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terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Há 80 anos: O suicídio de Stefan Zweig em Petrópolis • Por Roberto Muggiati

Stefan Zweig e Lotta

Eu tinha quatro anos quando ouvi falar da morte de Stefan Zweig em Petrópolis. Formei na minha cabecinha uma imagem fantasiosa, a do grande escritor deitado com o peito para o céu num imenso gramado que descia uma encosta cercada de hortênsias. Eram as flores favoritas da minha mãe, que as plantou no jardim de nossa casa em Curitiba, e Petrópolis era conhecida como a “Cidade das Hortênsias”.

Com o correr dos tempos, fui localizando melhor Zweig no tempo e no espaço. Escritor polivalente, ficcionista, memorialista, ensaísta e também autor de uma dezena de biografias exemplares, foi um dos raros intelectuais cultos da primeira metade do século 20 que se tornou um best-seller, antes mesmo da palavra existir. Muitas de suas obras foram transformadas em filmes, uma das mais conhecidas é “Carta de uma desconhecida” (1948), dirigido por Max Ophüls, com Joan Fontaine e Louis Jourdain nos papeis principais. Humanista de origem judaica, Zweig fugiu da fúria nazista, primeiro para a Inglaterra, onde se naturalizou britânico, depois para os Estados Unidos, e finalmente para o Brasil, em Petrópolis. Apesar da simpatia do governo Vargas pelo nazifascismo, Zweig foi recebido calorosamente pela comunidade intelectual mais esclarecida do Rio de Janeiro. Colocando suas últimas esperanças em seu novo país de escolha, escreveu “Brasil, país do futuro”. Declarou, na época: “Considerando que o nosso velho mundo é, mais do que nunca, governado pela tentativa insana de criar pessoas racialmente puras, como cavalos e cães de corrida, ao longo dos séculos a nação brasileira tem sido construída sobre o princípio de uma miscigenação livre e não filtrada, a equalização completa do preto e branco, marrom e amarelo".

Mas a expansão militar do Eixo (Alemanha-Itália-Japão) nos primeiros anos da guerra e a ascensão do autoritarismo e da intolerância na Europa, o levaram a uma depressão profunda. Na noite de 22 de fevereiro de 1942, o primeiro domingo depois do Carnaval – aquele que Orson Welles filmou no Rio de Janeiro – Stefan Zweig escreveu uma carta de despedida e ingeriu, com a mulher, Lotte, uma dose fatal de barbitúricos. A carta dizia:

 “Cada dia eu aprendi a amar mais este país e não gostaria de ter que reconstruir minha vida em outro lugar depois que o mundo da minha própria língua se afundou e se perdeu para mim, e minha pátria espiritual, a Europa, destruiu a si própria. Mas, para começar tudo de novo, um homem de 60 anos precisa de poderes especiais e meu próprio poder desgastou-se após anos vagando sem um assento. Por isso, prefiro terminar a minha vida no momento certo, como um homem cuja obra cultural foi sempre a mais pura de suas alegrias e também a sua liberdade pessoal – a mais preciosa fruição neste mundo. Deixo saudações a todos os meus amigos: talvez vivam para ver o nascer do sol depois desta longa noite. Eu, mais impaciente, vou embora antes deles.”

— Stefan Zweig, 1942 

O casal foi sepultado no Cemitério Municipal de Petrópolis, de acordo com as tradições fúnebres judaicas, no perpétuo 47.417, quadra 11. Sua casa foi transformada em Centro Cultural, a Casa Stefan Zweig.


O escritor assim se referia à casa na rua Gonçalves Dias,34, no bairro do Valparaíso, onde morou seus últimos cinco meses de vida: "Pequeno bangalô com sua grande varanda coberta, que é nossa sala de estar". Em 2006 ela foi transformada em Museu Casa Stefan Zweig, um centro cultural dedicado à memória de Zweig e inclui também um "Memorial do Exílio", destinado a divulgar as obras de outros artistas, intelectuais e cientistas que, como Zweig, se refugiaram no Brasil durante o período 1933-1945 e contribuíram para a cultura, as artes e a ciência do país.

