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sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Eu choro por ti, Huelva • Por Roberto Muggiati

Huelva. Foto Booking.com

Em outubro de 1960, antes de chegar a Paris para a bolsa de estudos, passei uma semana em Portugal e Espanha. Não era só turismo, eu tinha uma missão específica a cumprir: comprar em Sevilha uma mantilha para o casamento de minha irmã Regina. Depois de uns bordejos por Lisboa – e de uma corrida de touros em Santarém – parti para a Espanha. Tomei uma barca até a gare do outro lado do Tejo, onde embarquei num comboio (trem em bom lusitanês) para a fronteira com a Andaluzia. Lá trocamos o trem por um ônibus e sua primeira parada – para esticarmos as pernas e comer um sanduiche – foi na cidade Huelva, com população de menos de cem mil habitantes, caberiam todos no Maracanã. Era por volta das dez da noite e a praça principal, com uma iluminação exuberante que competia com a luz do dia, vibrava numa feliz celebração da vida. Huelva, minha primeira cidade espanhola, foi para mim, uma verdadeira epifania. Com imensa tristeza, vi agora na TV que ela figurava entre as cidades mais atingidas pelo desastre das chuvas. Uma desgraça a mais no noticiário nosso de cada dia e – para mim – com um tom particular de tragédia. 


domingo, 29 de setembro de 2024

Quando Beirute era o sanduíche da minha juventude... • Por Roberto Muggiati

 * Armênia, Guernica, Auschwitz, Hiroxima, Ruanda – a geografia é manchada de sangue pela insensatez da guerra. Na minha memória afetiva, nas deambulações juvenis pela noite curitibana – em pés-sujos como o Triângulo e o Buraco do Tatu e confeitarias como a Cometa, a Guairacá e a Iguaçu – Beirute era o nome do delicioso sanduíche feito com pão sírio, queijo muçarela, zatar, rosbife, tomate e alface. Seu concorrente era o Bauru, até aqui ileso, apesar de rondado pelos incêndios florestais que vêm assolando as terras paulistas...

*Segundo o portal g1, um incêndio florestal foi registrado na noite de domingo,  8 de setembro de 2024, na Reserva Bela Nações, em Bauru (SP). De acordo com a Defesa Civil, o início do fogo foi por volta das 19h30 na área de preservação próxima ao bairro Núcleo Habitacional Presidente Geisel e até as 23h as chamas já haviam sido controladas. Ainda não foi possível calcular a área incendiada e a Defesa Civil acredita que o incêndio tenha sido criminoso.

quarta-feira, 5 de junho de 2024

70 anos no lugar certo na hora certa • Roberto Muggiati compartilha alguns dos melhores momentos de uma carreira que já atravessa oito décadas

 




Uma exclusiva com o Portinari de Guerra e Paz
• Eu tinha um amigo japonês mais velho, colega da Cultura Inglesa, que era um gênio dos relacionamentos. Quando fiz minha primeira viagem para o Rio forrou-me de cartas de apresentação. Graças a ele, Cândido Portinari me recebeu no seu ateliê do Leme no momento mais importante da sua carreira. Entrevistei o Mestre enquanto ele esboçava os painéis de 14 x 10 metros que ornam até hoje a entrada do prédio das Nações Unidas em Nova York. Foi minha primeira matéria assinada, publicada no domingo 27 de março de 1955 na Gazeta do Povo de Curitiba. Uma estreia de luxo.




Cobrindo as Misses nos Anos Dourados • Sem duplo sentido: eram todas virgens e nós rapazes de bem. O livro favorito que não tinham lido era O Pequeno Príncipe. Eu, 20 anos, embasbacado diante da beldade, no tempo em que repórter usava smoking. Karin Japp, Miss Paraná 1957, ficou em 5º no concurso nacional. Uma época inocente apenas na fachada. Já em 1954, com cinco meses de profissão, eu encarava minha primeira edição extra na Gazeta: o suicídio de Getúlio.




Tragédia nos céus de Curitiba • Na noite chuvosa de 16 de junho de 1958 fui mandado ao Hospital da Cruz Vermelha para entrevistar o sobrevivente de um desastre aéreo nas imediações do aeroporto Afonso Pena. “Estava muito escuro, da traseira do avião só ouvi um baita estrondo!” Atrelado a uma cama hospitalar, o rapaz louro não exibia um curativo sequer. Foi um dos oito sobreviventes do voo do Convair da Cruzeiro do Sul de Porto Alegre ao Rio de Janeiro, com escalas em Florianópolis, Curitiba e São Paulo. No outro extremo da cidade, no Hospital do Cajuru, fui ver a chegada dos 22 mortos, entre eles o Senador Nereu Ramos, que ocupara a presidência do país. Dois socorristas carregavam uma caixa metálica de meio metro cúbico. “É o corpo do governador de Santa Catarina”. Há quase um ano eu nutria um ódio visceral por Jorge Lacerda. Na época, jornalista mal pago, decidi escrever matérias pagas. Até o respeitável Dicesar Plaisant, da Academia Paranaense de Letras, praticava a “picaretagem”. Ouvi dizer que o Jorge Lacerda estava distribuindo dinheiro a rodo e viajei a Florianópolis para pleitear o meu. Encontrei-o à saída do palácio, recusou rispidamente qualquer proposta. Talvez procurasse poupar aquele jovem imberbe de se tornar um “picareta”. Ao vê-lo reduzido àqueles míseros despojos, fui tomado de profundo remorso. Lamento até hoje a morte, aos 43 anos, do filho de imigrantes gregos formado em medicina e em direito, brilhante político e poeta que ombreava nos suplementos literários com Drummond e Bandeira, Raquel de Queiroz e Lygia Fagundes Telles.






Arte: Roberto Mendonça Muggiati



O amigo brasileiro do Kerouac • No final de 1959 recebi em Curitiba um cartão postal de Jack Kerouac, que vivia dias de glória como autor do romance épico da beat generation, On the Road. Tinha mandado a seu agente a cópia de artigo que eu publicara no sdjb, Jack Kerouac e as crianças do bop. Ele lamentava certas escorregadas do meu texto e defendia o movimento beat. “Se a crítica é ‘Para onde vocês estão indo?’ a resposta é ‘Nós chegaremos lá’.” Jack despedia-se com uma saudação fraternal escrita em esferográfica e, por sua vez, escorregava no idioma: salud, hombre. Em 2013 tentei sem sucesso vender o cartão num leilão da Sotheby’s em Nova York. O pequeno retângulo de cartolina empreendeu de novo a viagem de NY ao Brasil. Às vésperas da pandemia, o vendi finalmente ao colecionador Pedro Correa do Lago e ganhei uma sobrevida financeira. Agradeci a Jack – morto havia meio século – acendendo uma vela na Igreja de São Judas Tadeu, perto da minha casa em Laranjeiras.





Estagiando no DC nos primeiros dias da Belacap • Uma dezena de jornalistas das principais cidades do país estagiou em maio de 1960 nos melhores jornais do Rio, que deixara de ser a Capital Federal e vivia seus primeiros dias como sede do Estado da Guanabara. O humor carioca continuava soberano: se Brasília era a Novacap, o Rio seria a Belacap. Coube-me um jornal genial, o Diário Carioca, fundado pelos Macedo Soares e na época propriedade de Horácio de Carvalho. Sua paginação era ainda mais ousada que a do JB. Juscelino Kubitschek se tornou JK porque seu nome não cabia nas estreitas colunas de títulos do DC. Depois de uma semana morna na redação comandada por Ascendino Leite (lá conheci o baiano Hélio Pólvora, sete anos depois assinaríamos as traduções da trilogia de Henry Miller, ele Plexus e Nexus, eu Sexus), parti para as ruas sob as asas do generoso Gilson Campos, cobrindo o primeiro concurso de Miss Guanabara no Maracanãzinho e a chegada no Galeão de um avião cheio de revolucionários cubanos, com seus uniformes verdes de campanha, encabeçados pelo irmão de Fidel, Raul Castro. O estágio foi sacramentado pelo Sr. ABI, Herbert Moses, cuja mão apertei emocionado em seu escritório no Prédio da Esso, que fez seu nome promovendo nosso jornalismo com o Repórter Esso, o Prêmio Esso e aquele estágio que, infelizmente, só teria aquela edição, nos vibrantes primeiros dias da Belacap.





O General não segurou o Homem da Vassoura • Ao sufocar o golpe de Carlos Lacerda e asseclas contra a posse de JK, eleito legitimamente no pleito presidencial de 1955, o general Henrique Batista Duffles Teixeira Lott se consagrou como defensor da democracia e candidato natural à sucessão de JK. Entrevistei Lott na sua campanha em Curitiba: seu perfil austero não era páreo para os esquetes histriônicos de Jânio da Silva Quadros, o Homem da Vassoura, que venceu em outubro de 1960 por uma enxurrada de votos em mais uma explosão de populismo delirante do nosso povo. Empossado como o primeiro Presidente em Brasília (que ele odiava), depois de uma série de medidas autoritárias e idiossincráticas – proibição do biquíni, da lança-perfume, das rinhas de galo e das corridas de cavalo nos dias de semana, a mania dos bilhetinhos e a adoção de alpercatas e um uniforme funcional apelidado de pijânio – após 237 dias de governo Jânio Quadros renunciou. Darcy Ribeiro escreveu: “Ninguém sabe, até hoje, por que Jânio renunciou. Nem ele.” O tresloucado gesto provocaria uma agitação nas camadas tecnônicas da nossa política que levaria inexoravelmente ao golpe militar de março de 1964.







