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sábado, 18 de janeiro de 2025

Os saraus da Ceres: patrimônio imaterial da República de Ipanema • Por Roberto Muggiati

Ceres Feijó.  Ao fundo, pintura de Ana Maria Maiolino
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Uma vista da mesa do pato, com as amendoeiras à janela. Fotos Theca Vasques

Começo do começo, por um casal corajoso: Ceres Feijó e Flávio de Aquino, que deixaram seus cônjuges para formar uma união eterna – ela com três filhos, ele com quatro. Um casal com um dom genial para compartilhar sua alegria de viver com uma seleta legião de amigos. Eu os conheci na Manchete em 1966 e, depois de uma temporada na Veja em São Paulo, aprofundei meu relacionamento com o Flávio na redação do EleEla, um antro de intelectuais, dirigido pelo escritor Carlos Heitor Cony. Enquanto “revista masculina”, entregávamos muito pouco ao leitor, ou quase nada: o que o Cony chamava de “mulherio” de nossas páginas coloridas eram fotos da franquia alemã da revista Jasmin, robustas valquírias de biquínis largões, pois na época toda nudez era castigada pela ditadura militar. Procurávamos valorizar nossa edição mensal com matérias inteligentes e sofisticadas: Mário Pontes com seus achados literários, Paulo Perdigão com as últimas novidades de Hollywood, Cinecittà e adjacências, Flávio der Aquino com sua fabulosa erudição em artes plásticas (lembro de um texto seu sobre a Vênus de Willendorf com suas nádegas e seios fartos) e eu tentando contestar o Sistema com o rock e a contracultura,  depois do AI-5, ficou totalmente proibido escrever sobre política. O próprio Cony – nas generosas sobras de tempo do fechamento – escreveu ali o romance Pilatos, que considerava sua obra mais criativa e transgressora.

Em 1978, editor da Manchete, pedi ao Flávio que escrevesse uma série sobre a História dos Papas. O tema se tornara atualíssimo com a morte de Paulo VI e a primeira eleição no Vaticano em 15 anos. E ganhou ainda mais força quando o sucessor, João Paulo I, morreu misteriosamente após apenas 33 dias de pontificado, o que levou a uma nova eleição, a do polonês Karol Wojtyla. Flávio ficou tão satisfeito com a publicação que ofereceu um jantar comemorativo no seu apartamento da Rua Alberto de Campos, em Ipanema, perto da Lagoa.

Muggiati, com o filho Roberto, Ceres, Flávio de Aquino, Burle Marx e Zulema Rida.
Fotos de Lena Muggiati. 
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O bom Flávio sofria de insuficiência renal e submetia-se a sessões regulares de hemodiálise. Nosso último encontro memorável foi uma viagem ao sítio de Burle Marx em Guaratiba. Flávio escreveria uma grande matéria sobre o paisagista, minha mulher Lena faria as fotos. Marx fez questão de nos levar para ver as molduras de portas e janelas de pedra de cantaria que havia comprado de um prédio demolido no centro do Rio. As preciosidades estavam numa parte elevada do terreno. Na descida, debilitado pela doença, Flávio chegou atrasado à biblioteca, onde Burle Marx tocava uma peça barroca num antigo harmônio de igreja. Mirou um convidativo sofá de couro e desabou sobre ele com todo o seu peso. Do couro ressecado, cheio de furos, jorrou um jato de pequenas penas brancas do enchimento, que se chocaram contra o teto e caíram lenta e silenciosamente como neve ao som de uma fuga de Bach. Fellini puro! 

Os anfitriões lendários de Ipanema eram o casal Guguta e Darwin Brandão, encastelados no seu apartamento da Rua Redentor, até a morte dele, em 1978. Flávio, o florianopolitano de alma carioca, também nos deixou, em 1987, no dia de São Sebastião. Passado o luto, a discreta Ceres começaria a empunhar o facho dos Brandão, com seu talento natural para a arte de receber. Em sua agenda anual destacavam-se duas datas: a feijoada do seu aniversário, no sábado mais próximo do 28 de julho; e o pato com lentilhas do Ano Novo. Simbolismos não faltam aqui: as lentilhas remetem à prosperidade e fartura. E Ceres na mitologia é a deusa da agricultura, vem dela a palavra cereal. 

Lembro-me de meus primeiros patos, no início dos anos 2000, na cobertura da Visconde de Pirajá, acessada por uma escada em espiral. Você tomava o elevador até o sexto andar, abria a porta e se via enclausurado num cubículo retangular forrado de espelhos, a única saída era escalar os três metros da pesada escada de madeira em caracol. A subida até que era fácil. A descida, difícil – quase impossível para alguns – depois de umas e muitas outras... Ao entrar no apartamento, você respirava o clima de montanha do ar condicionado e os aromas convidativos que recendiam da cozinha.  Mas, antes do pato, o papo, noblesse oblige. Ele rolava, animado pelo reencontro de velhas amizades e pelo nascimento de novas amizades, estimulado pelos melhores vinhos e uísques.   

Da rica entourage, devo esquecer alguns nomes, mas vou me esforçar para lembrar. Em certa ocasião, um décimo da Academia Brasileira de Letras estava presente: Cícero Sandroni, Ferreira Gullar, Zuenir Ventura (e sua primeira-dama Mary) e Ana Maria Machado, então presidente da ABL. A pintora Marília Kranz – a misteriosa Madame K das degustações do crítico de gastronomia Apicius – era assídua. O crítico de teatro e cinema Wilson Cunha e o dramaturgo e autor de musicais Flávio Marinho também, quando não estavam de férias na Europa. O mestre do design Karlheinz Bergmüller era outro dos comensais, ex-colega de Flávio como professor da pioneira Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI) carioca, casado com a ex-fotógrafa Zulema Rida, mãe (do primeiro casamento) de Júlia Pentagna. Júlia casou com o cônsul da Alemanha no Rio, Michael Geier. Amigo da Intelligentsia esquerdista e simpatizante do PT nos seus prolegômenos, Michael prodigalizava viagens oficiais à Alemanha para seus amigos, de A[quino] a Z[iraldo]. Fui incluído na lista em fevereiro de 1979, com minha mulher, Lena Muggiati, fotógrafa de Manchete. Visitei as principais revistas semanais do país: Stern e Der Spiegel em Hamburgo, Bunte Illustrierte  em Offenburg, Quick e Bravo em Munique. Fomos também a Berlim, com direito a um concerto da lendária Philarmoniker. Michael Geier, que, depois do  Rio, serviu em rincões remotos como Ouagadougou, capital de Burkina Faso, se aposentou com brilho, como embaixador da República Federal da Alemanha em Roma e passou a morar em Berlim com Júlia. Esporadicamente, o casal veio ao Brasil, dando o ar de sua graça na casa da Ceres.

Nos últimos anos, o endereço da festa mudou: um belo apartamento de cobertura na Saddock de Sá, sombreado na frente pelas verdes copas das amendoeiras e, na varanda traseira, com uma vista deslumbrante da Lagoa Rodrigo de Freitas. Foi nesse novo cenário que reencontrei Beatriz, ex-Sra. Fernando Sabino quando ele era, em 1964, o Adido Cultural do Brasil em Londres e eu trabalhava no Serviço Brasileiro da BBC. Sabino e eu formávamos, com o jornalista Narceu de Almeida, os Três Mosqueteiros do Ronnie Scott’s Jazz Club, assistindo a shows memoráveis do pianista Bill Evans e do saxofonista Stan Getz.      

