a contar os dedos da mão, ou caminhar em linha reta de uma parede à outra do consultório, só faltava mandar fazer o 4...) – sua amiga Nelita Léclery, cujo primeiro casamento aos vinte anos foi com Vinícius de Moraes, foi sabatinada por um paramédico que, a certa altura, lhe perguntou, no item quesitos gerais para avaliar demência precoce: “A senhora sabe quem foi Vinícius de Moraes?” Responde Nelita: “Claro. Foi meu marido.” Só não a internaram porque era casada com o milionário francês Gérard Léclery. 

Siga em paz Maria Lúcia, daqui a pouco – quem sabe? – a gente se reencontra por aí...

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Memórias - "Eu vi a Copa de 50 em Curitiba" - Por Roberto Muggiati (*)

Estádio Durival Britto e Silva. Foto Acervo Cid Destefani

Piá de 12 anos, já viciado em futebol, assisti deslum­­bra­­do com meu pai aos dois jogos que aconteceram no estádio da Vila Capanema

Eu estava lá, posso afirmar com orgulho. Assisti aos dois jogos da Copa de 1950 em Curitiba. Não exatamente da arquibancada coberta, mas, pela primeira vez, nas gerais. Eu era sócio do Clube Atlético Ferroviário e o seu estádio, o Durival Britto e Silva, era o meu quintal.

Na verdade, ficava longe de minha casa, no alto da Carlos de Carvalho. Em 1949, no primeiro ano do ginásio, com o Colégio Estadual do Paraná ainda ocupando o acanhado prédio da Ébano Pereira, nossas aulas de educação física eram no estádio da Vila Capanema.

Naquelas manhãs frias de Curitiba, eu pegava dois ônibus até a estação da RVPSC (parece a sigla de répondez s’il vous plaît, mas era a da Rede Viação Paraná-Santa Catarina, que durou de 1942 a 1957). Ali começavam os domínios da Rede, que incluíam o estádio e o time do Ferroviário, fundado em 1930 por funcionários da ferrovia.

Para não pegar um terceiro ônibus, eu escalava as bases da Ponte Preta (segundo Dalton Trevisan, "a única ponte da cidade sem rio por baixo") e seguia através e ao longo dos trilhos até os muros dos fundos do Durival Britto, que eu pulava acrobaticamente e ganhava acesso às quadras de esporte (até hoje o estádio é rodeado por uma pista de corrida).

Assisti ali a muitos torneios-início, um ritual da época, tipo de apresentação dos times na abertura do campeonato. Numa espécie de quermesse dominical, a partir das dez da manhã, cerca de 15 a 20 equipes se enfrentavam em jogos-relâmpago de 20 minutos. No caso de empate, decidiam nos pênaltis. E assim iam se classificando e eliminando até só restarem duas, que decidiam no fim da tarde numa partida de uma hora.

Projetado pelo arquiteto Rubens Maister, o Durival Britto e Silva (nome do superintendente da RVPSC) foi inaugurado em 23 de janeiro de 1947, numa partida noturna que confirmou a excelência do sistema de refletores, mas não a do time da casa, o Ferroviário, que apanhou do Fluminense por 5 x 1 (com gol inaugural de Careca).

Na época, o estádio era o terceiro maior do Brasil, depois de São Januário e do Pacaembu. Tinha uma bela concha acústica, onde assisti certa vez a um show da orquestra de Xavier Cugat, o Rei da Rumba, estrela dos musicais da Metro. O espetáculo foi uma lástima, com meia dúzia de gatos pingados e um torcedor fanático e mentalmente desequilibrado importunando o maestro a toda hora.

O Paraquedista era uma espécie de Fantasma da Ópera e Corcunda de Nôtre Dame de plantão no Durival Britto. Cugat tinha seus cacoetes consagrados: casava sempre com suas rumbeiras (a da ocasião era a curvilínea Abbe Lane), mas suas relações mais estáveis eram com os cãezinhos chihuahua que levava sempre no bolso do bem cortado summer-jacket. Como passou a infância em Cuba e a juventude em Los Angeles, eu o considerava um latino típico. Só tempos depois soube que era Catalão, da mesma região de Salvador Dali, onde fora batizado com o sonoro nome de Francesc d’Asis Xavier Cugat Mingall de Bru i Deulofe.

Foi a qualidade das instalações do Durival Britto que garantiu a Curitiba a escolha como uma das sedes da Copa de 1950 (as outras, além de Rio e São Paulo, foram Belo Horizonte, Recife e Porto Alegre). Assim foi que, no domingo, 25 de junho, eu e meu pai nos instalamos nos bancos de madeira das gerais, à esquerda da torre do relógio, para acompanhar Espanha versus Estados Unidos. (Pedro Stenghel Guimarães, que assinava a coluna "Do meu degrau nas gerais", postulava que a geral era o lugar correto para se apreciar bom futebol).

O futebol não foi grande coisa. Houve quem gostasse mais da preliminar, na qual o Inter­­na­­cional de Campo Largo bateu o União da Lapa por 1 a 0, numa empolgante peleja. Os EUA, que tinham disputado a primeira Copa em 1930, voltavam a participar. Souza fez o primeiro gol, aos 17 minutos. Os espanhóis viraram no segundo tempo, com dois gols de Basora e um de Zarra. O juiz, ou referee (ainda se usava a expressão) foi o polêmico Mário Vianna, mas não teve muito trabalho. Os espanhóis com seu uniforme grená, os americanos de camisa branca com faixa diagonal e calções azuis.