Paris é uma festa • Em 6 de outubro de 1960 fiz 23 anos de idade a bordo de um avião da Panair para Paris. Bolsista do governo francês, hospedei-me na Casa do Brasil, na Cidade Universitária. Não ficava em Paris – não naquela cobiçada Paris de meus sonhos. Em fevereiro eu já morava no centro histórico e geográfico da cidade, na ponta da Île de la Cité, no 29 place Dauphine. Quatro noites por semana eu cruzava o Pont Neuf até a margem direita do Sena, a caminho do 29 rue du Louvre, onde eu estudava no Centre de Formation des Journalistes. Forçosamente atravessava Les Halles, o maior centro de distribuição de alimentos do mundo, que Émile Zola batizara “O Ventre de Paris”. Era uma festa para os olhos. Uma noite passava por entre o quilômetro de carcaças bovinas penduradas em ganchos; na outra, pelos quiosques verdejantes de hortaliças, na seguinte pelos de legumes; ou então pelas bancadas úmidas e acinzentadas de peixes e frutos do mar, com alguns animais ainda saltitando. O curso no CFJ, todo em francês, foi altamente proveitoso. Na prova final, o aluno tinha de diagramar a primeira página de um matutino do dia seguinte, completa com títulos, subtítulos e textos de chamadas, com base nas principais notícias daquela noite. O oposto total da masturbação teórica de nossas faculdades de comunicação. Hemingway disse: “Se você teve a sorte de morar em Paris quando jovem, aonde quer que vá, a cidade o acompanhará pelo resto da vida.” No filme Paris nous Appartient/Paris nos pertence, o diretor Jacques Rivette propõe uma charada Zen ao usar como epígrafe uma pequena frase do poeta Charles Péguy que contradiz o título do filme: “Paris n’appartient à personne/Paris não pertence a ninguém.” Peu importe, a lembrança do ano e meio que vivi em Paris, há sessenta anos, ainda dorme toda noite e acorda todo dia comigo.





No calor da Guerra Fria em Berlim • Terminada a bolsa, estiquei minha estada na Europa aceitando um convite do consulado alemão de Curitiba para visitar a República Federal. O foco da viagem foi Berlim, a cidade dividida pelo “Muro da Vergonha”. Regiamente instalado no Bristol Kempinski, na manhã seguinte fui levado por meus gentis anfitriões para uma sessão de fotos no Portão de Brandenburgo – o centro nevrálgico do Muro – erguido exatos quatro meses antes. Minhas fotos – num capote surrado de estudante, em contraste com os estilosos uniformes dos soldados da RFA – foram distribuídas pelo mundo inteiro. No dia seguinte, num deprimente bunker, fizeram desfilar diante de mim fugitivos do “outro lado”, numa encenação que nem Brecht teria feito melhor. Declarei-me insatisfeito com a visita protocolar à Berlim soviética num ônibus de turismo. Arranjaram-me um taxista autorizado a circular no lado comunista. Assim que atravessamos o Checkpoint Charlie, o sujeito distribuiu cigarros aos coleguinhas soviéticos num ponto de táxi, comentando comigo: “Unterschied!” (“Que contraste!”) Levou-me pelo mesmo roteiro do ônibus turístico e ao mesmo gran finale: o cemitério dos soldados comunistas mortos na 2ª Guerra e sua escultura monumental feita com o bloco de granito que Hitler escolhera para erigir o seu Arco do Triunfo.
Minha última noite em Berlim me arrancou da atmosfera de pesadelo para uma de sonho. Jantando na cobertura do Hotel Hilton com um grupo de jornalistas brasileiros, inadvertidamente invadimos outra festa, bem maior, e passei a trombar com figuras que me pareciam vagamente familiares. Spencer Tracy? Montgomery Clift, com sua indefectível capa de chuva? Sim, e sem a menor dúvida Marlene Dietrich, Judy Garland, Burt Lancaster, Richard Widmark, o ‘Risadinha’ – era o elenco milionário au grand complet do filme Julgamento em Nuremberg, num dos maiores lançamentos cinematográficos de todos os tempos. A Guerra Fria vivia um de seus momentos mais acalorados.






Da metrópole vitoriana à Swingin London • Morei em Londres três anos, a partir de agosto de 1962, trabalhando como assistente de programação no Serviço Brasileiro da BBC, a British Broadcasting Corporation. (Na foto de divulgação, entre os colegas Floriano Parreira e Nemércio Nogueira Santos.) No oitavo mês passei a ocupar meu endereço definitivo, 8 Embankment Gardens, uma transversal em forma de cotovelo do Embankment, a grande avenida que margeia o Tâmisa. Dirigia-me ao trabalho – em Bush House, no Strand – pelo ônibus da linha 11, bem mais agradável que o metrô. Fazia uma rota turística, passando pelos fundos do Palácio de Buckingham, Victoria Station, Casas do Parlamento, Big Ben, Whitehall, Trafalgar Square, Strand e Aldwych. Viajava sempre no segundo andar do bus vermelho, é claro. Na BBC estabeleci logo um esquema conveniente: trabalhava em horário integral (9 to 5) nas quartas quintas e sextas e na transmissão ao vivo aos sábados e domingos. (No Brasil, das 20 às 21, em Londres da meia-noite à uma da manhã). Segunda e terça folgava e fazia da grande metrópole meu playground. Nada melhor do que flanar, fazer compras, ir a casas de chá e visitar livrarias e museus quando o resto do mundo está trabalhando. Muitas vezes faltava à última hora um dos dois assistentes de programação que fazia a transmissão. Se eu estivesse num de meus dias de trabalho integral (de quarta a sexta) vinham me implorar de joelhos que fizesse a transmissão. Isso me dava uma “comp” (compensação), que me valia um dia inteiro de trabalho para efeito de férias. Conseguia assim ter dois ou até mais períodos de um mês de férias ao ano. Adquiri hábitos britânicos: conheci pouco do país, viajava sempre para The Continent, França, Espanha, Itália. Uma das vantagens de trabalhar na BBC era ser convidado para as prévias matinais de filmes da nouvelle vague britânica – cineastas como Tony Richardson, Karel Reisz, John Schlesinger. Outras áreas foram tomadas por uma verdadeira revolução cultural no brevíssimo período que vivi em Londres: o teatro e a literatura, com os angry young men; a música com os Beatles, Rolling Stones, Yardbirds, The Who; o jornalismo satírico; os esquetes cômicos da TV independente; a moda, com as roupas de Carnaby Street, a minissaia de Mary Quant, as manequins Jean Shrimpton e Twiggy, as fotos de David Bailey. Por tudo isso, costumo dizer que cheguei à Londres vitoriana e saí, três anos depois, da Swinging London. Coube a mim anunciar pelo serviço brasileiro da BBC a morte emblemática de Sir Winston Churchill no domingo 24 de janeiro de 1965, aos 90 anos.






No Rio, um recomeço na revista Manchete • Voltei para o Brasil em meados de 1965 casado com uma carioca. Ela começou a mandar na minha vida, eu deixei. Empurrou-me para o exame do Itamaraty, acho que seu sonho era ser embaixatriz. Fui reprovado, eu não me via como um diplomata a serviço de uma ditadura militar. Voltei a ser o que era desde os dezesseis anos: jornalista. Narceu de Almeida, meu amigo de noitadas de jazz em Londres, se tornara chefe da sucursal da Manchete em Paris. Em visita ao Rio, levou-me a almoçar com os Bloch na redação da revista em Frei Caneca.  Comecei em meados de novembro como repórter especial da própria Manchete. Inquieto e cheio de ideias, logo passei a ocupar espaço. Sugeri a publicação dos Cadernos de Jornalismo, que editava com Arnaldo Niskier e Zevi Ghivelder. Tornei-me o responsável jornalístico pela parceria de Manchete com o Ibope, iniciada com a contrapartida brasileira do famoso relatório Kinsey sobre o Comportamento Sexual do Homem (1948) e da Mulher (1953). Virei também o redator encarregado de “furar” a Realidade, a nova revista da Abril lançada em 1966. A prática começou quando Paris-Match publicou uma reportagem de capa fascinante sobre o primeiro ano de vida do bebê. Tentamos comprar a matéria, mas a Realidade chegou antes. Fui designado então para “reconstituir” a matéria em nosso quintal, com um trunfo imbatível: o livro da Bloch A vida do bebê, do dr Rinaldo De Lamare, verdadeira bíblia de toda jovem gestante. Com 800 páginas ricamente ilustradas, o livro vendeu mais de cinco milhões de exemplares e sobreviveu à Bloch, com sucessivas edições ao longo do novo milênio. Sob a orientação do grande pediatra, montei uma matéria interessante e visualmente atraente. A capa da revista, lançada duas semanas antes da Realidade, foi um sucesso: um bebezinho rechonchudo de um ano, em suas primeiras tentativas de ficar de pé, e por um feliz acaso sobrinho-neto de Adolpho Bloch. Com um detalhe bem familiar: circuncidado. 
Para carrear publicidade de multinacionais, Manchete publicou uma série de matérias sobre os principais países investidores no Brasil. Fiz uma bela reportagem de 30 páginas sobre a Alemanha e outra sobre a Suíça. Entreguei em mãos um exemplar dessa edição para o embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher, na Casa da Suíça no Rio, em 1966. Bucher seria sequestrado em 7 de dezembro de 1970 por uma facção guerrilheira liderada por Carlos Lamarca e libertado em 16 de janeiro de 1971 em troca de 70 prisioneiros políticos. A partir daí as embaixadas abriram mão da doce vida carioca e optaram pela segurança da remota Brasília.