A necrópole petropolitana

Em meu romance “A contorcionista mongol” (2000), menciono o Cemitério Municipal de Petrópolis. Estive lá duas vezes para conhecê-lo bem e dar mais autenticidade à cena do enterro do anão. A contorcionista da história – e o atirador de facas – foram inspirados por um circo de verdade. O Circo Garcia – que chegou a ser o quarto maior do mundo, foi aplaudido por celebridades como o poeta Drummond, Xuxa e Ziraldo, e fechou em 2003, aos 75 anos – acampou durante meses ao lado do antigo Hotel Quitandinha na época em que eu escrevia “A contorcionista”. Abaixo, alguns trechos:

“O enterro foi em Petrópolis, num dos cemitérios mais estranhos do mundo, rasgado ao meio por uma rua de grande circulação e com as suas metades entrecortadas por morros. A autópsia foi feita no Instituto Médico-Legal, que funcionava no próprio cemitério, num antigo mausoléu em estilo neoclássico (...) Logo atrás do mausoléu-morgue ficavam os túmulos geminados de Stefan Zweig e de sua mulher Lotte, sem flores, com uma pequena pedra sobre a laje de mármore, conforme a tradição judaica. O anão foi enterrado a uma centena de metros do célebre casal, na encosta do morro que começava a ser invadida pelos mortos: uma parte da mata tinha sido devastada para a construção de novas sepulturas. Os defuntos iam, literalmente, subindo para o céu.”

Cena de "Lost Zweig", de Sylvio Back. Na foto, o ator Rudiger Vogler (Zweig) e a atir Ruth Rieser (Lotte).



PS • Os últimos dias de vida de Stefan Zweig foram levados à tela magistralmente por Sylvio Back no filme de 2002 “Lost Zweig”, inspirado no livro de Alberto Dines “Morte no Paraíso”, que descreve o clima político da época e a indisfarçada simpatia do regime Vargas pelo nazifascismo. A trilha sonora foi improvisada diretamente durante a projeção do filme, estratégia criada por Louis Malle em “Ascenseur pour l’échafaud/Elevador para o cadafalso” (1958), com a participação do trompetista de jazz Miles Davis. Sylvio usou na sua trilha o trombonista Raul de Souza e o pianista Guilherme Vergueiro. O ator alemão Rüdiger Vogler está impecável no papel de Zweig, confiram no trailer AQUI

quinta-feira, 17 de junho de 2021

Sylvio Back: poesia numa horas destas, sim! • Por Roberto Muggiati

Poemas de reconciliação com a vida


Sylvio Back. Foto EBC

Em 1959, "um jornalista que faz filmes". Foto: Arquivo Pessoal

Sylvio Back é, como eu, da classe de 1937. Batalhamos nas trincheiras da imprensa nos anos 50 em Curitiba, vivemos intensamente a fricção ideológica que acabaria no golpe militar de 64. Ao voltar de dois anos em Paris, em 1962, eu o encontrei cineasta. 
Colaborei com os travellings do seu primeiro filme, o documentário As moradas. Como? Do modo mais artesanal possível: ao volante do DKW do meu pai – Sylvio com uma câmera na mão e metade do corpo saindo como um pescoço de girafa pela janela traseira – eu cumpro suas ordens: “Toca!” “Pára!” “Toca!” “Pára!” 

Passo mais três anos fora do Brasil, na BBC de Londres. Em 1968, trabalhando na Veja em São Paulo, vou assistir com o Sylvio à estreia do seu primeiro longa, Lance maior, que lança uma nova atriz, Regina Duarte. A partir daí Sylvio não para mais, será uma catadupa de 38 filmes – só mesmo um vocábulo rodriguiano para definir sua sanha criativa. Filmes polêmicos, Sylvio gosta de cutucar com vara curta os clichês e as certezas do Sistema. Deu a cara a tapa em Yndio do Brasil, República Guarani, Guerra do Brasil, Rádio Auriverde e Contestado, os restos mortais. 