Na quinta-feira seguinte, os EUA se tornavam a maior zebra na história das Copas. Inventores do esporte, os ingleses participavam pela primeira vez de um Mundial e chegaram como favoritos. Os americanos tinham uma equipe amadora, formada por imigrantes e eliminaram os ingleses por 1 a 0, em Belo Ho­­rizonte. O autor do gol foi Gaet­jens, nascido no Haiti. Em 2005, um filme celebrou o feito, The Game of their Lives/Duelo de Campeões. (As cenas do jogo em Belo Horizonte foram rodadas no campo do Fluminense, nas Laranjeiras, no Rio.)

Naquela mesma quinta-feira, 29, Paraguai e Suécia empatavam por dois gols em Curitiba. Os suecos com camisas amarelas e calções azuis, meias amarelas e azuis, o Paraguai com calções escuros e camiseta listrada branca e vermelha, a única seleção de mangas curtas. A Suécia se classificaria para a fase final, ga­­nhando por 3 a 1 da Espanha, mas perdendo do Brasil (7 x 1) e do Uruguai (3 x 2).

A goleada do Brasil e o escore apertado do Uruguai indicavam uma barbada brasileira na finalíssima do Maracanã em 16 de julho. E tinha mais: pelo critério de pontuação da época, o Brasil só precisava de um empate para ser campeão — e foi campeão até os 34 minutos do segundo tempo, quando aconteceu o fatídico gol de Ghiggia. Este jogo ouvi pelo rádio ao lado do meu avô Eugênio, cego, e choramos lágrimas copiosas.

Tudo bem, o Brasil foi o único país a participar das 19 Copas até agora. É pentacampeão, com uma taça a mais do que a Itália, duas a mais do que a Alemanha, três a mais do que Argentina e Uruguai, quatro a mais do que França e Inglaterra — "a taça do mundo é nossa, com o brasileiro não há quem possa..." Tudo bem, mas até hoje ainda sinto o gosto amargo daquelas lágrimas de 60 anos atrás.

(*) Artigo publicado originalmente no jornal Gazeta do Povo em 29/05/2010.

Você poderá ver mais fotos no link abaixo:

https://www.gazetadopovo.com.br/esportes/copa/2010/eu-vi-a-copa-de-50-em-curitiba-0u7vnhqnbm5bdcj1wtp8fzxhq/

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Com Monica nas Ilhas • Por Roberto Muggiati

• Gabrielle Ferzetti e Monica Vitti: cabelos ao vento nas Ilhas Eólias..

Foi Monica Vitti quem me levou para as Ilhas Eólias no verão de 1961. Explico: em outubro de 1960, recém-chegado de Curitiba para um ano de bolsa de estudos em Paris, uma das primeiras coisas que fiz foi correr a um cinema para ver L’Avventura, o filme-sensação da época. A história escrita pelo diretor do filme, Michelangelo Antonioni, e estrelada por sua musa, Monica Vitti, ganhou em Cannes o Prêmio Especial do Júri naquele ano, “por uma nova linguagem cinematográfica e pela beleza de suas imagens”. O clima misterioso do filme é marcado já nas primeiras cenas passadas nas Ilhas Eólias, ao largo do litoral norte da Sicília. Elas ocupam a primeira hora do filme de 2h23. 

Era o tempo do “cinema de autor” – tese desmentida pelo trabalho de coautoria das musas-atrizes. Que seria o cinema de Godard sem Anna Karina? O de Chabrol sem Stéphane Audran? O de Bergman sem Liv Ullman? O de Fellini sem Giulietta Masina? Antonioni e Monica se conheceram em 1957, ele com 45, ela com 26 anos. Fizeram história durante os dez anos do seu relacionamento, depois partiu cada um para seu lado. A ideia de A aventura surgiu justamente de uma rusga do casal. Depois de uma discussão com Antonioni, Monica decidiu sumir do mapa. Foram só duas horas de sumiço, mas bastaram a Antonioni para criar a história de Anna (Lea Massari), que sai para nadar com um grupo de amigos e desaparece pelo resto do filme depois de um mergulho.  Enquanto eu explorava as Ilhas Eólias, Antonioni filmava A noite, com Marcello Mastroianni e Jeanne Moreau como protagonistas e a Vitti em segundo plano. Em 1962, Monica volta como estrela ao lado de Alain Delon em O eclipse. A aventura, A noite e O eclipse foram catalogados como a Trilogia da Incomunicabilidade; outras trilogias, muito peculiares, vieram a seguir.*


                                                  Salina: a mais verdejante das Eólias.

 

Não encontrei nenhuma Monica Vitti nas Ilhas Eólias, mas não me arrependi do que na época era um destino turístico dos mais insólitos. Na ilha de Vulcano tive contato direto com os vapores amarelados de enxofre que escapavam de fendas no paredão da montanha – um contato causticante e “presencial” com as profundas do Inferno. A ilha mais bonita é Salina, sua parte povoada e verdejante fica no alto de um pico a mil metros acima do mar. A mais fértil do arquipélago, Salina cultiva alcaparras exportadas para o mundo inteiro e uvas a partir das quais produz o vinho “Malvasia delle Lipari”. Ali foi rodado o filme O carteiro e o poeta, inspirado num episódio da vida de Pablo Neruda.