Tarimbado, ma non tropo... • Apesar dos 30 anos de vida e 14 de carreira, eu ainda guardava certa ingenuidade. Isso ficou flagrante quando tive o privilégio raro de compartilhar o mesmo metro cúbico de ar com Gina Lollobrigida em seu apartamento no Copacabana Palace, no Carnaval de 1967, onde me recebeu para uma entrevista exclusiva. Foi antes do baile famoso do Copa, ela já vestia sua sugestiva fantasia de cortesã da Belle Époque. Aos 39 anos, a Lollô estava no auge da beleza.
Havia um intérprete disponível, mas dispensei os seus serviços. A certa altura, buscando impressionar, mas contaminado ainda por aquela idiotia intelectualoide típica dos anos 60, pedi a Gina sua opinião sobre “il problema sessuale”
Com um sorriso irônico, a diva me colocou no devido lugar:
Problema sessuale? Non lo so, il sesso per me non è un problema. Forse lo sarebbe per lei? (Problema sexual? Não sei, o sexo para mim não é um problema. Talvez seja para você?)
Guardo do encontro nossa foto, eu o repórter de terno e gravata com as ferramentas do ofício.  Como 57 anos passam rápido... 







Veja: a revista certa na hora errada • Em março de 1968, fui convidado para trabalhar na revista Veja, a semanal de texto da Abril. A Manchete não cobriu a proposta, mudei-me para São Paulo. Com sua fúria eslava, Adolpho Bloch saiu me xingando de traidor pelos corredores. Publicar a versão brasileira da Time era uma obsessão de Victor Civita, nascido em Nova York, então com 61 anos. Uma das editoras mais sólidas do país, a Abril canalizou todos os seus recursos para a operação. Pegou o expediente da Time e preencheu todos os escaninhos com os melhores profissionais da praça. A foto histórica do número inaugural mostra uma equipe de peso. Na primeira fila, eu, barbudo, ar vigilante, na extrema esquerda; ao centro, [Demétrio] Mino Carta ensaia seu olhar de galã. Só havia uma diferença nessa história: fundada em 1923, Time crescera organicamente ao longo de 45 anos, no maior país do mundo, através de crises históricas como o Crack da Bolsa, a depressão econômica, a 2ª Guerra, a Guerra Fria, a turbulência dos movimentos igualitários como Women’s Lib, Black Power, Gay Pride, a contestação universitária e a convulsão maior da Guerra do Vietnã. Quatro editores respondiam ao Mino pelo “bolo” da revista, coube-me logo a fatia da cereja, a de Artes e Espetáculos, numa época de intensa efervescência cultural. O problema foi que Mino já havia preenchido os cargos de meus subeditores, pelos critérios os mais bizarros:  Paulo Cotrim cuidava da música popular por ter sido dono do João Sebastião Bar, o templo paulistano da bossa nova; Paulo Mendonça, um crítico da antiga, era o editor de teatro, pertencia à família Mesquita, que acolhera o pai de Mino, jornalista, quando chegou ao Brasil; Leo Gilson Ribeiro, medalhado em letras germânicas pela Universidade de Heidelberg, escrevia teses ao invés de textos. Nenhum deles jamais trabalhara como jornalista escrevendo para o grande público em jornal ou revista. O único que pude escolher, para a editoria de cinema, foi Geraldo Mayrink, considerado um dos melhores textos da nossa imprensa. Seu relato para a Veja sobre a morte da atriz Sharon Tate foi brilhante, escrito na forma de roteiro cinematográfico. Mas todas essas dificuldades estruturais e culturais não influíram no fracasso inicial da Veja e sim o fato de que, concebida como uma revista política, ela se viu proibida de preencher sua vocação, apenas três meses depois do seu lançamento, pela edição do AI-5, em 13 de dezembro de 1968, que cassou toda a liberdade de expressão no país.








O homem invisível dos Anos de Chumbo • No auge da Revolução Cultural, sugeri à Bloch um livro que fundisse a biografia de Mao Tsé-tung com a história da China comunista. Alberto Dines, o intelectual da família (era casado com uma sobrinha de Adolpho), ficou tão entusiasmado com o projeto que me deu um adiantamento de mil dólares e colocou à minha disposição as sucursais internacionais, que me forneceram uma montanha de livros, na época a China era um dos temas favoritos das editoras do mundo inteiro. Nas brechas da reportagem – e num mês de férias que dediquei exclusivamente ao livro – escrevi Mao e a China, um volume robusto de 502 gramas e 374 páginas. Quando deixei a Manchete pela Veja, cinco mil exemplares já impressos ocupavam um bom espaço na gráfica de Parada de Lucas. Em represália à minha saída, Adolpho se recusava a lançar o livro, mas o bom senso comercial o fez repassa-lo para outra editora. Em concorrida noite de autógrafos, Mao e a China foi lançado na segunda-feira, 9 de dezembro de 1968 (foto). Na sexta-feira 13 era decretado o AI-5. Mais inoportuno do que a Veja, foi o livro errado na hora errada. Mao e a China era uma declaração de amor ao comunismo chinês. O livro, uma incitação à luta armada, passou a aparecer menos nas vitrinas das livrarias do que nas exposições de “material subversivo apreendido pelo exército”. Quando o guerrilheiro Carlos Lamarca morreu fuzilado em 1971, no sertão da Bahia, os jornais do país inteiro publicaram trechos de suas cartas para a companheira Iara Iavelberg. “12 de julho: Lendo Mao e a China, de Roberto Muggiati, me impressiono cada vez mais em tudo e vejo a necessidade urgente da Revolução Cultural dos quadros de vanguarda.” Mao e a China foi o último livro que Lamarca leu. Estranhamente, em momento algum a ditadura veio bater à minha porta. Com um forte sentimento de rejeição, autointitulei-me O Homem Invisível dos Anos de Chumbo. Só tempos depois matei a charada. Em 1969 voltei para a Manchete e para o Rio. Tivesse ficado em São Paulo, a coisa seria bem diferente. Num documentário sobre Vladimir Herzog, vi colegas meus da Veja e da Realidade – ideologicamente autênticos sacristães comparados a mim – que foram presos e torturados nos porões do DOI-CODI em São Paulo. Eu tinha tudo a ver com Vlado: nascemos no mesmo ano e, quando deixei o Serviço Brasileiro da BBC em Londres, em 1965, ele foi ocupar a minha vaga. A volta para o “balneário da República” – quem diria? – salvou a minha vida.





Muggi das crises e seus discípulos: a Manchete no apogeu • Esta foto da redação da Manchete em 1977 reproduz, por uma feliz coincidência, o afresco famoso de Da Vinci, com uma pequena variação: sentados, não, mas eretos, como cabia àquela brava equipe. A partir da esquerda: o impagável secretário de redação, Alberto de Carvalho, alma secreta da revista, que me apelidou de Muggi das Crises; o redator Ivan Alves, o Pato Rouco, que nos Anos de Chumbo escapou da prisão e tortura indo para a Sucursal de Paris (como Roberto Marinho, Adolpho Bloch protegia os “seus comunistas”); Wilson Cunha, chefe de redação e cinéfilo, que saiu depois para a Rede Manchete e as TV Globos da vida; o crítico de arte Flávio de Aquino; este que vos escreve, que carregava uma cruz por semana; Heloneida Studard, escritora e líder feminista; R. Magalhães Jr., redator e imortal, um baixinho duro de lidar; Wilson Passos, o grande chefe de paginação da Manchete, que desenhou a revista dos anos 50 até a falência em 2000; Argemiro Ferreira, redator e líder sindical; Pedro Guimarães, diagramador, o primeiro a nos deixar, dias antes da edição de Carnaval de 1980; Ney Bianchi (de Almeida), que cobria Copas e Olimpíadas e depois encontrou o filão místico: desvendou os mistérios do Dr. Fritz e tornou-se interlocutor exclusivo de Dona Neila Alkmin; Carlos Heitor Cony, romancista, escritor escalado para as grandes coberturas de Manchete, como a visita do Papa (veio com o Sumo no mesmo avião), o casamento da Princesa Diana e ghost writer do lendário vidente cego Allan Richard Way; e o redator Irineu Guimarães, que foi seminarista em Marselha e trabalhou no prestigioso Le Monde.
Treze diante da mesa. Um reparo: entre meu ombro direito e a cabeça do Flávio de Aquino aparece o contínuo Sammy Davis Jr. Só numa empresa como a Bloch o contínuo tinha acesso direto ao dono. Sammy vivia dizendo a Adolpho que iria conseguir para ele a casa que ficava ao lado do segundo prédio. Conseguiu. Adolpho comprou e demoliu a casa da senhorinha e acrescentou assim a terceira fatia da fachada monumental do Niemeyer para abrigar parte da Rede Manchete. Sammy sumiu do mapa, ninguém soube se levou o seu...