O Pato do Jubileu • Compareci ao pato deste ano na companhia de minha agente literária, Thereza Cavalcanti Vasques, que veio de São Paulo passar o réveillon no Rio e combinar a minha agenda de compromissos para 2025. Senti a falta de meu colega bolsista de jornalismo na França Zuenir Ventura, teria feito forfait por problemas de mobilidade. A gravurista Teresa Miranda, 96 anos, estava lá, lépida e fagueira. Guguta Brandão, aos 87, esbanjava jovialidade, como nos tempos em que recebia na Rua Redentor. Karlheinz Bergmüller, 96 anos, era esperado, mas não apareceu, talvez ainda estivesse pegando umas ondas na praia. Com certeza vai dar as caras no Pato de 2026. Dos filhos da Ceres, Quinca, com o marido Noronha, e Nando, com a namorada Verônica, prestigiavam a festa, assim como os filhos de Flávio de Aquino, Maria Helena e Roberto, que concilia miraculosamente as funções de funcionário da Receita Federal e percussionista de escola de samba. Conversei muito com Rosa Freire D’Aguiar, viúva de Celso Furtado e correspondente da Manchete em Paris nos anos 1970, recém-premiada pelo Jabuti por seu livro Sempre Paris. Atualmente ela traduz com Mário Sérgio Conti Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Perguntei a Rosa como se pode traduzir uma obra que começa com uma frase intraduzível: “Longtemps, je me suis couché de bonne heure”.

Ano que vem, muitos de nós estaremos de novo reunidos no sarau da Ceres. Esta história daria um belo filme. Eu o chamaria A um pato da eternidade.


sábado, 2 de novembro de 2024

Memórias da redação: o craque do fraque e o grito do rito • Por Roberto Muggiati


Arthur Moreira Lima (*) e o pianinho. Reprodução. Foto Lena Muggiati

Tivemos certa vez um entrevero, Artur Moreira Lima e a revista Manchete, representada por mim, seu editor. Em 1983, ele estava em evidência por sua campanha para eliminar as barreiras entre popular e erudito levando a música até os mais recônditos rincões do país no projeto Piano na Estrada, com palco e pianos sobre um caminhão. Combinamos que Renato Sérgio faria com ele uma de suas grandes entrevistas-perfis, com direito a não menos do que cinco páginas e uma foto de abertura de gala em página dupla. Moreira Lima apareceria de casaca negra, a toga do seu ofício sacramentada pela temporada no Conservatório Tchaikovsky em Moscou. Todo editor de Manchete tinha de ser também um produtor fotográfico. Achei que umas pitadas de cor contrabalançariam o excesso de preto. Sugeri à fotógrafa Lena Muggiati que levasse um desses pianinhos de brinquedo multicoloridos e pedisse a Moreira Lima que simulasse tocar nele. Uma piada visual daquelas que faziam a fama da revista, mas o rei Artur, apegado ao rito das salas de concerto, reagiu com um grito: “Não!”

Renato Sérgio chamou o VAR e ligou para mim. 

             – Muggiati, ele não quer fazer a foto com o pianinho.

–  Diga a ele que sem foto não tem matéria – fui peremptório.

O pianista parou para pensar e, em questão de segundos, mostrou toda a sua – para usar a palavra do momento, não aguento mais – resiliência. Afinal, cinco páginas da Manchete não é coisa de se jogar fora. 

A matéria foi um sucesso. Entre mortos e feridos, salvaram-se todos.

(*) Arthur Moreira Lima morreu aos 84 anos, em Florianópolis, no dia 30/10/2024

  

segunda-feira, 18 de março de 2024

Do Jornalistas & Cia - Roberto Muggiati, 70 anos de carreira. Por Cristina Vaz de Carvalho

 










Matéria reproduzida do portal Jornalistas & Cia. Clique nas imagens para ampliar

Atualização em 20/3/2024 - O  Jornalistas & Cia publicou a seguinte nota, que reproduzimos por solicitação de Roberto Muggiati:

Clique na imagem para ampliar 


segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Tomando caipivodca e lendo P.G. Wodehouse na Montanha Mágica de Laranjeiras numa hora de crise aos 85 anos: só eu... • Por Roberto Muggiati

Roberto Muggiati no  Armazém Cardosão, Laranjeiras. Foto de Lena Muggiati 

Corrijo T.S. Eliot, para mim “January is the cruellest month”. O ano começou com uma sexta-feira 13. Às oito da manhã me liga a assistente social da UPA de Botafogo convocando para a alta de minha mulher, Lena. Apavorei. Eu tinha internado Lena na segunda-feira 9 – um dia sinistro em que choveu sem parar no Rio e as telas de TV repassavam imagens de um dos episódios mais feios da nossa história, uma turba muito rude quebrando tudo em Brasília. 

Lena Muggiati no Hospital Rocha
Maia, em Botafogo

Um surto emocional acompanhado de uma crise de inapetência levara Lena à beira da inanição, um fiapo inerte de 35 quilos. Visitei-a todo dia, melhorava aos poucos, mas ainda não estava em condições de ter alta. Corri até a UPA, por sorte encontrei a médica que a atendia, a assistente social me dera uma informação truncada. Lena ia ser transferida para o Hospital Rocha Maia, em Botafogo, que oferecia melhor suporte médico.

Agora as visitas eram mais complicadas. Saindo de Laranjeiras, se surgisse um raro ônibus 584, que me deixava na sede do Botafogo perto do Rio Sul, era só uma caminhada até o Rocha Maia. Se o também raro 583 (Cosme Velho-Leblon) desse o ar de sua graça, eu descia no metrô de Botafogo e pegava um táxi até o hospital. O pior cenário era tomar o 422 até o Largo do Machado, o metrô até a estação Botafogo-Coca Cola (sic) e daí um táxi até o Rocha Maia. Arriscar uma caminhada até lá sob o sol de verão era estafante e perigoso, em meio a pistas de alta velocidade.

Nada acontece por acaso. Naquelas noites eu revia a versão de A montanha mágica de Thomas Mann num filme de três horas da TV alemã. Mann mostrava o hospital como uma parábola da sociedade e a doença como uma parábola da vida. E eu completamente mergulhado naquela mórbida frequentação nosocomial. 

Meu antídoto para toda essa gravidade literária era ler o autor mais leve e engraçado do século 20, o inglês P.G. Wodehouse (1881-1975). Comprei dois ou três livros dele nos sebos de calçada daqui – onde já encontrei coisas surpreendentes. Quando era editor da Manchete, eu tinha um redator muito culto e querido, George Gurjan. Nos momentos de pausa, entre um leiaute e outro, ele enfiava sempre o nariz num livro do Wodehouse. P.G. descreve com muito humor as aparentemente rígidas relações de classe britânicas e faz até uma inversão de papeis: é o valete Jeeves quem manda no seu patrão-playboy. Seus melhores livros, publicados nos anos 1920/30, são um deleite de linguagem com a colorida gíria inglesa da época.