Conferi Monica nos jornais de ontem, a mesmice de sempre nos obituários-verbete, achei só uma bela frase na análise de Inácio Araujo da Folha: “Atriz de porte heráldico e movimentos suaves, foi a face da modernidade”.Aliás, a vocação cinematográfica das Eólias impressiona. Stromboli, famosa por sua “happy hour” vulcânica – uma erupção todo dia ao fim da tarde com o espetáculo da lava vermelha escorrendo pelas rochas diretamente para o mar – foi o cenário do filme Stromboli, em que Roberto Rosselini dirigiu Ingrid Bergman, os dois no auge do seu casamento proibido que chocou as famílias católicas do mundo. Mais recentemente, Nani Moretti, no seu original Caro Diario (1993), focaliza as Eólias num dos três episódios, Le Isolle.

A aventura me levou também a Noto, pequena cidade que abriga um espetacular conjunto de igrejas que refletem todo o esplendor do barroco siciliano. Ali se passa um momento do filme que define todo o tédio e amargura do personagem Sandro (Gabrielle Ferzetti). Ele deixa Claudia, cantando e dançando apaixonada no quarto do hotel – uma cena exemplar do talento multifacetado da Vitti – e sai para passear diante das igrejas de Noto. Um estudante de arquitetura retrata a nanquim o majestoso conjunto arquitetônico, Sandro balança seu chaveiro e derruba o tinteiro de nanquim de propósito sobre o desenho.

Antonioni, melhor do que ninguém, soube falar de Monica Vitti: “O que ela tem de mais estranho são seus olhos. Eles não se detêm em nenhum objeto,  mas fixam segredos distantes. É o olhar de alguém que procura um lugar para encerrar o seu voo, mas não o encontra”.


*Outras trilogias

O Silêncio

• A Trilogia do Silêncio, Ingmar Berman: Através de um espelho (1961), Luz de outono (1963), O silêncio (1963).

Clint Eastwood

• A Trilogia dos Dólares (ou Trilogia do Homem sem Nome), Sergio Leone/Clint Eastwood:  Por um Punhado de Dólares (1964), Por uns Dólares a Mais (1965) e Três Homens em Conflito(1966).

O Bebê de Rosemary

• A Trilogia do Apartamento, de Roman Polanski: Repulsa ao sexo (1965), O bebê de Rosemary (1968), O inquilino (1976).

• De volta para o futuro, de Robert Zemeckis: 1, 2 e 3 , de 1985, 1989 e 1990. (No mesmo filão pode ser inserida a série do Indiana Jones.)

Marlon Brando

• O poderoso chefão, de Francis Ford Coppola: 1, 2 e 3 , de 1972, 1974 e 1990.
* • A tetralogia de Psicose: o filme original de 1960 teve as sequências Psicose 2 (1983), Psicose 3 (1986), Psicose 4 : A revelação(1990), todas estreladas por Anthony Perkins, sendo a terceira dirigida por ele. Teve ainda um remake fraquíssimo, por Gus Van Sant, em 1998. Em 2012 Sacha Gervasi dirigiu Hitchcock, drama sobre a relação de Hitchcock (Anthony Hopkins) com a mulher Alma Reville (Helen Mirren) durante a filmagem de Psicose.
• A saga de Tom Ripley, formada por cinco romances de Patricia Highsmith, teve várias versões: O sol por testemunha (1960), de René Clement, com Alain Delon; O amigo americano (1977), baseado em Ripley’s Game, dirigido por Wim Wenders, com Dennis Hopper no papel de Ripley; o mesmo romance também foi dirigido por Liliana Cavani em 2002, O retorno do talentoso Ripley, com John Malkovich no papel principal; Barry Pepper faz Ripley no filme de Roger Spottiswoode Ripley Under Ground/Ripley no limite (2005); o primeiro romance da série, foi refilmado em 1999 (O talentoso Mr. Ripley) por Anthony Minghella com Matt Damon como protagonista.
• Em 1991, Jonathan Demme dirigiu O silêncio dos inocentes, estrelado por Anthony Hopkins e Jodie Foster. O filme desencadearia a saga de Hannibal, com o polivalente Hopkins bilhando no papel do canibal.
* Sem esquecer a nouvelle vague:


• A Pentalogia de Antoine Doinel de François Truffaut: Les 400 coups, 
Os incompreendidos (1959), “Antoine et Colette”, episódio de L’Amour à Vingt Ans (1962), Baisers Volés/Beijos roubados (1968), Domicile conjugal/Domicílio conjugal (1970) e L’Amour en Fuite/O amor em fuga (1979).

• E o duo À Bout de Souffle/Acossado (1960) e Pierrot le Fou/O demônio das onze horas (1965), de Jean-Luc Godard.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

As cidades e seus rios • Por Roberto Muggiati

Só outro dia me dei conta da importância das cidades e dos rios na vida de um homem. Nasci em Curitiba entre os riachos Ivo e Belém, bisonha mesopotâmia provinciana que virou mitologia nas páginas de Dalton Trevisan.

 Pont Neuf, na Île de la Cité, seguindo para a rive gauche de Paris.


Albert Bridge, no Tâmisa, fotografada por Roberto Muggiati. Placa Azul na casa onde morou Oscar Wilde.

Aos 23 anos fui morar em Paris, na Place Dauphine, na proa da Île de la Cité, com as rives droite egauche do Sena (la Seine, feminino em francês) escorrendo por entre minhas pernas. A seguir, passei três anos em Londres, à margem do Tâmisa, no trecho mais nobre de Chelsea. (Perto de mim moraram Thomas Carlyle, Oscar Wilde e o casal 20 da Swinging London, Mick Jagger-Marianne Faithful.) De volta da Europa, foram 56 anos de Rio de Janeiro, excetuando o ano e meio que passei em São Paulo na revista Veja. 