             
Champanhe em tête-à-tête com Elis • Convidado para cobrir a Noite Brasileira do Festival de Montreux em 1979, tive o privilégio de fazer a viagem do Rio até Genebra com Hermeto e sua banda completa. E mais, o convite para tomar champanhe com Elis depois da apresentação, no Bar des Musiciens, enquanto seu marido, Cesar Camargo Mariano, tocava numa jam session com os gringos. A primazia me foi concedida pelo produtor Marcos Mazzola, que capitaneava a equipe da WEA, e refletia o alto prestígio da revista Manchete. A Noite Brasileira teve tanta procura que a organização de Montreux escalou um show extra naquela tarde de sexta-feira. Nos dois espetáculos, Elis abriu para Hermeto, com seu grupo estrelado (o marido como tecladista e maestro) e ela mesma com um figurino vamp, top e vestido roxo e vermelho cravejados de strass e uma imensa flor nos cabelos à Billie Holiday. Ao final, com um vestidinho estampado, Elis juntou-se a Hermeto para um duo, só piano e canto, uma eclosão de gênios num encontro mágico, doze minutos de Asa Branca, Garota de Ipanema e Corcovado. Foi com esse vestido simples que Elis desceu comigo à cave dos músicos. Barbudo, confuso, eu não estava muito bem nessa época, apesar do sucesso na Manchete. Devo ter alugado a pobre da Elis com minhas lamúrias a crise dos 40 anos, mas o papo rolou com a ajuda das borbulhas e de uma Elis muito serena. Quando ela morreu, dois anos depois, pensei: “Mas o suicida era eu...” Caminhando para o hotel pela Avenue du Casino, fui arrancado dos meus devaneios por um carro cheio de jornalistas da TV Globo. Me zoaram: “Coitadinho do Bloch, indo a pé pra casa...” Mal podiam imaginar que eu desfrutava um momento mágico, flanando pelas ruas vazias de Montreux numa doce noite de verão depois de um encontro inesquecível com Elis Regina.






Dona do Washington Post sofre apagão na Manchete – Em 1986, editor da revista Manchete, ajudei Adolpho Bloch a receber a dona do Washington Post, que visitava o Brasil. Ms. Katherine Graham se mostrou dócil e simpática, mas senti uma firmeza formidável por trás daquela aparência enganosa de avozinha do Meio-Oeste americano. O encontro foi na espaçosa sala de visitas do décimo andar do 804, com sucos e biscoitos – era verão e fazia muito calor no Rio, um chá seria totalmente fora de questão. Katherine Graham tinha 69 anos. O mundo mudara muito desde que seu jornal levara Nixon à renúncia no Caso Watergate. O ex-canastrão de direita Ronald Reagan presidia os EUA, a Dama de Ferro Margaret Thatcher mandava na Grã-Bretanha, Gorbachev conduzia o Império Soviético para o seu colapso. Aqui reinava Sarney, no segundo ano do seu desastroso governo. 
Voltando à Manchete: para nosso vexame supremo, o bairro do Flamengo sofreu um apagão geral. À luz de velas, prontamente providenciadas por Dona Arminda e seu batalhão de serviçais, ajudei os dois velhinhos a descerem as escadas – Adolpho a dois anos de completar seus “quatre-vingt ans” – e a dona do Washington Post robusta, mas à beira dos setenta – até o majestoso saguão do térreo, abençoado pela escultura gigantesca do Krajcberg.







Por pouco o IRA não explodiu a Abadia no casamento do Príncipe Andrew • Em 1986, minha mulher e fotógrafa Lena e eu esticamos a viagem ao Festival de Jazz de Montreux até Londres para cobrir o casamento real do Príncipe Andrew com Sarah Ferguson. Para comparecer à cerimônia na Abadia de Westminster, precisei alugar fraque e cartola, quem pagou as 150 libras foi nossa correspondente em Londres, Marina Wodtke, até hoje não foi reembolsada pela Bloch. Só dias depois ficamos sabendo que a Abadia, no auge do terrorismo do IRA (o Exército Revolucionário Irlandês) ia ser explodida. A contraespionagem britânica detectou o plano na madrugada da cerimônia e desativou a tempo as bombas já devidamente instaladas nas fendas da imensa catedral de pedra. Um risco mais subjetivo eu corri ao me encontrar a sós no banheiro da Abadia com um saltitante Elton John de fraque cinza-chumbo, amigo de Andrew e Fergie. Na matéria sobre o casamento, escrevi que, com amizades exóticas como aquela, o casamento não iria muito longe. Não só estava certo, como Andrew, acusado tempos depois de abuso sexual, é hoje um pária entre os Windsor, destituído de todos os títulos e patentes militares.




Adolpho Bloch e Lula: um encontro surreal • Antes do segundo turno presidencial em 1989, Fernando Collor de Mello foi convidado a jantar na Manchete. Adolpho Bloch deu uma desculpa esfarrapada e não compareceu, Jaquito e Oscar recepcionaram o futuro presidente. A Bloch teve uma mãozinha em sua eleição. Collor concorreu por uma legenda menor, o Partido da Reconstrução Nacional (PRN), antes Partido da Juventude, fundado por Daniel Tourinho, que trabalhou na área de RH da Bloch entre 1974 e 1985, quando saiu para fundar o PJ. 
Num gesto insólito, na véspera do segundo turno, sábado, 16 de dezembro, Adolpho ofereceu no Russell um almoço a Luís Inácio Lula da Silva. Lula e comitiva vieram naquela manhã de São Paulo num jatinho. Anna Bentes, mulher de Adolpho, acolheu Lula com beijinhos e abraços (eu apareço na foto de papagaio-de-pirata). Adolpho recebeu calorosamente o líder sindicalista. Fez questão que visitasse o escritório do ex-Presidente Juscelino Kubitschek, que havia se tornado uma peça de museu depois da morte de JK em 1976. Durante o almoço, Adolpho desconcertou Lula a certa altura com seu linguajar críptico (e típico), que só os mais próximos conseguiam captar:
– Iele é mais moço que eu, o senhor é capaz de imaginar uma coisa dessas?
E Lula, atônito: – Ele quem, seu Adolpho?
–  A porra do sogro! 
Referia-se ao general Abraham Ramiro Bentes, pai de Anna Bentes, que era quatro anos mais moço do que Adolpho.
Lula não emplacou a presidência. Pena: teria feito com Adolpho uma dobradinha genial, igual àquela que Adolpho fez com o governador Leonel Brizola.






Voltando às origens, 125 anos depois • Numa viagem a Curitiba em 2014 fui visitar o local onde existiu no final do século 19 a famosa colônia anarquista Cecília. Não fosse ela e eu não estaria no Brasil. Meu bisavô Ernesto Muggiati, de Stradella, frequentava a Casa del Popolo em Milão e ouvia as pregações anarco-sindicalistas de Giovanni Rossi, que conseguiu de D. Pedro II terras nos arredores de Palmeira, no Paraná, para instalar ali uma pioneira comunidade anarquista. Meu bisavô veio antes dos colonos, com a mulher, Maria Quaroni, dois filhos e duas filhas, no paquete francês Hindoustan.
No Rio, esbarrou com uma quarentena de febre amarela. Descobriu na hora o “jeitinho brasileiro” e embarcou com a família no vapor Campos, com destino a Paranaguá. O Ernesto, que se convidou, era um dos muitos “apressadinhos” com o DNA dos Muggiati (eu me incluo no lote). Morreu de febre amarela ao chegar a Paranaguá, em 3 de março de 1889, e foi enterrado na Ilha das Cobras. A viúva subiu a serra com os filhos e se instalou em Curitiba. Um deles, Diogo Muggiati, de engraxate e sapateiro tornou-se, com o irmão, um rico industrial de calçados. Morreu de tuberculose aos 34 anos quando fazia tratamento num hospital de Pavia, em 1911. Devo a ele a nacionalidade italiana que passei para minha mulher Lena e meus filhos Roberto e Natasha, que moram respectivamente em Edimburgo e Berlim. Quanto à Colônia Cecília, só existiu de 1890 a 1893. Formada por intelectuais urbanos, sem nenhuma experiência agrícola, sofreu ainda a hostilidade da comunidade polonesa vizinha, fortemente católica, do clero e das autoridades locais, que sufocaram a colônia. Os Gattai – cujo patriarca se chamava Ernesto – também vieram para a Cecília e se fixaram depois em São Paulo. É do título do livro de Zélia Gattai que tiro o comentário irônico sobre a dubiedade da empreitada: Anarquistas graças a Deus...



 



O jornalismo nos tempos da goma arábica.

Adolescente, cabeça nas nuvens, viajando nos livros da coleção Terramarear, eu galopava com Winnetou pelas pradarias de búfalos da América, singrava os Mares do Sul com o corsário Sandokan (o Tigre da Malásia), enfrentava os perigos da Amazônia Profunda com os náufragos do igapó. Ao cair num buraco sem fundo na jângal, Tarzan se vê lutando na grande arena do império romano, o Coliseu. Algo parecido abriu para mim o mundo de aventuras que vivo intensamente até hoje desde que transpus os umbrais do casarão verde na Praça Carlos Gomes em 15 de março de 1954, uma segunda-feira, para minha primeira noite de trabalho na Gazeta do Povo de Curitiba. Não tinha, como o imperador Júlio César, um vidente a me alertar “Cuidado com os idos de março!” Só muito tempo depois vim a saber que “os idos de março” eram precisamente o dia 15, uma data-chave no calendário romano. César não deu ouvidos ao adivinho e morreu apunhalado naquele dia exato, em 44 a.C. Eu não sofreria punhaladas fatais, como as de César: mais sutis e traiçoeiras, elas exerceriam um efeito moral e emocional que, absorvido ao longo destes 70 anos, me ensinou a conviver melhor com a besta humana.