Moro em pleno vale das Laranjeiras, no que chamo de Baixo-Glicério. Para aliviar o estresse comecei a caminhar até as alturas do Armazém Cardosão. Abreviava o trajeto subindo uma escada de 59 degraus e depois a ladeira que serpenteava até o bar-restaurante. Encurtava a volta descendo direto uma escada de 115 degraus. Chamei aquele cume de Montanha Mágica. Laranjeiras é um bairro estranho, com encostas e morros escarpados, boa parte coberta por trechos de Mata Atlântica do Maciço da Tijuca. Também venta muito por estas bandas, por isso criei um nome alternativo para a região, Cumbres borrascosas, título espanhol do Morro dos Ventos Uivantes, que Buñuel filmou no México como Abismos de pasión.

Na terça-feira 17 de janeiro, Rio 40° com sensação térmica de 50°, acompanhei Lena num passeio de ambulância até uma clínica de Madureira, onde ela foi fazer uma tomografia computadorizada. Na TV da sala de espera vi que tinha morrido o Henrique Caban, meu colega na equipe inicial da Veja em São Paulo em 1968. Depois nos reencontramos na Bloch,  ele foi secretário do Samuel Wainer no malogrado projeto do Domingo Ilustrado, uma revista em forma de jornalão para ser lida na praia – se a brisa marinha permitisse, só na cabeça do Adolpho mesmo... Duas coincidências do dia com um toque do Além: uma semana antes eu presenteara a Sirleine do Pastel, que vende seus quitutes defronte ao Cardosão, com um exemplar do meu primeiro livro, Mao e  China, lançado em São Paulo na segunda-feira antes da sexta-feira 13 de dezembro do AI-5. Costumo comprar livros da minha autoria na Estante Virtual, o da Sirleine portava justamente uma dedicatória ao Caban, em letra vermelha. Caban fazia parte da “Máfia do Partidão”: nas redações brasileiras, quem tinha carteirinha do PCB era sempre protegido e tinha emprego garantido.

Quando voltei para casa – quatro horas de ida e volta até Madureira numa ambulância sacolejante, o piso ao longo do caminho estava sendo recapeado – recebi na portaria do prédio dois livros da Estante Virtual. Quando abri o segundo tomei um choque, um livro que eu não tinha encomendado: De como ser, do Harry Laus, seu nome em maiúsculas gritantes na capa. Harry Laus (1922-1992) era meu editor de artes plásticas na Veja quando eu dirigia o módulo de Artes e Espetáculos. Militar de carreira, inteligente, transgressor, foi reformado como tenente-coronel pelo golpe de 1964. Homossexual, tinha escrito um romance sobre sexo proibido num quartel de fronteira, O batalhão sagrado, que nunca foi publicado. Por conta da minha primeira mulher, chegada a homossexuais, ficamos amigos e compartilhamos alguns programas fora da redação na buliçosa São Paulo daquela época. Depois que deixei a Veja em setembro de 1969 nunca mais vi o Harry Laus, que se tornou um contista ignorado no Brasil, mas muito prestigiado na Europa com a tradução de seus livros.

 Intrigado por aquela súbita aparição, subi para minha caipivodca de seriguela no Cardosão. Por uma feliz coincidência era o dia de jazz na casa. Um grupo compacto com um som fusion competia com os aviões da Ponte Aérea que passavam zunindo a cada dois minutos na descida para o Santos Dumont. O sabor da caipivodca de fruta silvestre, os bólidos prateados silvando a apenas cem metros de nossas cabeças e o jazz num longo improviso sobre o Corcovado do Jobim – e a visão muito próxima do Cristo Redentor que tínhamos de nossas cadeiras – tudo isso me levou a uma iluminação espiritual, aquele fenômeno que James Joyce chamava de epifania e os zen-budistas de satori. 

Uma semana depois Lena voltou para casa. No hospital a entupiram de comida, ganhou oito quilos de peso e estava em franca recuperação. Subi com ela de táxi para fazermos a foto que ilustra esse texto. O chamado do Além do Harry Laus foi explicado: minha amiga jornalista de Curitiba Marleth Silva, que vive insistindo para que eu escreva minhas memórias, mandou o livro como amostra de uma autobiografia. (Ela desconhecia minha amizade com o Laus.) 

Uma palavrinha para Marleth: escrevo minhas memórias todo dia há mais de vinte anos. O blog Panis Cum Ovum, dos ex-Manchete, com quinze anos de existência, abriga já alguns volumes. O problema é que não consigo colocar um ponto final. Cada dia me brinda com encontros, surpresas, descobertas, benesses, pessoas, lugares. O presente me atropela e se transforma instantaneamente em passado, matéria de memória.  Gosto da expressão com que Boris Vian definia a passagem do tempo: “a espuma dos dias”. Intenso, hiperativo, curioso e afoito, uma ida até a esquina hoje para mim equivale a uma verdadeira odisseia. 


terça-feira, 5 de abril de 2022

Memórias da redação - O trio elétrico da Manchete • Por Roberto Muggiati

FUNDO INFINITO • Renato Sérgio, João Luiz de Albuquerque e Roberto Muggiati. No 2º Free Jazz Festival, em 1986, Manchete montou, no Hotel Nacional, um estúdio para fotografar em alto estilo os músicos participantes, destaques para Gerry Mulligan, Wynton Marsalis, Stanley Jordan e The Manhattan Transfer. O “Trio Elétrico” pegou carona...

Foto: Lena Muggiati


Dava prestígio trabalhar na maior revista ilustrada do país. Já salário era outra história. À falta de uma política salarial na empresa, cada jornalista tinha de lutar pelo seu num indigesto corpo-a-corpo com o dono da empresa, Adolpho Bloch. A maioria não tinha sequer acesso ao capo. Como Adolpho mandava também no conteúdo editorial das revistas, não havia na Bloch aquelas disputas de facções – as famigeradas “!panelinhas” – que ocorriam nas revistas da Abril ou nas redações de O Globo e do Jornal do Brasil. Eu não me dava conta então, foram precisos 35 anos até a falência em 2000, e a sequência do novo milênio, para chegar à percepção cristalina do quanto eu fui rico na Manchete. Rico em amizades. O ano e meio que passei na Veja em São Paulo me fez ver como a Manchete era um espaço democrático. Na redação no oitavo andar do prédio na Marginal do Tietê, eu ocupava um pequeno escritório fechado com vista para o rio lamacento, totalmente apartado da minha equipe de seis subeditores e doze repórteres, que se comprimiam nas “baias” – cubículos separados por divisórias de Eucatex de dois metros de altura. Já a redação da Manchete, também no oitavo andar, era aquele salão aberto com a fachada de vidro voltada para a entrada da baía de Guanabara, com o Pão de Açúcar de sentinela à direita, o azul do céu e do mar – como escreveu nosso repórter-letrista, “é sol, é sal, é sul.”  A redação ocupava 80% da metade fronteira do andar, entre os escritórios do Adolpho e do Jaquito em cada extremidade, separados de nós apenas por uma divisória de vidro. 