Hoje moro na Rua das Laranjeiras, onde passa, subterraneamente, o Rio Carioca, que deu nome ao habitante da cidade.  Ele desce do alto da Floresta da Tijuca, aflora em alguns trechos do Cosme Velho e no alto da Rua das Laranjeiras, e vai desaguar na praia do Flamengo.  Passa pelo local onde ficava a casa de Machado de Assis, antes de passar, 500 metros depois, por meu apartamento, no Baixo-Glicério.

O Tietê na região urbana de São Paulo.

Em 1968-69 morei na megalópole São Paulo, trabalhei no arrogante prédio da Editora Abril, com vista privilegiada para o fétido e lamacento Tietê – mas o Tietê é um rio histórico, Mário de Andrade terminou, treze dias antes de morrer, o poema épico A Meditação sobre o Tietê (*), que acaba assim: 

“Sob o arco admirável/Da Ponte das Bandeiras,/ morta, dissoluta, fraca,/ Uma lágrima apenas, uma lágrima,/Eu sigo alga escusa nas águas do meu Tietê.”

União da Vitória (PR) e Porto União (SC): as “Gêmeas do Iguaçu”.

Em tempo: achei um jeito de me redimir da indigência fluvial de Curitiba. Nos arredores da cidade, na confluência dos arroios Atuba e Iraí, nasce o rio Iguaçu, que segue para o sul até formar, no seu curso para o oeste, a divisa entre Paraná e Santa Catarina. O olho d’água das cercanias de Curitiba, 1320 quilômetros depois, se transformou no conjunto de cataratas mais espetacular do planeta: as Quedas do Iguaçu. 

Tive uma relação corporal conturbada com o Iguaçu. Quando prestava o serviço militar no CPOR, durante as manobras de verão nas cidades-gêmeas de União da Vitória (PR) e Porto União (SC), a arma de engenharia acampou às margens do rio, que ali já ostentava a largura respeitável de duzentos metros. Às três da madrugada acordei boiando em meu saco de dormir, com nossa barraca sendo levada pela forte correnteza. Na época eu sofria de uma amidalite crônica que se agravou com o banho forçado. De volta a Curitiba, fui levado diretamente a uma sala de cirurgia para extrair as amídalas.

Lembro ainda de um rio que ocupou parte da minha vida (quase vinte anos) nos fins de semana em Itaipava, o Piabanha. Por sua beleza natural, inspirou até uma escola de pintura paisagística serrana, mas podia ser temível em seus momentos de fúria: nos temporais de verão costumava arrastar e engolir vários carros.

Não vejo mais novos rios em meu horizonte imediato, acho que estou mais por conta do Estige ou do Aqueronte. Mas tenho a impressão de que o barqueiro Caronte anda ocupado demais para se lembrar de mim. Ainda bem... 

(*) Para ler  o poema completo, A Meditação sobre o Tietê, de Mário de Andrade, 

clique em http://www.jornaldepoesia.jor.br/and08.html


domingo, 25 de julho de 2021

Arles: do café de Van Gogh à Torre de Frank Gehry • Por Roberto Muggiati

Le Café de nuit,Van Gogh, Arles

Como bolsista do Centre de Formation des Journalistes de Paris, em 1961 – já rolaram 60 anos num piscar de olhos – fui escalado nas férias de Páscoa para estagiar no Midi Libre de Montpellier. Um redator do jornal, ex-aluno do CFJ, me despachou logo: não tinham tempo para me dar atenção, os fechamentos eram corridos e desgastantes. O diretor de redação assinou uma carta atestando que eu fizera um brilhante estágio e me liberaram. Além do estágio, eu devia escrever uma matéria sobre a região, o Hérault. Passei dois dias ouvindo funcionários locais e recolhendo farto material, escreveria quando voltasse a Paris. Sobrou muito tempo para fazer turismo no local, na época um destino de viagem quase virgem na França.

Visitei Carcassonne – cidade medieval preservada intacta – a região selvagem e pantanosa da Camarga – onde os ciganos da Europa fazem seu encontro anual em Les Saintes Maries de la Mer – e, na segunda-feira de Páscoa, fui até Arles – era dia de touradas – mas preferi procurar o café amarelo pintado por Van Gogh. Não existia mais, fora destruído por uma bomba na Segunda Guerra. (Nos anos 1990, reconstruíram algo no local simulando o “café Van Gogh”, atração turística que os incautos julgavam fosse o original.) Percorri os Alyscamps – também pintados por Van Gogh – necrópoles romanas: na língua da Ocitânia Alys Camps nada mais eram do que Campos Elísios... Depois de visitar em Paris a ilha da Grande Jatte – a obra-prima do pontilhista Seurat, que retrata um domingo de verão da belle époque, onde só encontrei lixo e ferro-velho – o Terraço do café à noite em Arles de Van Gogh foi outra que me ficaram devendo...

Luma Arles, de Frank
Gehry. Foto Divulgação
Um fato novo me leva àqueles tempos. Arles acaba de ganhar um museu fabuloso projetado pelo arquiteto canadense especialista em grandes museus, Frank Gehry – aquele do Guggenheim de Bilbao. A torre de sessenta metros não teria surgido sem o patrocínio da grande colecionadora suíça Maja Hoffman, herdeira das indústrias farmacêuticas do mesmo nome, em cujos laboratórios o cientista Albert Hoffman sintetizou em 1938 o ácido lisérgico, mais conhecido como LSD. Gehry disse que a inspiração da torre Luma foi a tela pintada por Van Gogh em Arles, Noite estrelada. Pelo visual da coisa, suspeito que ele possa ter recebido um “little help” psicodélico. Aliás, Van Gogh pintava como se tivesse tomado ácido. 