Toda manhã, como o leite e o pão, nosso jornal era entregue nas casas dos assinantes e nas bancas. Em termos de tecnologia, estávamos mais próximos da prensa de Gutemberg, de 500 anos antes, do que da mídia globalizada de McLuhan, apenas dez anos à nossa frente. Ainda não tínhamos teletipo e as notícias das agências caíam literalmente do céu: um velho senhor entalado num cubículo, a cabeça curvada por enormes fones de ouvido, recebia os últimos despachos em código Morse e os decodificava, teclando numa velha Remington. Por coincidência, o telegrafista Vergès era um kardecista convicto e tudo aquilo me parecia uma operação espírita. O tipo de texto que me chegava às mãos era puro telegrafês: "DEPUTADO DIX-HUIT ROSADO AVIONOU DF APRESENTAR PROJETO PALÁCIO TIRADENTES." Eu tinha de colocar a notícia num português legível e era mais rápido colar o despacho do Vergès numa lauda (na verdade, uma apara de bobina, áspera como lixa e porosa como mata-borrão) e corrigir à caneta-tinteiro (as esferográficas só seriam comercializadas no Brasil nos anos 60). Tesoura, pincel e goma arábica ainda eram ferramentas preciosas do nosso ofício. Quem tinha de decifrar todas essas charadas era um pobre revisor: com a clássica pala verde na testa, ocupava um mezanino, espécie de purgatório entre a redação (no primeiro andar) e a oficina (no térreo). Num pequeno galpão ao lado da casa, as fotos eram transformadas em clichês por um ex-soldado russo, Konstantin Tchernovaloff, que lutara contra os comunistas no exército branco e parecia um cossaco diabólico em meio aos clarões do seu arco voltaico. Os clichês seguiam para a oficina, que envolvia com seus vapores de chumbo a bateria de linotipistas disposta perto das páginas fixadas por parafusos-borboletas em molduras de ferro na prensa plana obsoleta que imprimia nossas verdades absolutas de todo dia.

Que tipo de notícias oferecia o mundo em 1954? A Guerra Fria, a Bomba H, a caça às bruxas e a segregação racial nos EUA, a derrota militar da França na Indochina, as lutas de independência anticoloniais na África – se levássemos a sério as manchetes viveríamos à beira do Apocalipse. No Brasil, 1954 foi um ano trágico. A crise política, depois do atentado da Rua Tonelero contra Carlos Lacerda, culminou com o suicídio do presidente Getúlio Vargas, em 24 de agosto, no Palácio do Catete. Naquele dia, fui recebido no Colégio Estadual do Paraná pelos gritos dos colegas: "O Getúlio morreu!" Um instinto animal me fez correr para a redação da Gazeta, onde colheria os louros da minha primeira edição extra. Em contrapartida, descobri que o jornalista é escravo da notícia, um ser atrelado à vida e à morte dos outros. (Anos depois, editor da revista Manchete, quando morreu JK, eu passei 27 horas seguidas na redação, com raros intervalos para ir ao banheiro, – os sanduíches eram mordiscados entre a definição das pautas e o fechamento dos leiautes.)

Daqueles primeiros anos, guardo uma ternura especial pela fauna da Gazeta. Dicesar Plaisant – o decano, na flor dos 55 anos – era nosso gramático-mor (“Nunca escreva: ‘João, morreu’. Com a vírgula separando o sujeito do predicado, ele nunca vai morrer!”); o médico Aloysio Blasi assinava a coluna social; o repórter policial Luzimar Dionísio, o “Meio Quilo” – elementar, meu caro – trabalhava na polícia. Um protético de nobre família, o Mário de Mello Leitão, escrevia crônicas. Um dia, recebeu um telefonema do aeroporto, era Fernando Sabino que o convocava a incorporar-se à caravana eleitoral do general Juarez Távora, que disputava a Presidência com JK. Com a roupa do corpo, sem levar sequer uma escova de dentes ou uma lâmina gilete, o Mário embarcou num DC-3 numa epopeia cívico-etílica de três meses por lugares do Brasil que jamais se lembraria de ter passado.
A força da redação era um grupo de jovens estudantes de advocacia: o Newton Stadler de Souza, o Nacim Bacila Neto, o Daquino Borges, negro e manco, que depois se tornaria editor do jornal; e Orlando Soares Carbonar, que entraria para a diplomacia e encerraria sua carreira brilhante em nossa mais bela embaixada, o Palazzo Doria Pamphilli, em Roma. Na ala caçula, eu me enturmava com o Carlos Augusto Cavalcanti de Albuquerque e colegas de outros jornais, o Aderbal Fortes de Sá Júnior e o Sylvio Back, que se tornaria o cineasta mais polêmico do Brasil. Munidos de armas mágicas como o líde e o sublíde, iniciados nos segredos da pirâmide invertida, íamos revolucionar a imprensa.
A Gazeta me serviu como um trampolim para outros voos. Em 1960, bolsista do governo francês, estudei no Centre de Formation des Journalistes em Paris por dois anos. A seguir, trabalhei três anos em Londres, no Serviço Brasileiro da BBC. Em 1965, de volta ao Brasil, entrei na Bloch, onde seria o editor que mais durou na chefia da Manchete. De 1968 a 1969, fui o editor de artes e espetáculos da Veja em São Paulo, na sua conturbada estreia no mercado editorial. Numa profissão de alta rotatividade, tive relativamente poucos patrões: a Gazeta, a BBC, a Abril e a Bloch, onde passei 33 anos, até a falência da em¬¬presa, em 2000. De lá para cá, conheci o melhor patrão de todos: eu mesmo, em regime de frila (a palavra free lancer remonta aos lanceiros mercenários da Idade Média e foi cunhada no livro juvenil Ivanhoé, de Walter Scott).

Todo um mundo mudou nas comunicações nestes 70 anos. Não cabe inventariar aqui os avanços na área da palavra e da imagem. Tecnologia à parte, porém, pouca coisa mudou. A mídia se compartimentou, o nível de especialização dos profissionais e das publicações é espantoso, mas os fundamentos persistem. Quando me perguntam o que é preciso para ser um bom jornalista, eu respondo: curiosidade. Se você não for curioso, estupidamente curioso, vá procurar outro emprego. Curiosidade pela vida, pelas pessoas e pelos acontecimentos, mas, também, um certo desapego à vida organizada, programada. “Era preciso, mesmo no meio da noite, cortar seus laços, fechar suas gavetas, esvaziar seu quarto de si mesmo, de suas fotos, de seus livros e deixar tudo para trás, menos visível do que um fantasma. Era preciso, às vezes, em plena noite, se desvencilhar dos braços de uma jovem...” Assim Saint-Exupéry descreve o piloto do correio aéreo em 1927, nos tempos heroicos da aviação. A descrição vale também para o repórter, para o jornalista que, dividido entre o altruísmo e o individualismo, circulando num mundo em que o caos é a norma, exerce a função social suprema de ser – 24 horas por dia – o Historiador do Instante.

* Fotos reproduzidas do acervo pessoal de Roberto Muggiati

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Memórias: Aqueles dias nublados

 


por José Emerson Monteiro Lacerda, do blog Cogitações Diversas (*)

A parecença com o momento de agora fica por conta da dominação que sacode a área externa do mundo convulso em suas práticas de guerra. Naquela fase, em 1966, a bola da vez prenunciava escalada vietnamita de largas proporções, o que se verificou nos princípios da década de 70. O Brasil vivia o desânimo libertário, pois perdia espaço, nas ruas, praças, escolas, o ímpeto de transformação democrática, a sumir nos calabouços e na clandestinidade.

Em Crato, achávamo-nos à frente do Grémio Farias Brito, do Colégio Diocesano. Encenávamos a peça Um chalé à beira da estrada, sob a direção de Alzir Oliveira, nosso professor de História e amigo dos alunos. Declamávamos poemas modernos em pontos diversos da cidade, através do Jogral Pasárgada, formado de sete componentes do colégio: Zadir, Pedro Antônio, Gilva, Eros Volúsia, Clenilson, Bebeto e eu.

Resolvemos, então, publicar um jornal mural, O Bacamarte, depois ampliado em um órgão mimeografado (à tinta), o Nossa Opinião, do qual chegaríamos a tirar até 100 cópias e ficou só nos dois primeiros números, abafado logo no seu nascedouro pelas ameaças daquele trágico período político.

Nesse mandato, estivemos, ao lado de Aglézio de Brito, presidente da União dos Estudantes do Crato, e de José Terto, presidente do Grêmio do Colégio Estadual, em um congresso do Centro dos Estudantes Secundaristas do Ceará, em Fortaleza, realizado sob fortes conotações militares repressivas.

Espírito de contestação impunha atitudes rebeldes. À noite, após reuniões de acalorados debates e transmissão de informações desencontradas, saíamos, nas madrugadas, a pichar as paredes das ruas centrais com dizeres relativos ao momento de expectativa, fogo consumidor daquele turno de existência. 