Todo mundo passava por aquele bordel. Os patrões vinham bisbilhotar nosso trabalho e dar palpites. Coleguinhas das revistas femininas vinham fofocar e jogar conversa fora. Uma delas, a simpática Laura Taves, sentou um dia na Ponte Aérea ao lado de um dos donos da Abril, meses depois se tornava a nova Sra. Roberto Civita. Como presente de casamento, ganhou a editora de temas feministas Rosa dos Tempos, com assessoria editorial de Rose Marie Muraro, que vivia na redação da Manchete em conchavos feministas com a Heloneida Studart. Justino Martins imperava na grande mesa de edição em L, sua sala de visitas. Recebia preferencialmente mulheres. As jovens amigas Lúcia Sweet e Fernand Bruni eram um colírio para os olhos. A baiana Raimunda Nonata do Sacramento, mais conhecida como Luana, nascida no Curuzu, em Salvador, primeira manequim negra brasileira, sucesso chez Paco Rabanne, Dior e Chanel, casou-se com o Conde de Noailles, uma das cepas mais nobres da aristocracia francesa. Regina Rosemburgo Lecléry visitou Justino na véspera do seu embarque para Paris no avião da Varig que se incendiou a poucos quilômetros do aeroporto de Orly em 1973. O cineasta Pierre Kast, o escritor Jean Genet e o “Clint Eastwood dos pobres”, Anthony Stephen, filho do Barão de Tefé,  também batiam o ponto na redação. Contei aqui outro dia do Nélson Rodrigues, que entrava saudando Adolpho como “o Cecil Bê De Maille (sic) do jornalismo!” Jô Soares, sem dizer palavra, pegava o Adolpho e saía valsando com ele pelo piso de tábuas corridas de madeira nobre. Um dia, Magalhães Jr. me apresentou a Agripino Grieco. Olhando para minha testa larga que já antecipava a calvície, o grande aforista disparou: “Que belo salão de baile para as ideias!” Vinha também, com uma assiduidade enervante, o Francisco Augusto Nascimento – que faturou milhões com o craque Grão de Bico nas pistas de turfe americanas – arrancar deste escriba um nome esperto para batizar um novo cavalo do seu haras em Itaipava. Depois de nomes literários como Jezebel, Iago, Rosencrantz e Suetônio, chutei um Cavalo de Crista. Não sei se o Chico percebeu a alusão à doença venérea; acabou chamando o potro de Capitão Jair, menção a um obscuro deputado iniciante. O pobre do animal jamais chegou entre os dez primeiros sequer.

Em 1975 assumi a direção editorial da Manchete no lugar do Justino. João Luiz de Albuquerque era meu chefe de reportagem, assistido pela dupla dinâmica João Resende e Suzana Tebet. Os Bloch inventaram uma reunião de pauta semanal com o pleno ampliado: a participação obrigatória dos editores de todas as revistas da casa. Cada qual tentando vender o seu peixe à custa da Manchete. O editor de Manchete Rural propunha matéria sobre uma nova vacina contra a febre aftosa, e por aí vai. João Luiz secretariava. Diplomaticamente, eu nunca rejeitava explicitamente uma sugestão: “Vamos ficar de olho.” João Luiz anotava. Eram tantas as sugestões que ficavam de olho que ele bolou um carimbo, aquele olho-lâmpada dramático que ocupa o ponto focal da tela de Picasso “Guernica”. Acabei adotando esse carimbo como meu ex-libris. “Fique de olho”, o lema perfeito para um jornalista. 

Em nossos telefonemas, João Luiz e eu adotamos espontaneamente um cacoete. Um se apresentava com o nome esdrúxulo de um músico de jazz. O outro respondia à altura, fonética e jazzisticamente.

– Olá Ike Quebec!

¬ – Tudo bem, Illinois Jacquet?  

[Bedroom tenors > saxofonistas de alcova] 

– E aí, John Robichaux? 

– Tudo em riba, Alphonse Picou.

[Músicos Creoles de Nova Orleãs.]

– Alô, Pony Poindexter!

– Beleza, Conte Candoli!

[Músicos da banda de Stan Kenton.]        

–  Como vai você, Phil Urso?

–  Levando, levando, meu caro Vido Musso.

[Saxofonistas tenores.]

Já com Renato Sérgio, nosso brilhante redator de assuntos culturais, a troca telefônica era minimalista. Mantínhamos uma espécie de shibboleth, uma senha binária, calcada no grito de guerra da Banda de Ipanema.

– Yolhesman!

– Crisbeles!

Ou, na contramão:

– Crisbeles!

– Yolhesman!

O lema da Banda de Ipanema não significava absolutamente nada, foi tirado por um de seus fundadores da pregação de um maluco que vendia bíblias na Central do Brasil. Na verdade, ficou sendo, naqueles tempos sombrios da ditadura militar (a Banda foi fundada em 1964 e saiu pela primeira vez no Carnaval de 1965), uma versão tropical do grito do anjo do Apocalipse.

Enjoado de tudo isso que anda por aí, Renato Sérgio nos deixou há dez anos – o velho e bom paulistano que, segundo José Esmeraldo Gonçalves tinha “um certo e saboroso jeito carioca de ver a vida”.

Depois de uma longa e tenebrosa pandemia, que ainda perdura – nós dois de máscara na livraria Argumento no lançamento do livro de Márcio Pinheiro sobre o Pasquim – reencontrei o João Luiz, protegido por suas guarda-costas de estima, as filhas Gabriela e Cristina. Trocamos mil e uma figurinhas dos tempos da Bloch e ele me contou histórias incríveis dos passeios com Adolpho Bloch no seu bugre. “E eu quero andar na sua baratinha,” disse Adolpho ao ver o buggy do João Luiz diante do prédio do Russell. Mas isso quem pode contar com a devida galhardia é só o próprio João Luiz. Vamos lá, ao teclado, Ferdinand Joseph La Menthe!...

sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Cabelos curtos para um ano longo • Por Roberto Muggiati

Uma coisa puxa a outra. Fiz um dos meus “haicais safados” para um amigo astrólogo diagnosticado com Alzheimer.  Alois é o primeiro nome do médico que nomeou a doença.

Alois vero

o astrágalo

do astrólogo:

Alzheimer


O jeu de mots recuperou a palavra “astrágalo”, enfurnada numa gaveta do meu primeiro casamento, já nas vascas da agonia, quando líamos os últimos lançamentos franceses e apareceu a margarida, Albertine Sarrazin com seus romances La Cavale e L’Astragale. Astrágalo (ou tálus) é o ossinho que articula o pé com os ossos da perna (tíbia e fíbula), formando o tornozelo. (Com o formato de um cubo, era muito usado em jogos de azar na Antiguidade, como precursor dos dados modernos, principalmente na Grécia e Mesopotâmia). Albertine quebrou o seu astrágalo ao pular de um muro de dez metros de altura fugindo da penitenciária. Abandonada pelos pais ao nascer, ela foi estuprada por um tio aos dez anos, mandada para um reformatório pelos pais adotivos; prostituta e ladra, passou a maior parte da vida na prisão. Nossos caminhos quase se cruzaram no sul da França. Ela nasceu em 1937, vinte dias mais velha que eu; morreu aos 29 anos, de um erro médico durante a anestesia para uma operação dos rins, em Montpellier, em 1967. Bolsista de jornalismo em Paris, fiz um estágio no jornal Midi Libre, de Montpellier, na época a Sarrazin já morava por lá. A roqueira Patti Smith escreveu sobre ela: “Encontrar uma foto de Albertine sentada num café de Paris depois de ter cortado suas longas tranças foi uma revelação. Colei a foto com uma fita adesiva na minha parede ao lado de Falconetti, Edie Sedgwick e Jean Seberg – garotas de cabelos curtos, as garotas do meu tempo”.