E, já que estou viajando, vamos ao prelúdio da Suite L’Arlesienne, dedicada à mulher de Arles, composta por Georges Bizet – sim, o pai da Carmen – adoro Bizet, pena que só viveu 36 anos, reparem o saxofone já no naipe de sopros, numa época em que a sinfônica esnobava o instrumento criado por Adolphe Sax.

Ouçam AQUI



sábado, 3 de julho de 2021

Há 60 anos Hemingway morria em Paris • Por Roberto Muggiati

Ernest Hemingway no Quênia, em 1953.
Foto: U.S. National Archives and Records Administration

Dois de julho de 1961, uma ensolarada manhã de domingo em Ketchum, Idaho. O velho levanta da cama às sete horas, pega um fuzil de caça de cano duplo e estoura a cabeça. Em Paris, são três horas da tarde e estou almoçando com Ruth Fleming, negra, intelectual de Nova York, vivendo um típico romance beat. Às nove da noite sentamos na amurada da rive gauche do Sena para assistir ao crepúsculo tardio do verão. Fumamos em câmera lenta um cigarro tibetano e depois vamos dormir num hotel da Rue de Seine. Na manhã seguinte, na primeira banca de jornal, dou de cara com as manchetes. "HEMINGWAY DEAD", grita o Daily Mail de Londres. "Alvejado quando limpava a arma. Foi suicídio?"


Paris, 3 de julho de 1961. Foto Acervo Pessoal

Vou a uma cabine de fotos automáticas e tiro uma 3x4 exibindo a primeira página do jornal. A sensação de perda é enorme. Numa carta a um amigo, Hemingway escreveu: "Se você teve a sorte de viver em Paris quando jovem, então aonde quer que vá pelo resto da vida ela o acompanhará, pois Paris é uma festa móvel."

Com Olli e Peter, em Paris, nos passos de Hemingway. Foto: Acervo Pessoal

Eu tinha dois amigos em Paris: o finlandês Olli Heikkinen e o norte-americano Peter J. Solomon. Com pouco mais de vinte anos, éramos um pouco os três mosqueteiros em busca de Hemingway. Olli foi viver em Paris com a mulher, uma ex-Miss Finlândia que virou dançarina do Crazy Horse Saloon. Separaram-se e Olli foi morar num pardieiro na Place de la Contrescarpe, onde Hemingway viveu em Paris nos anos 1920. Quando começou a passar fome, voltou para a casa do pai, operário de uma fábrica de vidros nas lonjuras do leste finlandês, perto da fronteira com a URSS. Fui visitá-lo na época do sol da meia-noite, pouco depois da morte de Hemingway.

Peter Jay Solomon era filho de uma tradicional família de banqueiros judeus de Nova York e estagiava num banco americano na região da Opéra. Em suas folgas de almoço, comíamos sanduiches no Harry’s Bar e folheávamos os livros da Brentano’s. Também voltou para a casa dos pais, mas marcou um encontro comigo em 1963 nas touradas de Pamplona, cenário do romance de Hemingway que retrata a "geração perdida", O Sol Também Se Levanta. 

Quase todo mundo que eu conhecia em Paris na primavera de 1961 estava com o pé na estrada a caminho de Pamplona. Americanos, canadenses, nórdicos, meridionais — aquela fauna estrangeira que se esparrama pelos boulevards e cafés de calçada quando o sol volta a brilhar. Muitos costumavam se reunir num café do Odéon frequentado por espanhóis para ouvir as guitarras, ver a dança flamenca e viver a fiesta por antecipação.

Naquela segunda-feira, 3 de julho, quando os jornais noticiaram a morte de Hemingway, já deviam estar todos em Pamplona, para a festa das San Fermines. Dois anos depois, morando em Londres, fui até Pamplona para o encontro marcado com Peter Jay. Quando cheguei à pensión designada, ele já havia partido com a noiva, até hoje não soube o que aconteceu e nunca mais o vi. Decidi ficar e aproveitar a fiesta. Comprei uma bota, aquele odre de couro que os espanhóis enchem de vinho barato e esguicham garganta abaixo. Eu errava sempre o alvo e o vinho espalhava-se pelas roupas claras, tinto como sangue. Pelo menos não era o sangue que manchava as roupas dos espanhóis mais afoitos, que corriam pelas ruas estreitas que desembocavam na arena, perseguidos por um tropel de miúras furiosos.

Quando não havia corridas, sentava-me em meio a uma horda internacional no centenário Café Iruña, frequentado por Hemingway e cenário do filme de 1957 O Sol Também Se Levanta. Hemingway estivera ali pela última vez no verão de 1959, imaginem, apenas quatro anos antes... Coerente com sua opção ideológica, chegando a lutar na Revolução Espanhola, ficou 14 anos sem pisar na Espanha franquista, só voltando a partir de 1953, por força de sua paixão pelas touradas.