Costumo brincar com ele ao dizer que sua maior contribuição cultural foi batizar a bunda mais famosa do país. A cantora Gretchen diz que viveu uma epifania (claro, ela não se exprime nesses termos) ao ver numa marquise de cinema o título do filme de Back, Aleluia, Gretchen.

Não contente com a quantidade de prêmios que o cinema lhe trouxe (77 ao todo), Sylvio Back já publicou 25 livros, entre eles uma dezena de poesia. Agora, justo num momento em que o mar não está para poemas – num país em que o desgoverno abomina ostensivamente a cultura, Sylvio publica, pela Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, um belo volume de 431 páginas, Silenciário. Ao escrever o texto das orelhas do seu livro de poemas eróticos Quermesse, inseri um trocadilho safado: “deflorais de Back”. Meu ímpeto inicial, jocoso, foi chamar o novo livro de Ruidário, mas me contive. 

Desta vez Sylvio não veio para provocar ou agredir. O seu é o silêncio sábio de um homem reconciliado com a vida, na véspera dos 84 anos. Um feito notável para alguém que, como ele, sofreu muito além da cota de perdas familiares e danos morais reservada ao comum dos mortais. Não resisto e cito aqui o justamente revoltado Hamlet:

   “...quem do tempo aguentaria os golpes

  E o escárnio, e o peso do opressor e a afronta

  Do altivo, o amor sem volta, a lei morosa,

  A ofensa do poder, e o coice certo

  Que o paciente valor leva dos crápulas (...)

  Quem tais fardos levara, suando e arfando

  Sob o exausto viver..."


Sylvio reage ao pessimismo de Shakespeare:

melhor seria implodir

não houvesse verso

E reitera, num tom que evoca Jacques Prevert:

a melhor hora para chorar

é quando se acorda mas

procure antes dormir bem

da cama pule feito criança

espere pelo fim do bocejo

ande pela casa sem rumo...

Poesia numa hora destas, meu caro Back? Eu digo: sim, justo agora, quando chegamos aos 500.000 mortos, justo na hora em que parentes e amigos estão caindo feito moscas ao nosso redor. E encontro, ainda nos seus versos, um arremate: 

estamos todos

               de lambuja

no azimute da vida

              finitude é périplo


segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Kirk Douglas: 102 anos esta noite • Por Roberto Muggiati


Kirk Douglas em Spartacus.
Divulgação
por Roberto Muggiati 

Iussur Danielovitch (mais conhecido como Kirk Douglas) completou ontem, domingo, 9 de dezembro, 102 anos, inteiro e lúcido.

Não há tempo e espaço para contar aqui tudo o que fez o ator – considerado um dos maiores na história do cinema. Mas todos nós – particularmente aqueles nascidos em meados do século passado – fomos tocados por sua arte num momento ou outro de nossas vidas.

O escravo rebelde de Spartacus, o militar pacifista de Glória feita de sangue, o trompetista de jazz de Êxito fugaz, o jornalista corrupto de A montanha dos sete abutres, o produtor de cinema idem de Assim estava escrito, o mocinho de muitos faroestes e o vilão de muitos filmes noir, Kirk tocou nas emoções de muita gente em seus 62 anos de carreira.

E, como Van Gogh,
m Sede de Viver. Divulgação
Limito-me a citar um episódio que diz tudo da sua capacidade de extrapolar da tela para a vida real. É uma história que meu amigo cineasta Sylvio Back relata amiúde.

Em 1956, saindo de uma matinê numa das salas da Cinelândia curitibana – onde passava Sede de viver, a biografia romanceada do pintor Vincent van Gogh, interpretado por Kirk Douglas – Sylvio entreouviu duas senhorinhas condoendo-se da sorte do ator. “Coitadinho do Kirk Douglas, você viu o que fizeram com ele? Cortaram sua orelha.” Falavam com tanta convicção que parecia que o coitado do Iussur Danielovitch passaria o resto da vida com um vazio no lado da cabeça onde ficava o órgão auditivo amputado.