Vou perfilar brevemente estas garotas de close-cropped hair, como Patti as define, incluindo outras do meu elenco pessoal. A francesa Falconetti foi descoberta na Comédie Française pelo cineasta dinamarquês Carl Theodor Dreyer, que a escolheu para estrelar seu ambicioso filme O Martírio de Joanna D’arc. Todo o martírio seria de Falconetti, que deixou a Comédie, ficando desempregada um ano e meio até que as turbulentas filmagens começassem, só em 1928. O cinema sonoro fora lançado no ano anterior, mas Dreyer, com a verba curta, teve de rodar um filme mudo, recorrendo ainda às legendas. O obsessivo diretor filmava a mesma cena inúmeras vezes. Foi tão exigente numa tomada em que Falconetti tinha de cair ao chão que a atriz só atingiu o realismo que exigiam dela quando quebrou a perna. Seguiu trabalhando de perna quebrada, a dor e as lágrimas na tela se tornaram reais. Teve também os cabelos cortados brutalmente. Na cena da fogueira foi obrigada a ficar de joelhos sobre pedras pontiagudas, sob a luz de refletores tão fortes que lhe queimavam o rosto.

Em 1940, depois de uma volta bem sucedida ao palco, Falconetti tinha seu próprio teatro, L’Avenue, nos Champs-Elysées. Quando as botas nazistas pisotearam a sacrossanta avenida, o teatro foi fechado. Ela fugiu para a Suíça, para proteger o filho de dez anos, nascido do seu relacionamento com o judeu Henri Goldstück. Por sugestão do cineasta Alberto Cavalcanti – que a protegeu de Dreyer durante as filmagens de Joanna D'Arc – Falconetti e o filho vieram para o Brasil em 1942. Tentou fazer teatro no Rio, não conseguiu, mudou-se para Petrópolis, onde dava aulas de francês e de canto para sobreviver. Problemas com o visto a fizeram mudar-se para Buenos Aires, onde continuou dando aulas. Com o fim da guerra, pensou em retomar sua carreira de atriz na França. Como estava acima do peso, iniciou uma dieta tão radical que acabou causando sua morte, ainda na Argentina, aos 54 anos.


Americana do Kansas, Louise Brooks fez em 1929 na Alemanha, aos 23 anos, dois filmes que a tornaram figura cult instantânea, ambos dirigidos por G.W. Pabst, A caixa de Pandora e Diário de uma garota perdida. O penteado que escolheu, autêntica marca registrada, lhe valeu o apelido “a garota do capacete”.


Americana de Iowa, Jean Seberg estreou no cinema aos 19 anos, no filme Santa Joana, do prestigiado Otto Preminger, baseado na peça de George Bernard Shaw, com roteiro do romancista Graham Greene. Teve de cortar os cabelos curtos para o papel e incorporou o penteado à sua persona. Sua atuação de cabelos curtinhos no Acossado de Godard a imortalizou. Uma campanha difamatória do FBI a matou: suicidou-se em Paris, aos 40 anos. O filme Seberg contra todos (2019) foi uma tentativa de resgatar a sua dignidade.


Nascida em Santa Barbara, Califórnia, Edie Sedgwick foi apelidada de "It Girl" pela mídia mundana e de "Youthquake" (terremoto juvenil) pela revista Vogue. De rica e tradicional família americana, foi a primeira jovem socialite a escandalizar os Estados Unidos, descrevendo como gastou toda a sua herança em apenas seis meses em sexo, drogas, roupas e rock & roll. Participou dos filmes experimentais de Andy Warhol – ignorados pelo grande público – e embarcou numa viagem sem fim de anfetaminas, barbitúricos, álcool e fumo, morrendo em 1971 aos 28 anos – um ano a menos e teria pegado o bonde do Clube 27.




Tem ainda a cabecinha redonda perfeita da Twiggy, a manequim chaveirinho da Swinging London. E não podia esquecer Mia Farrow , filha do diretor de cinema John Farrow e da atriz Maurren o''Sullivan (a Jane dos filmes de Tarzan com Jonhnny Weissmüller. É de cabelos curtinhos que Mia - em O Bebê de Rosemary dirigido pelo malsinado  Roman Polanski -  vai parir o filho do diabo num apartamento sinistro  no Edifício Dakota em Nova York, onde John Lennon seria assassinado depois. Foi no próprio set de filmagem que Mia recebeu de um oficial de justiça o pedido de divórcio de Frank Sinatra, com quem havia casado um ano e meio antes – ela com 21, ele com 50 anos. 


Encerro esta galeria com minha mulher e fotógrafa favorita Lena Muggiati. Desobedecendo o Diktat do rabugento Raul Giudiccelli – “editor não escreve, não reporta, editor edita!” – eu me dava a liberdade de, pelo menos uma vez ao ano, deixar a prisão da mesa de edição e sair por aí cobrindo festivais de jazz como o de Montreux e fazendo matérias culturais, como A Suíça de Heminegway, A Londres de Sherlock Holmes e A Alemanha do Jovem Werther (de Goethe). E escapando de morrer de fraque e cartola, ao lado da Rainha, no casamento do Príncipe Andrew, quando a Abadia de Westminster por pouco não foi explodida pelos guerrilheiros do Ira. Em 1985, nossa primeira vez em Montreux, eu ainda podia me dar ao luxo de ter cheveux aux vents e Lena estreava um modelito curtinho exemplar. Valeu correr o mundo pela Manchete, enquanto durou...

Brasil em "pixie"






Dina Sfat, Anecy Rocha, Elis, Maria Della Costa, Tarsila do Amaral em auto retrato,
Tonia Carrero e Ana Cristina César. . Fotos Divulgação e Reproduções

Antecipando-me ao companheiro J.A. Barros, sempre alerta em apontar omissões nos meus textos, lembro aqui algumas brasileiras que saíram bem na foto em sua fase “pixie”: Dina Sfat, Ana Cristina César, Anecy Rocha, Clarice Lispector, Elis Regina, Maria Della Costa, Tarsila do Amaral, Tonia Carrero e a poeta Ana Cristina César.

domingo, 6 de junho de 2021

Na semana em que faria 90 anos, João Gilberto revive em inéditas

Vinicius e João Gilberto, com Tom Jobim nos teclados, no Au Bon Gourmet, Rio, 1962. Foto de Hélio Santos/Manchete

Em 10 de junho, próxima quinta-feira, ele faria 90 anos. Lenda da bossa nova, morreu há dois anos mas está presente. E não apenas através da sua obra imortal conhecida. João Gilberto revive em inéditas. 

A Rádio Batuta, do Instituto Moreira Salles, acaba de por no ar gravações até hoje não conhecidas do genial baiano de Juazeiro. São três fitas gravadas em Salvador, entre 1959 e 1961. Uma registra um show de João Gilberto e Vinícius de Moraes na Associação Atlética da Bahia. Os outros dois áudios foram gravados pelo jornalista, jurista e  músico Carlos Coqueijo em sua própria casa. O material contém dezenas de músicas, das quais 20 inéditas, em parcerias memoráveis com Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli, Vinicius e Dorival Caymmi. 

A pesquisadora Edinha Diniz recebeu as gravações de Aydil Coqueijo, que as preservou ao longo do tempo. A viúva de Coqueijo cuidou de transformar os rolos de fitas em cassetes e, por fim, providenciou a digitalização de todo o material guardado pelo marido, falecido em 1988. Em um trecho ouve-se João cantando "Sem Você", nunca gravada em disco, composta por Vinicius de Moraes e Tom Jobim. Pura história musical. 