No discurso que mandou para ser lido em Estocolmo quando ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1954, Hemingway escreveu; "Na melhor das hipóteses, o fato de escrever implica numa vida solitária..." Mas ele não parou de escrever, mesmo minado por uma série de doenças: diabetes, hipertensão, arterioesclerose, obsessão da morte. A escolha final foi consciente. Como escreveu Carlos Baker na sua biografia de Hemingway: "Agarrara-se durante anos à máxima ‘Il faut (d’abord) durer.’ Agora ela fora trocada por outra máxima: ‘Il faut (après tout) mourir.’ "

Na obra de Hemingway, Paris é uma cidade mitológica. Pamplona também. As pessoas passam, Paris e Pamplona ficam. No espírito do Eclesiastes, seu texto favorito da Bíblia, a terra permanece e Hemingway vê as pessoas mais com piedade do que com ironia. Esse sentimento é sintetizado em O Sol Também Se Levanta pelo refrão de Mike Campbell, bêbado no meio da fiesta, comparando o ser humano aos balões (globos iluminados, em espanhol) e aos fogos de artifício que explodem à noite no céu de Pamplona:

"Globos iluminados” –  disse Mike. “Um bando miserável de globos iluminados."

sexta-feira, 21 de maio de 2021

Já temos Paris de volta • Por Roberto Muggiati

 

Torre Eiffel volta a atrair turistas.


O brinde de champanhe consolatório de Bogart a Bergman em Casablanca “Sempre teremos Paris”está mais atual do que nunca. 

Depois de seis meses de rigoroso lockdown, a cidade voltou a suas atividades normais na terça-feira 18 de maio com a reabertura parcial de museus, centros culturais, monumentos turísticos (como a Torre Eiffel) e restaurantes e cafés (restritos às mesas de calçada). 

Cafés recuperam o .movimento


Macron na reabertura.

O próprio Presidente Emmanuel Macron comemorou a medida saindo para tomar um café com seu premier, Jean Castex, nas redondezas do Palácio do Eliseu. Disse Macron: “Este café é um momento de liberdade recuperada, fruto de nossos esforços coletivos”. 

Caso tudo corra bem, a retomada prosseguirá em 9 de junho, com a reabertura das áreas internas de restaurantes e cafés e a ampliação do toque de recolher até as 23 horas (no dia 19 de maio passou das 19h para as 21h e em 30 de junho poderá ser totalmente abolido).

Humphrey Bogart e Ingrid Bergman em Casablanca: um entre os milhares de filmes
que têm Paris como referênciaa 

No Cafe de Flore, a busca do passado perdido

O Louvre volta a se iluminar

A tradição de Paris como polo cultural da humanidade vem de longe – vocês sabiam que na época da Revolução Francesa os inconfidentes mineiros e os líderes da Independência dos Estados Unidos, como Thomas Jefferson, já conspiravam com os Enciclopedistas em cafés da rive gauche? Na segunda metade do século 19 e na Belle Époque, 

Paris fermentava com artistas e intelectuais estrangeiros, mas o grande boom ocorreu nos anos 1920, com a chamada lost generation (Hemingway, Fitzgerald), os espanhóis Buñuel, Dali, Picasso, etc, etc – parodiados na fantasia nostálgica de Woody Allen Meia-noite em Paris.


Quem contou melhor essa história foi talvez Ernest Hemingway, no livro póstumo de 1964 A Moveable Feast/Paris é uma festa, no qual afirma : “Se você teve a sorte de viver em Paris quando jovem,  aonde quer que vá depois, a cidade o acompanhará pelo resto da vida.”


Morei em Paris de outubro de 1960 a fevereiro de 1962, estudando jornalismo com bolsa do governo francês. Cheguei lá com 23 anos. A memória dos dezesseis meses que vivi em Paris, há sessenta anos, ainda dorme toda noite e acorda todo dia comigo. Com toda a força de sua magia, Paris ressurge agora – vamos torcer – como um símbolo do fim da pandemia e a esperança de novos tempos.


sábado, 3 de abril de 2021

Minhas manhãs de Páscoa • Por Roberto Muggiati

 

Foto:Instagram

Na minha infância, o Natal era tudo, cercado de ritual. Já a Páscoa era apenas um ovo de chocolate protocolar para mim e as duas irmãs – se bem que em Curitiba fosse um da ICAB, a Kopenhagen local. Só vim a viver todo um ritual de Páscoa depois dos cinquenta anos, voltando à infância através de meus filhos Roberto e Natasha. Inventei uma caça aos ovos na manhã de domingo – no molde daquelas caças ao tesouro em voga nos anos 50. Lá pelas dez da manhã – que ninguém é de ferro – eu acordava a galera tocando a todo volume a Grande Páscoa Russa de Rimsky Korsakov:

https://www.youtube.com/watch?v=56mXEqg6FdA

Depois de um desjejum apressado – as crianças estavam ansiosas para começar a busca – eu distribuía para cada uma a papeleta número 1: “Procurem com aquele menininho muito mentiroso pendurado no escritório.” Era um boneco antigo do Pinóquio, que Roberto e Natasha adoravam, o brechó espanhol da Rua da Matriz relutou muito em vender, alegou razões afetivas, era brinquedo de um menino da família que morreu muito cedo. Numa das dobras do boneco articulado estava a papeleta número 2: “Abram a porta da rua e procurem no amigo que leva vocês para a escola.” Era o automóvel estacionado em frente de casa na vila, a papeleta enfiada em alguma de suas fendas, ou num local mais óbvio, como debaixo do limpador de para-brisas. (Como ensinou Poe em A carta roubada, o esconderijo óbvio é às vezes o mais dissimulado e difícil de achar.) Minha mulher, Lena, acompanhava Natasha, que tinha cinco, seis anos; Roberto, esperto, seis anos mais velho, dispensava consultoria. A caça às papeletas prosseguia pela casa de vila de Botafogo, com dois andares e terraço. Uma de minhas pistas mais criativas foi esconder a papeleta na barriga de um cágado, colada com fita adesiva. (“Aquele que se arrasta junto das plantas na área dos fundos.”)