É um tempo de guerra, é um tempo sem sol. É um tempo de guerra, é um tempo sem sol. Sem sol, sem sol, tem dó. Sem sol, sem sol, tem dó, eram alguns dos versos que cantávamos, em segundo plano, característica das apresentações do Jogral, enquanto Pedro Antônio, à frente, declamava em altos brados: - Só quem não sabe das coisas é um homem capaz de rir! – seguido de outras palavras da canção Tempo de guerra, de Edu Lobo.

Esses são alguns quadros da época em que partilhamos das experiências culturais de um Crato fervilhante de jovens promessas e movimentações apreensivas, lembranças que retornaram esta semana, ao rever José Esmeraldo Gonçalves, velho amigo desse tempo, quando juntos elaboramos o Nossa Opinião. Ele que veio ao Cariri na ocasião do aniversário de 90 anos de sua genitora, dona Maria La-Salette Esmeraldo. Mora no Rio de Janeiro, onde trabalha na revista Caras (**). Dispõe de raros intervalos semelhantes a este de voltar à Região; o promete, no entanto, repetir, noutras oportunidades. (Texto de 2003). 

(*) José Emerson Monteiro Lacerda é escritor, fotógrafo, advogado e ewcreve no  blog https://monteiroemerson.blogspot.com

(**) Como observado, esse texto é de 2003. O jornalista cratense José Esmeraldo Gonçalves deixou a Editora Abril em 2014. Desde então, editou revistas de instituições e empresas, livros e folders corporativos.   

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Geraldo Matheus Torloni (1930-2023) : a Arte como destino

 

Geraldo Matheus Torloni.
Foto/Reprodução Instagram

Em uma mensagem sobre o falecimento do seu pai na tarde de sexta-feira, 29, a atriz Christiane Torloni escreveu no Instagram: 

- Despeço-me do meu amado pai, Geraldo Matheus, grata pela linda jornada que trilhamos juntos. Grata pela Arte, Ética e Amor com que ele me abençoou. E como diz Oscar Wilde: 'O mistério do Amor é maior do que o mistério da Morte'”. 


Geraldo Maheus Torloni tinha 93 anos e, de fato, dedicou sua vida à arte. Foi autor, ator, diretor, produtor e administrador teatral. 

Pode-se dizer que foi um roteiro casual e não escrito que o levou à Manchete. Em meados dos anos 1970, Adolpho Bloch foi nomeado diretor da Fundação de Teatros do Estado do Rio de Janeiro. Assumiu o cargo disposto a não fazer figuração. Ao fim da administração, entre outras realizações, havia reformado o Theatro Municipal, instalado uma moderna Central Técnica de Produções Teatrais em apoio aos espetáculos e construído o Teatro Villa-Lobos. No campo artístico, montou uma programação  intensa, Foram 23 óperas e balés clássicos. Um destaque histórico foi a encenação da Traviata, sob direção do cineasta italiano e Franco Zefirelli. 

Geraldo Matheus assumiu esse desafio ao lado do Bloch que, no seu livro biográfico O Pilão, fez um registro à competência e dedicação do amigo.  Ao fim do seu mandato à frente da Funterj,  Adolpho o convidou para dirigir o teatro da Manchete instalado na sede da empresa, na Rua do Russell. Em pouco tempo, Geraldo também assumiu funções administrativas na Bloch e idealizou mudanças para agilizar o fluxo de trabalho nos vários setores da editora. É dessa fase que muitos colegas guardarão lembranças da convivência com ele. Era conciliador, educado e objetivo na execução das mais diversas missões exigidas por duas dezenas de revistas. Quando a Bloch instalou a Rede Manchete, Geraldo Matheus foi chmado a colaborar, mais uma vez, em um projeto desafiador.  Entre outras ações, coordenou  uma linha de shows onde somou sua experiência artística e talento de administrador à teledramaturgia da nova rede.  A partir do começo dos anos 1990, o Grupo Bloch entrou em crise, os problemas se agravaram e um turbilhão financeiro abateu a Rede Manchete, que foi vendida em 1999. No ano seguinte, em agosto, a Bloch Editores pediu falência. E aí começou a longa e dramática luta dos ex-empregados para receber seus direitos.  Nessa hora difícil, Geraldo Matheus não se omitiu, ao contrário, uniu-se à Comissão do Ex-Empregados da Bloch Editores e participou até recentemente das reivindicações trabalhistas junto à Massa Falida da Bloch Editores.            

Geraldo Matheus formou-se na primeira turma da Escola de Arte Dramática de São Paulo. Ele deixa a mulher, a atriz Monah Delacy, dois filhos, Christiane Torloni e Márcio Torloni, um neto, Leonardo Carvalho, e um bisneto, Lucca Carvalho. Nossos pêsames à família.  

Para os antigos colegas da Bloch, permanecem a admiração, as lembranças da convivência e a saudade do amigo.

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Quase memórias da falência da Bloch Editores (há 23 anos)

Foto Gil Pinheiro 

por José Esmeraldo Gonçalves

2 de agosto de 2000. Há 23 anos, em uma quarta-feira como hoje, os funcionários da Bloch Editores foram obrigados a abandonar às pressas a sede da empresa na Glória. Um oficial de justiça concedeu-lhes apenas alguns minutos para que reunissem seus objetos pessoais e, literalmente, fossem para a rua. No caso, a do Russell. 

A aglomeração no pequeno largo diante do imponente conjunto de três edifícios assinado por Oscar Niemeyer chamava atenção de quem passava de carro. Formou-se um pequeno engarrafamento, alguns indagavam se havia um incêndio. 

Não. Ninguém gritou fogo, mas a notícia da autofalência da Bloch queimava centenas de carreiras e lançava os mais idosos no desemprego. Aos mais jovens restava enfrentar o sempre difícil mercado de trabalho. No caso de jornalistas, fotógrafos, pessoal do administrativo e gráficos surgia um novo obstáculo: a mídia impressa entrava em grave crise que se agravaria ao longo da primeira década do novo milênio. O meio digital não ofereceria um número de vagas que compensasse a perda de cerca de quatro mil postos em todo o mercado de jornais e revistas do Brasil. 

A Bloch Editores agonizava desde meados dos anos 1990, abalada pela grave crise financeira e adminstrativa da Rede Manchete. Afinal, depois de várias vendas frustradas e desfeitas por falta de pagamento dos compradores, a TV foi vendida em 1999 ao grupo empresarial que fundou a RedeTV (que, na transação, atendia pelo nome fantasia de TV Ômega). 

Um reposicionamento da Revista Manchete nos últimos anos daquela década deu esperança de novo vigor ao braço editorial das revistas impressas da Bloch. Mas era tarde. Imposta pela internet, a acelerada mudança do mercado de revistas já se anuncava em 2000 e em menos de dez anos decretaria o fim de centenas de publicações impressas no Brasil e no mundo. 

A Bloch não resistiu e pediu falência.

Carlos Heitor Cony testemunhou a queda do raio que partiu de vez o futuro da empresa. Ele confessou que só sete anos depois conseguiu descrever um pouco do que sentiu ao ser enxotado naquele fatídico agosto. Seu relato foi publicado na Folha de São Paulo em 2007. Segue-se um pequeno trecho do texto do Cony, que faleceu em 2018. 

- Penso que remeti as impressões todas para a caverna mais funda da memória, mais cedo ou mais tarde conseguirei articular alguma coisa expressando meu espanto, minha tristeza. A decepção de ver um mundo colorido, alegre e despreocupado, depois de uma ruína gradual e dolorosa que já durava dois anos, fechar-se como um túmulo que sepulta fantasmas, alguns mortos (Adolpho Bloch, Justino Martins, Magalhães Jr e outros ainda vivos, nós todos). Sinto em cima de mim o gosto de terra e o cheiro de flores apodrecendo".

Em 2008, como um dos autores da coletânea "Aconteceu na Manchete - as histórias que ninguém contou" (Desiderata), lançado por um grupo de ex-funcionários da Bloch, Cony voltou ao assunto e, entreo outras revelações destacou;: 

- Foi na Manchete que fiz e conservei alguns dos amigos mais queridos. Por ocasião da falência do grupo, eu ocupava o antigo escritório de JK no décimo andar do 804, dava apenas assistência não mais às revistas, mas à diretoria, sofri com Adolpho o trauma das tentativas de venda da TV a outros grupos".

Cony certamente não imaginou que aquele trágico 2 de agosto era apenas o primeiro e sofrido capítulo de um drama que se arrasta até hoje quando a Massa Falida da Bloch Editores completa inacreditáveis 23 anos. 

Não há justiça plena enquanto uma instituição que deveria privilegiar os trabalhadores consome partrimônio, tempo e esperanças ao não restituir todos os legítimos direitos às vítimas da implosão de uma corporação. Massas falidas não pode se eternizar enquanto vidas passam. 

Registre-se que uma parcela majoritária de credores trabalhistas da Bloch recebeu seus valores chamados principais. A estes - seriam quase três mil ex-funcionários da Bloch Editores  e Gráficos Bloch -, a Massa Falida pagou depois três parcelas de juros e correção monetária, mas há quase dez anos interrompeu essa recomposição devida. Por outro lado, ainda há credores trabalhistas habilitados que não receberam seus valores principais. 