João Gilberto e Tom Jobim em Montreux, 1985. "Uma confrontação", segundo Roberto Muggiati que cobriu o festival para a Manchete, com fotos de Lena Muggiati 

Por falar em Tom, histórica também foi a performance de João Gilberto com o carioca no Montreux Jazz Festival, em 1985. Muitos críticos apontam aquela hora como a melhor de João Gilberto. O então diretor da Manchete, Roberto Muggiati, que cobriu com a fotógrafa Lena Muggiati aquela edição do festival, definiu o encontro como "uma dramática queda-de-braço entre João e Tom Jobim, uma confrontação terrível entre as duas figuras maiores de bossa nova". 

* Você pode ver e ler a matéria completa da Manchete neste link 

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=004120&pasta=ano%20198&pesq=Montreux&pagfis=233338

* Já os registros das gravações históricas que Carlos Coqueijo fez de João Gilberto estão na Rádio Batuta 

https://radiobatuta.com.br/especiais/joao-gilberto-em-casa-de-carlos-coqueijo-28-11-1960/

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Fotografia: a capa do Gugu... e outros cliques • Por Roberto Muggiati

Gugu na capa da Manchete e...


...um ano depois na Amiga. Fotos de Lena Muggiati


Augusto Ruschi e o beijo do beija-flor. Foto de Ricardo Azoury

Gabeira na árvore. Foto de Gil Pìnheiro
O editor de uma revista ilustrada compete sempre com seus fotógrafos, talvez por sofrer do complexo de não saber fotografar. Mas nunca faltaram aos editores da Manchete ideias para fotos, algumas até mirabolantes. Quando Ricardo Azoury foi retratar Augusto Ruschi na sua reserva ecológica do Espírito Santo, exigi que fizesse uma página dupla com o ambientalista beijando... um beija-flor. Sorte que o repórter era o Marcelo Auler, mais tirânico que o editor, e exigiu que Ruschi sustentasse entre os lábios um dedal com água açucarada até que surgisse um colibri disposto a entrar na brincadeira. A foto fez o maior sucesso, reproduzida até em pôsteres, outdoors e campanhas publicitárias.
Gil Pinheiro foi incumbido de fazer a primeira foto de Fernando Gabeira na sua transição ideológica do vermelho para o verde. Como de praxe, procurou-me na redação para saber que tipo de foto eu queria. “O cara não é líder dos verdes? Bota ele em cima de uma árvore!” Gil era um cumpridor de ordens exemplar. Com surdez avançada, não conseguia controlar o volume da voz e soltou o berro para cima do Gabeira: “Companheiro, sobe nessa árvore aí.” O retratado obedeceu prontamente e Gil voltou para a redação com uma foto maravilhosa do líder ambientalista de camisa e calça vermelhas contra o fundo verdejante de uma exuberante figueira.
O furor criativo do editor muitas vezes contagiava o fotógrafo. Foi o caso de Lena Muggiati, escalada em 1995 para fazer em São Paulo uma matéria com Gugu Liberato, que pleiteava um canal de TV.  Lena - na época sofrendo agudamente da doença do pânico - aventurou-se a atravessar o Viaduto do Chá até a Praça do Patriarca, o local da megalópole com mais transeuntes por metro quadrado. Sabia o que queria e encontrou no camelódromo da praça: um apontador de lápis no formato de um aparelho de TV. O simpático apresentador, líder absoluto do Ibope na época, mostrou-se muito acessível e se dispôs a posar com o brinquedinho. A foto deu capa. Um ano depois outro clique da série foi capa da Amiga, onde o Rei do Domingo estreava uma coluna. Carregava ainda um comentário irônico sobre a audácia do jovem de 36 anos que brigava por um canal próprio de TV, para competir com magnatas como Roberto Marinho e Silvio Santos. 

Descanse em paz, Gugu.

sábado, 16 de dezembro de 2017

Montreux, 1985 - A noite mágica de João Gilberto, segundo Roberto Muggiati

João Gilberto está na Veja dessa semana. Não há música nem poesia nessa matéria de capa. Aos 86 anos, o cantor e compositor, uma lenda da bossa nova, vive um drama pessoal. Há muitos momentos marcantes na brilhante trajetória do genial baiano de Juazeiro desde o seu disco de estreia, o Chega de Saudade, que entrou para a história. Mas sua performance no Montreux Jazz Festival, em 1985, é apontada como a melhor hora de João Gilberto. Foi também uma dramática queda-de-braço entre ele e Tom Jobim, uma confrontação terrível entre as duas figuras maiores de bossa nova. O editor Roberto Muggiati e a fotógrafa Lena Muggiati estavam lá. Aconteceu (na Suíça), virou Manchete...




quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

David Bowie, Justino Martins e o rock



David Bowie fotografado pelo seu amigo Jimmy King. Provavelmente a última imagem do "Camaleão", durante o lançamento do seu 28° álbum. (Reprodução do site oficial de DB. 
Por ROBERTO MUGGIATI
David Bowie me fez lembrar duas ocasiões profissionais importantes na Manchete. Justino Martins tinha voltado a dirigir a revista, depois de mais de cinco anos de desterro – de 1975 a 1980 – quando ocupei o seu cargo. Em 1980, aliás,  codirigimos a Manchete, uma coisa maluca que só podia acontecer mesmo na Bloch. Foi um ano de bonança, graças à visita do Papa João Paulo II: não só esgotamos edições com centenas de milhares de exemplares, como vendemos às pencas uma medalhinha milagrosa supostamente abençoada pelo Sumo, que nem deve ter chegado a saber da tramoia. Frank Sinatra também veio ao Brasil e ajudou a esgotar edições. Em 1981, propus ao Justino que assumisse sozinho a edição – afinal, eu compartilhava a tese dele de que dirigir uma revista é como dirigir um filme: estava criado o “jornalismo de autor”. Continuei na redação como “segundo” do diretor numa boa.
Lairton Cabral, Antonio Rudge, eu, Justino Martins e Wilson Cunha
 (ao fundo, Murilinho e uma das suas gravatas):
tempos de champanhe e flütes de cristal na comemoração do
meu aniversário em 1978. Foto: Acervo RM
Adolpho nunca engoliu o Justino, que chamava de “Índio”, talvez porque fosse o único jornalista da Bloch a encará-lo com altivez. Quando sentiu que eu podia substitui-lo, botou Justino “na geladeira”, Ou melhor, no maior calor, numa redação pequena e entulhada, com o ar condicionado desligado, a de Fatos& Fotos, um andar abaixo da redação de Manchete, no glorioso oitavo. Adolpho criou um ritual de comemorar nossos aniversários com champanhe: os de Justino, com espumante gaúcho barato e morno; os meus, com Moët Chandon francês, resfriado em baldes de prata e servidos em flûtes de cristal maciço, como podem reparar na foto. Apesar da rivalidade estimulada pelo capo da Bloch para aumentar a produtividade (uma tese discutível), em nossos 18 anos de convivência eu e o Justino sempre nos demos bem.
Naqueles tempos de censura eu, que estreara a carreira paralela de escritor com um incendiário Mao e a China – publicado uma semana antes do AI5 – me dei conta de que, como não se podia mais falar abertamente de política, a nova forma de fazer política era através da cultura; mais precisamente, da chamada contracultura. Passei a escrever então sobre rock. Em 1973, publiquei Rock/O grito e o mito, que fez a cabeça de muito jovem e foi adotado em várias faculdades de comunicação do país. Sugeri, ou foi o próprio Justino quem sugeriu, uma série na Manchete intitulada “Os Jovens Que Balançaram o Coreto”. A série começou com Bob Dylan e incluiu uma dezena de perfis, entre os quais o de David Bowie, com o título “Um extraterreno no planeta pop”. Eram perfis dinâmicos e começavam com o “olho” da abertura em página dupla da Manchete:
“Rei do glitter – o rock de plumas e paetês que estourou no início dos anos 70 – David Bowie, mais do que um superstar, é um sobrevivente. Ele nasceu no pós-guerra num bairro pobre de Londres, quase ficou cego, quase foi emasculado, quebrou pernas, mãos e dedos, internou o irmão num asilo de loucos, mas partiu para a luta, com voz, corpo e garra, conquistando o poder e a glória e um lugar privilegiado no Olimpo do rock.”
Depois, transformei aqueles perfis num livro, Rock: do Sonho ao Pesadelo, publicado em 1984 pela L&PM. Fiz até a capa, em parceria com minha mulher Lena, fotógrafa de Manchete. Naquela época sem recursos de computador, foi um trabalho braçal mesmo. Lena fez a foto em cor de uma guitarra e depois a ampliou em papel. Peguei doze retratos de roqueiros em P&B, também em papel, que recortei à mão para dar um efeito rasgado. Espalhei os retratos sobre a foto de fundo da guitarra. Depois cobri tudo por uma placa de vidro e, com um martelo, estilhacei o vidro todo. O Ivan Pinheiro Machado, da L&PM – ele mesmo artista gráfico e capista da maioria dos seus livros – adorou.
Àquela altura, o Justino já tinha partido, em agosto de 1983, consumido por um câncer fulminante em menos de um mês. Foi uma morte simbólica, ocorrida dois meses depois da entrada no ar da Rede Manchete de Televisão. Com a TV, as revistas foram abandonadas e entraram em lenta agonia até a falência de agosto de 2000. (Ironicamente, foi o aval da editora a um empréstimo para a TV que acabou levando à concordata e à falência...)
Mas quero lembrar um estranho momento de rock com o Justino, ainda em 1983. O heavy metal surgira com força total para detonar o rock-de-elevador da New Wave consumido pelos yuppies.
O Kiss na Manchete: uma das últimas edições
paginadas por Justino Martins.
E uma das bandas mais carismáticas do hard rock veio tocar no Brasil, o Kiss. Fui cobrir o show de sábado à noite no Maracanã com minha mulher, Lena, que fotografaria o evento. O carro da Manchete nos pegou em Botafogo e foi depois apanhar o Justino e sua filha adolescente (Maria) Valéria na Joatinga. Era a única filha do Justino, que perdera o Carlito num trágico acidente de carro num Carnaval do início dos 1970. Valéria, com seus 17 ou 18 anos, era a razão de todo esse rock na vida do Justino. Quando o pegamos em sua bela casa na Joatinga, projeto de Zanine, ele estava terrivelmente chocado. Um grave acidente ocorrera naquela manhã: dois pintores que iam trabalhar na casa do Justino foram brutalmente atacados pelos cães da casa, uns rotweillers, se não me engano. O estrago foi grande e os homens tiveram de ser hospitalizados. Justino se sentia, de certa forma, culpado pelo episódio. O motorista, para chegar mais rápido ao Maracanã, fez um percurso insólito: pegou o Túnel Santa Teresa-Rio Comprido. (Fui checar agora no Google: é o primeiro túnel viário construído no Rio de Janeiro, e o único da época imperial, 1887. De soslaio, vi que ali por perto existe uma Rua Marcel Proust – vocês sabiam dessa?) A manobra deu certo e chegamos rapidamente ao Maracanã.
Instalados no curral VIP no gramado do então “maior do mundo”, corri à fila do gargarejo para fazer companhia a Lena, que fotografava diante do palco. Gargarejo é pouco. O líder da banda, Gene Simmons (O Demônio), com sua maquiagem grotesca, vomitava golfadas de uma geleca verde sobre a plateia e... sobrou para mim também. Mais um parêntese – desculpem o cacoete – mas é tanta coisa interessante. Esse Demônio do Kiss era apenas a persona cênica de um pacato cidadão. Cito das folhas roqueiras; “Gene Simmons, nome artístico de Chaim Weitz, nascido num kibutz de Israel, naturalizado norte-americano, ex-professor primário, contrariamente a muitas personalidades do rock afirma ‘nunca ter consumido drogas, nunca ter fumado nem nunca ter bebido álcool demais em toda a vida’.” No mundo louco do rock, tudo é possível. . .
David Bowie, no Metropolitan, em 1997.  Foto: Arquivo Pessoal
A certa altura do show, cansado de toda aquela chuva de gosma verde e do som pauleira, afastei-me do palco e saí à procura do Justino. Fui encontra-lo cochilando de pé, encostado à grade nos fundos do cercado que separava os VIPs da plebe rude. Atribui seu cansaço ao trauma da agressão dos cães, mas depois eu saberia que já era o prenúncio da doença, o câncer minando aquela fabulosa figura humana. Fiquei pensando: o Justino, leitor de André Gide e André Malraux, o Cidadão Cannes – apelido que ganhou por suas visitas anuais ao famoso festival – apreciador da nouvelle vague e do Cinema Novo, logo ele encarando aquele circo de horrores da cultura de massa...
* * * *
Um flash-forward: estamos agora em 1996 e agravou-se aquele eterno conflito em torno da direção da Manchete e das vendas da revista (Alberto me apelidou de Muggi das Crises). Hélio Carneiro ocupou a direção por seis meses, entre fins de 83 e começo de 84. Voltei à berlinda, ou pau-de-sebo. Adolpho morreu em novembro de 1995. Jaquito me chamava às vezes e dizia: “Muggiati, precisamos fazer alguma coisa, pense no futuro dos nossos filhos...” Osias chegava de sorrelfa e sussurrava: “Muggiati, dá um jeito na coisa, senão um belo dia vem aí um executivo paulista de pastinha na mão e assume o teu lugar...” Mas “a coisa” não era nada fácil. Dirigir Manchete era como dirigir a seleção brasileira. Todo mundo – do contínuo ao patrão – se achava capaz de resolver a parada; o técnico é burro, troca o técnico. Enfim, me trocaram em 1996 e, pela primeira vez em trinta anos de Bloch, me vi literalmente alçado ao nirvana. Explico melhor: o prédio original da Manchete, no terreno escavado da rocha a dinamite, na Rua do Russell, 804, foi inaugurado no final de 1968. O segundo prédio, maior em extensão, foi construído no terreno contíguo, onde havia o castelo do advogado José Soares Maciel Filho, o redator da carta-testamento de Getúlio Vargas. As instalações principais da editora mudaram-se para o novo endereço, Rua do Russell, 766, a partir de 1980 – inclusive, e principalmente, a redação da Manchete e o restaurante que, do terceiro andar aberto à beira da piscina, se tornou um  espaço mais seletivo, para editores e executivos, no 12º andar, com ar refrigerado. Ao lado, em direção do Hotel Glória, havia ainda uma casa disponível. Um contínuo apelidado Sammy Davis Jr prometeu ao “Seu” Adolpho que convenceria a proprietária, uma idosa que vivia sozinha, a vender o terreno. Dito e feito. Cinco anos depois, os assédios diários do Sammy Davis vingaram e Adolpho comprou a casa. Ali passou a funcionar em 1986 a terceira extensão da fachada de Niemeyer – bem menor que as outras duas, mas um espaço privilegiado de qualquer forma.
Na "Santa Genovena", uma espécie de 'sala do exílio', na Bloch, vivi uma
 temporada profícua.  Foto: Acervo RM
Quando um editor importado da Pauliceia – como anunciara o Osias – veio finalmente ocupar o meu lugar, eu ganhei um novo cargo, uma espécie de promoção, como Editor de Projetos Especiais, e fui ocupar a cobertura do terceiro prédio, um salão imenso com piso de tábua corrida, unidade autônoma de ar condicionado, com uma escultura do Krajcberg atrás da minha mesa e uma varanda que dava para o cartão postal do Aterro, da entrada da baía e do Pão de Açúcar. Era um local meio destacado do resto da Bloch, acessado por uma escada em forma de caracol, que a velha guarda de bengalas ou com problemas de menisco não se atrevia a escalar; e muita gente nunca achava tempo para ir até lá, de modo que fui poupado de um batalhão de chatos. . . O Alberto, com sua verve infalível, apelidou o lugar de “Santa Genoveva” (aludindo a uma clínica de repouso carioca em que se descobriram casos de maus tratos aos velhinhos.) Para quem fazia uma Manchete por semana, a temporada na “Santa Genoveva” foi profícua. Reeditei uma série de fascículos lançada em 1972, História do Brasil, atualizando-a até o Governo FHC e o Plano Real. Foram 52 fascículos encartados semanalmente na própria Manchete com a intenção de – como diziam os marqueteiros – “alavancar” as vendas. Editei o número especial de 45 anos da revista Manchete, um sucesso editorial, de vendas e publicitário, com 350 páginas. Na área pessoal, lancei pela Ediouro A revolução dos Beatles, que tinha a ver com a data-fetiche de 11 de setembro de 1962 – quando os rapazes de Liverpool gravaram seu primeiro disco em Abbey Road (Love me Do/PS I Love You) e eu iniciava minha temporada de três anos em Londres trabalhando na BBC. O livro foi lançado em 1997, comemorando os 35 anos da data, mas, antes disso eu já havia publicado várias matérias na Manchete comemorando aniversários anteriores.
Pena que a doce vida na “Santa Genoveva” não durou muito. Poucos meses depois da minha ascensão, Jaquito já me fazia voltar ao inferno da redação para editar o número de Carnaval da Manchete: “Estes paulistas não entendem nada de Carnaval...” Não era um bom sinal. Em 31 de agosto de 1997, desci de Itaipava para fechar em poucas horas a edição extra de Fatos&Fotos sobre a morte da Princesa Diana.
Duas coisas boas sobre a mudança: a reforma gráfica do designer milanês Carlo Rizzi, primorosa, que deu uma cara nova à Manchete. E outra, que explica por que qualquer pessoa de fora nunca daria certo na Manchete: o estilo de gestão de Adolpho Bloch, que fugia à padronização dos “quadros”, um estilo posso chamar até de humanista. Cada funcionário era um indivíduo único, com suas virtudes e seus defeitos, do qual Adolpho tentava extrair o melhor que pudesse oferecer para o trabalho comum.
Em 31 de outubro, Dia das Bruxas, uma sexta-feira, o editor paulista pediu as contas e se mandou. Jaquito me ligou comunicando que eu estava de volta à direção da Manchete e que o fechamento da revista na segunda-feira seria por minha conta. É aí que entra David Bowie pela segunda vez nessa história. Eu tinha um camarote no Metropolitan para assistir ao seu show da turnê do álbum Earthling no domingo, 2 de novembro, Dia de Finados. Anteriormente, véspera de fechamento para mim era sagrada e a noite de domingo era de abstinência total. Tinha de estar cem por cento em forma para encarar o desafio da segunda-feira, que se estendia às vezes até a noite de terça. Desta vez, no entanto, eu repensei tudo aquilo e, “existencialista, com toda razão” mandei tudo praquele lugar. Fui ao Metropolitan com meu filho, Roberto, e meu sobrinho, Fernandinho. Tomei todas e curti adoidado o rock do Camaleão Bowie, aquele que catorze anos antes, nas páginas da Manchete, eu batizara de “um extraterreno no planeta pop.”