Um ano, a caça ao ovo aconteceu em Itaipava, onde tínhamos um chalé. Numa das pistas, mandei as crianças procurarem “na piscina ou em volta dela”. Era uma pequena piscina de PVC, ninguém ousaria entrar nela na fria manhã de outono. Logo ao amanhecer, coloquei as papeletas dentro de uma garrafa incolor de PVC, amarrei-a a uma pedra e mergulhei na piscina. Um barbante meio azulado, da cor da água, prendia a garrafa à borda da piscina. Depois de uns cinco ou dez minutos, as crianças pediram arrego, tive de revelar o truque. 

Roberto – que fez 40 anos em dezembro – mora há treze anos na Europa, atualmente é chef confeiteiro num restaurante de Edimburgo. Natasha – que faz 35 em maio – ao chegar o momento da escolha profissional, falou para nós: “Pai jornalista, fudido; mãe fotógrafa e jornalista, fudida; irmão jornalista, fudido; vou fazer uma coisa que dê dinheiro, pelo menos.” Formou-se em Análise de Sistemas e Administração de Empresas. Por conta da TI, está há quatro anos fora do Brasil: dois na Austrália e os últimos dois em Stuttgart, Alemanha. Na impossibilidade de mandar os ovos de Páscoa, vou mandar o link do Rimsky-Korsakov para eles – duvido muito que ouçam.

Nesta época de aplicativos e redes sociais, ignoro o tipo de domingo de Páscoa que vivem as crianças. Duvido muito que tenha algo a ver com aqueles dos meus filhos. Que, na verdade, foram os meus domingos de Páscoa, inesquecíveis.


segunda-feira, 15 de março de 2021

Memória da reportagem - Roberto Muggiati completa 67 anos de carreira neste 15 de março

No ano passado, o jornalista e escritor Roberto Muggiati deu no PANIS uma geral dos seus 66 anos de imprensa, você pode ler e ver aqui: 

https://paniscumovum.blogspot.com/search?q=os+idos+de+mar%C3%A7o+roberto+muggiati

Este ano, Muggiati conta um episódio inédito em torno da tragédia nacional que foi a queda do Convair da Cruzeiro do Sul em Curitiba em junho de 1958. O relato dá uma visão crítica do jornalismo brasileiro da época. 


...e o governador coube numa caixinha de meio metro cúbico • Por Roberto Muggiati




1 Temporal na Ilha do Desterro

"Esta história chafurda em alguns aspectos sórdidos da profissão de jornalista nos anos 1950. Trabalhando na Gazeta do Povo de Curitiba desde 1954, sequer recebia salário. Por sorte, o jornal era aliado do governador Moisés Lupion e ganhei um emprego (um cabide, dizia-se na época) no Departamento de Arrecadação de Rendas, que ficava a cinquenta metros da Gazeta, dirigido pelo lendário Anfrísio Siqueira, o fundador da Boca Maldita. Outros colegas, mais ávidos, não se contentavam com um salariozinho de barnabé e recorriam à prática da “picaretagem”: vendiam e assinavam matérias pagas dando uma pequena comissão ao jornal. Era o caso de nosso brilhante gramático Dicesar Plaisant, na casa dos cinquenta anos, respeitável membro da Academia Paranaense de Letras, que jogou ao ar todos os escrúpulos para correr atrás do dinheiro. Por que não nós? – nos perguntamos um dia eu e o colega Carlos Augusto Cavalcanti de Albuquerque. Tínhamos ouvido falar que o Governador de Santa Catarina, Jorge Lacerda, estava soltando dinheiro a rodo. Um belo dia, empreendemos nossa excursão de caça a Florianópolis. Jornalista na época viajava de graça, bastava a empresa requisitar a passagem. Às vezes o barato saía caro. Na segunda-feira, 11 de novembro de 1957, pegamos um avião decrépito das Linhas Aéreas Sadia, uma mistura de transportadora de humanos e porcinos. O voo era triangulado, fazendo escala em Concórdia, no oeste catarinense – onde a Sadia abatia e embalava seus suínos – e seguindo depois para Florianópolis. 

Governador Jorge Lacerda
Do aeroporto fomos diretamente ao Palácio Rosado, suntuosa sede do governo catarinense. O governador sequer nos recebeu. Um ajudante de ordens que mais parecia um contínuo alegou que Jorge Lacerda viajaria para uma série de compromissos importantes e nos despachou laconicamente. Confesso que fiquei com um ódio mortal do governador, político de sucesso e poeta conceituado. 

Prevendo passar apenas um dia na cidade, nos hospedamos num hotel de relativo conforto. Naquela madrugada, o céu desabou sobre Florianópolis. De manhã, quando acertávamos as contas na recepção, nos informaram que todos os voos haviam sido cancelados. A Ilha do Desterro estava literalmente ilhada e nós acabaríamos desterrados pelo temporal, que duraria mais alguns dias. Com o orçamento limitado, mudamos para uma pensão. Fomos ajudados pelo Gabriel, de Indaial, um jovem louro de feições angelicais, conterrâneo do Carlos Augusto, que estudava em Florianópolis. Anos depois Gabriel viveria em Indaial uma tragédia dostoievsquiana, ao matar a tiros um colega numa discussão de bar. 

