Cícero Sandroni com o fotógrafo Antonio Rudge na cobertura para a Manchete da assinatura do acordo atômico Brasil-Alemanha em 1975 |
Na ABL |
Sandroni na Manchete em 1969 |
Este episódio surreal é contado sempre de maneira diferente, dependendo do narrador. Como o presenciei de perto, garanto que a minha versão é a correta, exata nos menores detalhes. Cícero Sandroni, jornalista, contista, era uma pessoa culta em processo de mudança e fazia psicanálise há vários anos. Chefe de redação, sentava-se defronte da grande mesa em L do editor, que eu ocupava na época. Um dia, Jaquito cochilou e perdeu uma concorrência importante. Depois de xingá-lo de “cagalhão”, chamamento que usava para todos os parentes empregados na firma, Adolpho o mandou descansar em Cabo Frio. Mesmo com a lancha da Manchete à sua disposição, o agitado Jaquito não aguentou por muito tempo as férias forçadas. Resolveu peitar o tio e voltar antes do tempo de “repouso” que lhe fora imposto. Teve então a ideia de levar um agrado para amaciar o Adolpho. Conhecendo seus gostos, foi à colônia de pesca local e comprou o peixe mais robusto e bonito que encontrou, um cherne, robalo ou garoupa da mais nobre estirpe com quase um metro de comprimento. Assim que chegou ao Russell foi diretamente à cozinha e pediu ao Severino que desse um tratamento de gala ao precioso pescado.
Jaquito, é claro,
vangloriou-se ao Adolpho dizendo que ele mesmo tinha fisgado o bicho. (Recorreu
aos artifícios da prosa hemingwayana em O
velho e o mar, o único livro que leu na vida.) Acertou em cheio na sua
aposta. Orgulhoso da obra do seu chef de
cuisine – requintada como aquelas peças de ourivesaria que Benvenuto
Cellini lavrava para os papas – Adolpho decidiu exibir o prato na redação,
antes que ele fosse devorado no restaurante pela alta direção e pelos editores
da casa. O acepipe, sobre uma travessa de porcelana, foi trazido numa bandeja
de prata. O garçom, mal podendo arcar com o peso do troféu, o depositou no
centro da sala, sobre a mesa do Cícero, que havia se ausentado por alguns
minutos.
Quando se deparou
com aquele espetáculo, o Sandroni ficou profundamente ultrajado. Sempre se
sentira diminuído pelo Adolpho, que o chamava de “O Genro”, pelo fato de ser
casado com a filha do imortal Austregésilo de Athayde, o mais longevo
presidente da Academia Brasileira de Letras. Cícero retirou-se intempestivamente
e encaminhou depois seu pedido de demissão.
O desenlace da
história fere o sagrado sigilo do divã, mas correu que, na manhã seguinte, em
sua sessão de psicanálise diária, ao ouvir o relato do insólito episódio, o
analista teria perguntado ao Cícero: “Senhor Sandroni, não acha que está
exagerando nestas suas fantasias sobre os Bloch? Um peixe na sua mesa de
trabalho!...”
*Cícero Sandroni morreu aos 90 anos na
terça-feira, 17 de junho. Nascido em São Paulo, fez uma carreira bem-sucedida
na imprensa carioca. Entrou na Bloch no final de 1969 como meu chefe de redação
em Fatos&Fotos; foi meu chefe de reportagem e de redação da Manchete
em meados dos anos 1970. Eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2007,
presidente da Casa entre 2008 e 2009, fez parte do que carinhosamente chamamos
“a Máfia da Manchete na ABL”: R. Magalhães Jr, Josué Montello, Ledo Ivo,
Arnaldo Niskier, Afonso Arinos Filho, Carlos Heitor Cony, Murilo Melo Filho,
Geraldinho Carneiro e Ruy Castro. Viveu ainda um episódio curioso como jornalista
na gestão galhofeira de Raul Giudiccelli na F&F: Cícero escrevia
anonimamente a coluna de Horóscopo e, por uma incrível coincidência, previu o
sequestro de embaixador suíço no Rio.
**Esse texto faz parte do livro a ser lançado
em breve por Arnaldo Niskier e Roberto Muggiati, O humor na Manchete/Histórias do Grande Circo Adolpho Bloch.
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