A Massa Falida da Bloch Editores foi constituída em 2000. Apesar disso, o atual administrador judicial cita uma lei de 2005 segundo a qual valores referentes a juros só poderão ser pagos após a quitação das dívidas da extinta Bloch com todos os seus credores, trabalhalistas, financeiros, comerciais, institucionais etc. Então a lei retroage? Essa é a pergunta que muitos ex-funcionários fazem. Há outras indagações. No ano passado o síndico da Massa Falida da Bloch Editores informou a procuradores do Estado do Rio de Janeiro que "o ativo da massa falida foi praticamente liquidado, encontrando-se o processo falimentar na fase de pagamento de credores para posterior encerramento". Isso indica que o caixa se esvaziará antes do pagamento dos valores históricos e de juros e correção monetária de todos os credores trabalhistas?

Um bem valioso que pertencia ao extinto Grupo Bloch era o grande prédio da sede em São Paulo. Tal patrimônio teria ido a leilão, mas, em primeira chamada,, em outubro do ano passado, não apareceram potenciais compradores. Não tenho informação se foi arrematado posteriormente. No caso, o valor arrecadado seria, segundo dizem credores trabalhistas, dividido entre as massas falidas da Bloch e da TV Manchete.  Outro item de valor são as obras de arte restantes do acervo da editora. Aparentemente continuam aguardando uma data para leilão. Enquanto isso, custam à MFBloch o aluguel de salas para guarda, seguro etc.

Trabalhei muito anos com Carlos Heitor Cony na Fatos & Fotos, na Fatos e na Manchete, mas não estive no fatídico dia do despejo do prédio da Rua do Russell, que frequentei por longos 17 anos. Saí antes do desfecho da Bloch, não tive motivos para me habilitar a qualquer indenização. Em 1996, o editor e fotógrafo Sergio Zalis, com que eu havia trabalhado na revista Fatos, me convidou para participar da equipe da Caras, no Rio. Deixei a Manchete e me mudei para a Torre do Rio Sul, onde ficava a redação carioca da então recem-lançada revista sediada em São Paulo. Foi uma ótima expriência que durou oito anos. A Caras era fruto de uma parceria da Editora Perfil, argentina, com a Abril. Em 2004, fui demitido após uma discussão com o diretor-geral da Caras. Para minha supresa, no dia seguinte, por indicação de Patricia Hargreaves e Vanessa Cabral, ambas ex-Caras, Edson Rossi, que ao lado de Claudia Giudice, também ex-Caras, planejava o reposicionamento editorial da Contigo, publicação da Editora Abri, me convidou para integrar a sua equipe. Topei e foram, novamente, bons anos, até 2014, quando meu tempo de trabalho fixo em redações se esgotou em parte pela crise, em parte pela minha idade - era veterano demais para os novos tempos.  

Em todos eesses anos distante da Manchete nunca deixei de acompanhar a luta sem fim dos antigos colegas pelos seus direitos. De certa forma, eu estava naquela dramática aglomeração na Rua do Russell. Por fim, lamento que esse post não seja otimista, tanto que vale voltar ao Cony e a uma das frases que ele gostava de repetir.   

- Insisto em ser pessimista por antecipação e cálculo. O que me sobra é lucro''.

domingo, 25 de setembro de 2022

Sou italiano graças ao Senegal • Por Roberto Muggiati

 

Cartão enviado de Dacar, por Diogo Muggiati, em 1911

O Senegal em sua segunda participação numa Copa (se seguir em frente poderá enfrentar o Brasil nas quartas de final) me levou a divagar sobre minha relação com aquele país do oeste africano. Entre velhos papeis da família que dormiam no fundo de uma gaveta, tive um dia minha atenção chamada para um pequeno cartão postal enviado de Dacar por meu avô paterno para minha avó em Curitiba. 

Resumo a história de sua breve vida: com pai mãe, irmão mais velho e duas irmãs deixou a Itália aos doze anos, em 1889, e veio participar do sonho da Colônia Cecília, uma comunidade anarquista que se instalaria nos campos de Palmeira, a cem quilômetros de Curitiba. O sonho virou pesadelo quando o pai morreu de febre amarela ao chegar em Paranaguá. A viúva subiu para Curitiba e, sem meios para criar as crianças, as destinou a famílias locais em cujas casas teriam cama e comida, é claro, ajudando como serviçais, cumprindo pequenas tarefas., Maria Quaroni Muggiati, com os ganhos do trabalho de costureira logo, resgatou os dois filhos e as duas filhas. Os meninos, começando como sapateiros acabaram em pouco tempo donos de uma próspera indústria de calçados.

Meu avô casou com uma italiana nascida já no Brasil e teve cinco filhos, quatro homens e uma mulher. Pouco depois de completar 34 anos, uma doença pulmonar o levou a procurar cura na Itália. O cartão enviado de Dacar em 3 de agosto de 1911 – cuja imagem destaca um embarque de tropas sei lá de que guerra, o Senegal seria colônia francesa até 1960 – descreve as vicissitudes por que passava meu avô Diogo:

 “Acho-me na metade da viagem, pior do que imigrante, devido ao grande número de passageiros que somos não me foi possível passar para a 2ª nem 1ª classe por não haver lugar, minha saúde sempre o mesmo, não tive nenhuma melhora, paz.”

Um mês depois, em 3 de setembro, meu avô morria num hospital de Pavia. 0itenta anos depois, inspirado nessa informação, dei início ao processo de aquisição da cidadania. O consulado italiano no Rio redigiu uma carta em para a prefeitura de Pavia requisitando o atestado de óbito. Através desse documento ficamos sabendo que tinha nascido em Stradella. A certidão de nascimento o dava como Pietro Giuseppe Diego Muggiati, o escriba da imigração, que não gostava de nomes compridos, o reduziu a Diogo Muggiati. 




Juntando toda essa papelada e vertendo os documentos brasileiros para o italiano por um tradutor juramentado, ganhei o passaporte italiano, extensivo a minha mulher e meus dois filhos. Morando no exterior (ele há 14 anos, ela há seis anos), recebem o tratamento condigno de cidadãos da comunidade europeia, que jamais receberiam como brasileiros.

• Em outubro de 1960, a caminho de uma bolsa de estudos em Paris, na escala do voo São Paulo-Lisboa eu teria no aeroporto de Dacar o meu gostinho do Senegal – ou pior, meu cheirinho, o bodum descomunal de um punhado de burocratas soviéticos com ternos grossos, pulôveres, camisas, camisetas e ceroulas, vendendo seu peixe em longas viagens ao redor do mundo.

• Em Paris, estudando no Centre de Formation des Journalistes, ao voltar certas noites para a Cité Universitaire, comia algo no bistrô La Petite Source, no Carrefour de l’Odéon, muitas vezes na companhia do colega Cissé, do Senegal, que me assediava sedento de notícias do Brasil. Quando nos conhecemos olhou para mim como se eu fosse um ser extraterreno e me perguntou, solene:

– Monsieur Muggiatí, est-ce que tu connais vraiment le Roi Pelé?

Na sua visão, Sua Majestade Edson Arantes do Nascimento reinava supremo sobre um vasto império tropical cheio de súditos felizes. Curiosamente, eu acabara de assistir em 13 de junho, no Parc des Princes, à fabulosa vitória do Santos de Pelé sobre o Racing por 5x4 no Torneio de Paris, diante de de 40 mil pessoas extasiadas. 

Outra das fantasias do bom Cissé eram as brasileiras:

– Ah, les femmes brésiliennes... Ce que je ferais pour les connaître!

• Dezoito anos depois, em outra escala no aeroporto de Dacar, no voo Rio-Genebra a caminho do Festival de Jazz de Montreux, com Hermeto Pascoal e sua banda, conversei com o saxofonista Nivaldo Ornelas que, ao saber que eu era da Manchete, me inquiriu exaustivamente sobre seu conterrâneo Argemiro Ferreira, que trabalhava na revista, contrariando a frase famosa que Nelson Rodrigues atribuía a Otto Lara Resende: “O mineiro só é solidário no câncer.”

• Em tempo: um dos senegaleses mais célebres foi Léopold Sédar Senghor, seu primeiro Presidente da República, criador – com o martiniquense Aimé Cesaire – da palavra e do conceito da negritude.



quarta-feira, 29 de junho de 2022

Rio, 1959: ouvindo Sarah Vaughan com Danuza • Por Roberto Muggiati

O último baile do Rio de Janeiro como capital da república.Na mesa principal, Danuza, Viniciu e Samuel Wainer. Assinalado pela sete, o autor dessas memórias. Foto Arquivo Pessoal 

Do Galeão Velho você  podia esperar tudo. Marlene Dietrich embarcando e Sarah Vaughan desembarcando, a ariana e a afroamericana trocando olhares cáusticos. Marlene acabara de fazer uma temporada no Golden Room do Copacabana Palace. Sarah faria sua estreia brasileira na noite de 6 de agosto de 1959 no Fred’s, a boate da moda que ficava em cima de um posto de gasolina na esquina da Avenida Atlântica com Princesa Isabel, onde depois seria construído o Hotel Méridien. Eu estava lá. 