Aquelas foram noites reclusas, lembro que eu lia A Spy in the House of Love, de Anaïs Nin. Uma noite fomos a um cinema do centro ver Sweet Smell of Success/A embriaguez do sucesso – uma fábula cáustica sobre jornalismo, poder e corrupção, com o brilho cínico de Burt Lancaster e Tony Curtis – incrível que o filme chegasse ao Brasil na mesma época do seu lançamento mundial. Noutra noite chuvosa, com os trocados que nos restavam, fomos à única boate local, quase vazia, ainda ajudamos um catedrático de direito a voltar para casa de táxi – mal imaginava que quatro anos depois eu teria um namoro breve e turbulento com sua filha, a atriz Elizabeth Galotti, bolsista em Paris como eu. 

A tempestade só amainou na sexta-feira, era o feriado de 15 de novembro e voltamos a Curitiba, num voo plácido com um céu de brigadeiro, mas com uma amarga sensação de derrota no coração.


O Convair destroçado, um cenário chocante. 

2 Tragédia em São José dos Pinhais

Na segunda-feira. 16 de junho de 1958, uma noite chuvosa de final de outono, sou arrancado da paz da redação e mandado às pressas com um fotógrafo ao Hospital da Cruz Vermelha para entrevistar o sobrevivente de um desastre aéreo nas imediações do aeroporto Afonso Pena. “Estava muito escuro, só ouvi um baita estrondo. Por sorte eu estava na traseira do avião e não sofri nada!” O rapaz alourado, ainda na casa dos vinte anos, apesar de atrelado a uma aparatosa cama hospitalar, não exibia um arranhão ou curativo sequer. Havia sido um dos oito sobreviventes do voo do Convair 440 PP-CEP da Cruzeiro do Sul que partira de Porto Alegre, com escalas previstas em Florianópolis, Curitiba, São Paulo e destinação final ao Rio de Janeiro. Mas 22 outras pessoas, 17 passageiros e cinco tripulantes – piloto, copiloto e três aeromoças – não tiveram a mesma sorte e seus corpos foram destroçados na queda do avião. Sem visibilidade no fim de tarde tempestuoso, o piloto, que deveria ter arremetido e ganhado altitude, chocou a aeronave contra o solo e foi arrancando as centenas de árvores que cobriam o território da Colônia Murici.

"É uma coisa que a gente não esquece, porque é uma coisa forte. Fortíssima", disse o agricultor Ladislau Holtman, de 76 anos, morador do local. O Convair foi visto pela última vez no céu às 17h51.

"Não deu para ouvir nada porque o temporal era muito forte", conta Leonardo Valenga. Dois sobreviventes conseguiram caminhar por alguns quilômetros e chegaram até o vizinho de propriedade do agricultor. Mesmo desconfiados, eles se dispuseram a ajudar. "O acesso à Colônia Murici era muito difícil. O aeroporto era um mero galpão", explicou o perito criminal Leonardo Straube. De caminhão, os bombeiros e socorristas chegaram penosamente ao local do acidente.

Na escala em Florianópolis, haviam embarcado três importantes políticos de expressão nacional. O catarinense Nereu Ramos, 69 anos, que desempenhou um papel vital para a democracia brasileira ao assumir – como 1º vice-presidente do Senado – a Presidência da República de 11 de novembro de 1955 até 30 de janeiro de 1956 e garantir assim a posse do Presidente eleito Juscelino Kubitschek; o deputado federal catarinense Leoberto Leal, 45 anos, provável futuro governador do estado; e o governador em exercício de Santa Catarina, Jorge Lacerda, 43 anos. Filho de imigrantes gregos, nascido em Paranaguá (PR), Lacerda, ao deixar o governo, estava destinado a se eleger senador da República. Formado em medicina pela Faculdade Federal do Paraná em Curitiba, também se diplomara pela Faculdade de Direito de Niterói. Poeta, Lacerda se destacou ainda no jornalismo cultural ao fundar, em A Manhã, do Rio, em 1946, o Suplemento “Letras e Artes”, do qual assumiria a direção, tendo entre seus colaboradores escritores e artistas de renome nacional, como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Raquel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles, Dinah Silveira de Queiróz, José Lins do Rego e Santa Rosa.

A cobertura frenética da noite de 16 de junho me levou também à emergência do Hospital Cajuru, onde estavam chegando alguns corpos. De repente, dois padioleiros desceram de uma ambulância, cada um segurando a alça de uma caixa metálica de meio metro cúbico.

“O que é isto?” – perguntei.

“É o corpo do governador Jorge Lacerda.”

Na hora não consegui assimilar a sensação de ver realizado o desejo de ter um desafeto tão prontamente morto, em apenas sete meses, e ainda daquela maneira. Seriam precisos anos, décadas, para que exorcizasse completamente o sentimento de culpa em relação à morte do infeliz Jorge Lacerda.

Na quinta-feira, 19 de junho, com a volta do sol, mas o terreno ainda encharcado, fomos visitar o local do acidente numa camionete de reportagem. Pelo rádio do carro ouvíamos ansiosos o jogo do Brasil contra o País de Gales na Copa do Mundo da Suécia. Um gol providencial de Pelé aos 18 minutos do segundo tempo garantiu a ida da seleção para as semifinais. 

É difícil imaginar o cenário de devastação no local de um acidente aéreo – só mesmo indo até lá. Fuselagens retorcidas, as entranhas escancaradas da decoração interna da aeronave, detalhes íntimos de dezenas de malas espalhados pelo solo lamacento. Mas nada me chocou mais – então e pelo resto da vida, com uma ponta de remorso, por ter desejado sua morte – do que ver os despojos de toda aquela promessa humana reduzidos a um pequeno cubo metálico salpicado de lama e sangue.