sábado, 21 de novembro de 2015

Os tempos em que eu bebia o melhor vinho branco do mundo

Reprodução
Por ROBERTO MUGGIATI

Três prazeres entrelaçados: vinho, voo e música. Nos quatro verões consecutivos em que eu cobri para a revista Manchete o Festival de Jazz de Montreux – de 1985 a 1988 – a festa começava já na Sala VIP da Swissair no aeroporto do Galeão, Rio, código GIG (Galeão Ilha do Governador), tudo a ver com música – “gig” de “trabalho”, e Antônio Carlos Jobim, o nome do Aeroporto. Uma ironia póstuma, porque, numa de suas melhores frases de efeito, Tom dissera nos anos 60 que a saída para a música brasileira era o Aeroporto do Galeão.
Reprodução
Pois bem, Jobim ainda vivo – e em 1985 a Noite Brasileira de Montreux reuniu ele e João Gilberto, numa queda-de-braço sangrenta e memorável – viajámos eu e minha mulher, Lena: texto e fotos. Aflito, eu chegava horas antes do voo. Mas valia a pena. A espera, na Sala VIP da Swissair, era inesquecível. Ali degustei o meu primeiro “melhor vinho branco desconhecido do mundo.”
Pouca gente sabe que os vinhedos de Lavaux, nas encostas fronteiras ao lago Léman – olhando para os Alpes do outro lado do espelho d’água – foram tombados como patrimônio mundial pela Unesco. Lavaux, que foi matéria de capa do último suplemento “Paladar” do Estadão, fica bem próxima a Montreux. Ali, durante o festival de jazz, eu privilegiava os vinhos locais, saborosos e inencontráveis em qualquer outro lugar deste vasto mundo.
Minha amiga curitibana, pianista de jazz, Marília Giller, morou uns tempos em Montreux e afeiçoou-se a um certo Pinot Noir de Bex. (Acessei agora na internet, faz 14º em Bex, com pancadas leves de chuva.) Quando fui visitar Marília pela primeira vez em Curitiba, virei mundos e fundos para presenteá-la com esse tinto suíço – recorri até ao setor de importação de La Maison de Suisse, de Riô, nada feito. Tive de me contentar com um Pinot Noir argentino.
Leio agora em O Estado de S. Paulo: “Para a Unesco, a região de Lavaux tem vinhos de caráter único, além de cultura e cenários peculiares. A colheita na região de língua francesa da Suíça é ainda manual. E, mesmo hoje, os produtores fazem pausas durante o dia para, merecidamente, beber seu próprio vinho. Nenhuma máquina é autorizada a entrar nos vinhedos. A produção também repete praticamente as mesmas técnicas usadas por monges beneditinos desde o século  11. Não existe irrigação artificial e o uso de produtos químicos é limitado ao mínimo.”
Não por acaso, homens inteligentes e sensíveis como Charles Chaplin e Vladimir Nabokov escolheram viver seus últimos anos na região.  Brindemos então ao blanc das uvas Chasselas, tchin, tchin – Saúde!