Explico: curitibano chique passava as férias de inverno no Rio, esticava a temporada até o início de agosto para comparecer ao GP Brasil no hipódromo da Gávea. (O Jockey Club do Paraná tinha intercâmbio com o Jockey Club Brasileiro.) Depois da corrida de gala do domingo – em que os chapéus das dondocas predominavam sobre os cavalos – havia na terça-feira uma Nuit de Longchamps, com traje a rigor, foi assim que assisti ao vivo aquela beleza da Julie London na sua fase de ouro, cantando Cry Me a River.

Apesar de meus 21 anos, estava longe de ser um “foca”, trabalhava na Gazeta do Povo desde os dezesseis. Mas não tinha cacife para competir com jornalistas cariocas como Sílvio Túlio Cardoso (tido como “ghost” do livro Jazz Panorama de Jorginho Guinle), Sérgio Porto (também autor de um livro sobre jazz) e principalmente Vinicius de Moraes (parceiro de Tom Jobim, com o filme recém-lançado Orfeu Negro recheado de suas músicas). Quando cheguei finalmente à diva, no seu minúsculo camarim, numa abordagem desastrada, ela fez uma cara feia e me mandou passear. Foi o primeiro de uma série de episódios que me ensinariam muito sobre o ressentimento dos músicos negros diante do que eles consideravam a atitude “folgada” e desrespeitosa dos branquelos.

A mesa principal, com cerca de vinte assentos, era capitaneada pelo homem mais importante do Rio de Janeiro na época, Samuel Wainer, dono do jornal Última Hora. Tenho a cópia de uma foto do desaparecido arquivo da revista Manchete. Em primeiro plano, sentados, a partir da esquerda, aparecem a bela Danuza Leão, mulher de Wainer, na plenitude dos seus 25 anos; depois de um casal, Vinicius de Moraes e Samuel Wainer conversam diante de um enorme balde de gelo, o poetinha empunhando um cigarro quase na cara de Samuel. De pé, com um de seus fabulosos colares de pérolas, a socialite Josefina Jordan conversa com alguém que pode ser o Didu de Souza Campos. Casais rodam pela pista com uma orquestra ao fundo. Também no fundo, ao centro da foto, assinalado pela seta vermelha, este que vos escreve dança cheek to cheek com a namorada do amigo carioca.  Não aparecem na foto, mas estavam lá, recém-casados, João Gilberto e sua Astrud, que se tornaria cantora e cinco anos depois conquistaria o mundo com sua versão em inglês de “The Girl from Ipanema”, vendendo muito mais discos do que a lendária Sarah Vaughan. 

O show, irretocável, culminou com “Misty”, a canção de Erroll Garner que “Sassy” (Atrevida) adotou como sua assinatura musical. Um jornalista que cobriu a noitada a chamou de “último baile da Ilha Fiscal da República”. Era o derradeiro inverno do Rio de Janeiro como capital da república, em abril de 1960 Brasília assumiria o facho.  O Rio se tornaria o minúsculo Estado da Guanabara. Mas, com irreverência e humor típicos, o carioca deu o troco. Brasília fixou conhecida pelo nome da empreiteira que a construiu, a Novacap. O Rio adotou então o nome imbatível de Belacap, o que continua sendo até hoje.

sexta-feira, 17 de junho de 2022

Maria Lúcia Dahl: da sombra do Arco do Triunfo às madrugadas do Baixo-São João Baptista • Por Roberto Muggiati

Aos 20 anos, então Maria Lúcia Pinto, no palacete do embaixador Paulo Carneiro, em Paris.
Fotos: Arquivo Pessoal

Foram cinquenta anos de amizade, entrecortados por nosso Wanderlust em várias paragens mundo afora. Conheci Maria Lúcia Pinto em Paris, 1961, no palacete de Paulo Carneiro, nosso embaixador junto à Unesco, numa transversal de uma das grandes avenidas que irradiavam da Étoile do Arco do Triunfo. Tinha 19 anos e, para mim, era a mulher mais bonita e desejável do mundo. Elegante, sua griffe era Chanel, roupas e perfume.

Eu era um bolsista pobre, mas tive a sorte de encontrar um hotelzinho no local mais charmoso de Paris, na Place Dauphine, na proa da Île de la Cité, onde as águas do Sena se bifurcam debaixo do Pont Neuf. O pai do surrealismo André Breton também morou lá e menciona o City Hôtel em seu romance-chave Nadja.  Eu recebia um dinheirinho de minha família de Curitiba e o reservava para concertos de jazz no Olympia e noitadas excepcionais no Blue Note. Maria Lúcia viajava com os pais, Mário e Regina, e com a irmã Marília. Tentei seduzi-la convidando para shows de jazz. SeLembro de uma noitada com o quinteto dos irmãos Adderley, Julian “Cannonball” e Nat no Olympia, depois do show nos juntamos a amigos que nos esperavam no Harry’s New York Bar: Marília, Joaquim Pedro de Andrade, duas ou três funcionárias da coorte de Paulo Carneiro na Unesco. Uma delas, Neusa Azambuja, tinha um carro. Depois de umas e outras, nos pusemos a tramar uma incursão a Bruxelas para sequestrar a estátua do Manneken Piss – o famoso Manequinho Mijão. Os vapores etílicos acabaram dissipando a brilhante ideia. Quando saímos do Harry’s, a manhã precoce de primavera já raiava, fomos passear no Jardim das Tulherias, Maria Lúcia mais inclinada pelo Joaquim Pedro, eu com Marília, que era noiva do filho do embaixador, Mário Carneiro, grande fotógrafo do Cinema Novo, com quem casaria depois. (Marília Carneiro tornou-se figurinista da TV Globo e uma das melhores do país.)

Corte rápido do Sena para o Tâmisa, às margens do qual eu morava em  1963. Depois de uma noitada num pub à beira-rio, levei um grupo para o meu apartamento no 8 Embankment Gardens. Eu ia passar um mês de férias na Itália e o decorador Rodrigo Argollo, que fazia parte da turma, queria sublocar meu apartamento. Maria Lúcia foi junto, toda de preto. Reparei um furo no seu suéter, a região da omoplata, e enfiei o dedinho nele. Era o detalhe do fim da farra: em breve todos nós, por absoluta falta de dinheiro, voltaríamos para o Brasil, pisando pela primeira vez no Rio da ditadura militar. Casado com a Lina, que conheci em Paris, e era amiga da Maria Lúcia, fomos visita-la e ao marido Gustavo Dahl, cineasta que ela conhecera em Roma, na casa de vila que ela ganhou do pai, o engenheiro e empreiteiro Mário Pinto. Na tarde do réveillon de 66 para 67, Mário morre de mal súbito. A viúva, Regina – outro golpe brutal para Maria Lúcia – suicida-se saltando do seu apartamento no Flamengo. No réveillon seguinte, na famosa festa na casa de Heloisa Buarque de Holanda, duas dezenas de casais se separaram, inclusive a anfitriã e Maria Lúcia, depois de tomar uns sopapos do enciumado Gustavo por ter dançado de rosto colado com um galã egípcio, ou coisa parecida.

Novo corte, para 1972 em Paris. Lina e eu visitamos Maria Lúcia, que está grávida de sua única filha, Joana, com o segundo marido, o líder estudantil exilado Marcos Medeiros.

Com Malu: bom humor no lançamento
do livro Aconteceu na Manchete,
na Travessa do Leblon, em 2008.
Foto: Jussara Razzé
E então um hiato enorme, até o final de 2008, quando – um dos 16 autores do livro Aconteceu na Manchete – estou na noite de autógrafos na Travessa do Leblon. Começo a visita-la na eterna casa de vila coberta por uma mangueira na São João Baptista, 41. Toda noite de sexta-feira, compareço com um vinho tinto chileno e uma pizza gigante (sem duplo sentido). Mal me sento no sofá esfarrapado, o gato Netuno vem sentar-se no meu colo, um grafite, uma gracinha. Vemos um filme (lembro uma noite, com uma grande amiga dela, assistimos àquela obra-prima do Fritz Lang, Metropolis.) Depois ficamos horas jogando conversa fora, fofocando, lembrando os velhos tempos. Saio de madrugada e a quadra final da rua ainda está tomada por um burburinho de mesas e cadeiras que avançam até a metade da pista naquelas loucas baladas eufóricas da década que seria liquidada pela Covid-19 (de 2019). Certa noite, vamos de táxi ao lançamento de um livro de frei Leonardo Boff no Colégio Bennett. Sugiro que, para encurtar o trajeto, a gente pegue a Travessa dos Tamoyos. “Prefiro não”, diz Maria Lúcia, “minha mãe se matou nesta rua.”

Eu a chamo de Maria Lúcia Dahl-ou-desce! – incorrendo naquela piada-chavão machista. Malu também  tem humor, me contou uma história deliciosa. Idosos, com planos de saúde que nos tratam como debilóides (o meu, do Silvestre, fazia testes me obrigando a contar os dedos da mão, ou caminhar em linha reta de uma parede à outra do consultório, só faltava mandar fazer o 4...) – sua amiga Nelita Léclery, cujo primeiro casamento aos vinte anos foi com Vinícius de Moraes, foi sabatinada por um paramédico que, a certa altura, lhe perguntou, no item quesitos gerais para avaliar demência precoce: “A senhora sabe quem foi Vinícius de Moraes?” Responde Nelita: “Claro. Foi meu marido.” Só não a internaram porque era casada com o milionário francês Gérard Léclery. 

Siga em paz Maria Lúcia, daqui a pouco – quem sabe? – a gente se reencontra por aí...