domingo, 17 de abril de 2022

Naufrágios políticos: Do encouraçado Potemkim ao cruzador de Putin • Por Roberto Muggiati

Cruzador Moskva

Sou fascinado por coincidências históricas. Há cem anos, o encouraçado Potemkim encerrava sua gloriosa carreira, transformado em ferro velho. O navio ficou famoso devido à revolta da sua tripulação em 1905, em reação aos maus tratos que sofria, sendo até obrigada a comer carne podre. Ancorado no porto de Odessa, o Potemkim e seus marujos receberam o apoio da população da cidade, que sofreu uma dura represália dos cossacos do Tzar, com o massacre nas escadarias de Odessa. O cineasta Serguei Eisenstein reencenou o episódio em seu filme de 1925, O encouraçado Potemkim, na mais célebre cena em toda a história do cinema, vejam AQUI

O encouraçado passou para o Exército Vermelho depois da vitória da Revolução Comunista na Rússia em 1917. Capturado pelos alemães na 1ª Guerra, foi explodido pelos Aliados para que não caísse nas mãos dos bolcheviques e virou sucata em 1922.

Um século depois, nas mesmas águas do Mar Negro ao largo de Odessa, na quinta-feira 15 de abril, o cruzador russo Moskva, segundo o Pentágono, “foi atingido por dois mísseis Neptune ucranianos e afundou quando era rebocado para reparos, o que desmente a versão de Moscou de que a embarcação teria sofrido ‘danos graves’ por causa de um incêndio.” Nau-capitânia da Frota do Mar Negro, o Moskva era um símbolo do poderio militar russo. Sua destruição foi mais um duro golpe para a arrogância militar russa durante a invasão da Ucrânia.

Crimeia: o barril de pólvora da Europa

A vocação beligerante da região é antiga. Um dos conflitos mais notáveis foi a Guerra da Crimeia (1853-56), que opôs a Rússia a uma coalisão formada por Reino Unido, França, Reino da Sardenha e Império Otomano (com uma pequena ajuda do Império Austro-Húngaro). As potências europeias se uniram para refrear as pretensões expansionistas dos russos. As batalhas se estenderam bem além da Crimeia, chegando a regiões como o Cáucaso, os Balcãs, os Mares Negro, Báltico e Branco e o Extremo Oriente. Outras forças também acabaram se envolvendo: o Imamato do Cáucaso, a Circássia e o Principado da Abecásia, apoiando os Aliados; a Mingrelia e os rebeldes curdos, do lado do Império Russo.

As forças russas totalizavam quase 900.000 homens, as dos Aliados 680.000. As baixas, nos dois anos e meio de guerra, foram colossais: chegaram a 250.000 entre os Aliados e até 500.000 entre os russos. Como efeito de comparação, na década seguinte, a Guerra da Secessão dos Estados Unidos (1861-65) teria o dobro de tropas e o dobro de baixas, mas também duraria o dobro de tempo: mais de quatro anos. E a Guerra do Paraguai (1864-70), que durou cinco anos e quatro meses, opondo a poderosa Tríplice Aliança (Argentina, Brasil e Uruguai), mesmo envolvendo menos tropas – 250.000 do lado da Aliança, 150.000 do Paraguai – teve baixas maiores do que os efetivos, entre os paraguaios, contabilizadas as mortes de militares e civis: 150.000 do lado da Aliança (a maioria dos 100.000 mortos brasileiros foram negros, recrutados para as forças dos “Voluntários da Pátria” com a promessa de libertação da escravatura). Já do lado paraguaio, a guerra teve um efeito catastrófico. De uma população calculada entre 450.000 e 900.000 pessoas, só sobreviveram à guerra 220.000, dos quais apenas 28.000 eram homens adultos.

A carga da Brigada Ligeira em pintura da época 

Voltando à Crimeia, aquela remota guerra da era romântica inspiraria a literatura e particularmente o cinema do século 20, destaque para o filme de Michael Curtiz A carga da Brigada Ligeira (1936), baseado num poema de Alfred Tennyson, com Errol Flynn e Olivia de Havilland, que teria um luxuoso remake colorido em 1968, dirigido pelo britânico Tony Richardson. Veja aqui a famosa cena da carga no filme de Curtiz, mostrando como o cinemão de Hollywood havia assimilado a técnica de montagem do mestre russo Eisenstein

https://www.youtube.com/watch?v=rFk66RXPi5M

Curiosamente, houve também um lado fashion no sangrento conflito. Devido ao frio extremo da região, as famílias das tropas britânicas mandavam gorros tricotados para seus filhos combatentes, que ganharam o nome de Balaclava, local de uma das maiores batalhas da guerra. A balaclava atravessou os tempos para servir aos mais variados propósitos no mundo contemporâneo: como “gorro ninja”, tem ocultado a identidade de policiais, assaltantes, sequestradores e terroristas. Confeccionada com material resistente ao fogo, protege pilotos e mecânicos nas competições de carros e motos no caso de acidentes com incêndio. Dois comandantes britânicos da brigada ligeira emprestaram seus nomes a inovações na vestimenta: Lord Raglan, que teve um braço amputado na batalha de Waterloo, criou a manga de jaqueta inteiriça que se estende até o pescoço. A manga raglan inspirou o estilo das camisetas dos times de beisebol americanos. Lord Cardigan, aposentado no País de Gales depois da Crimeia, enfrentou uma nova guerra contra seus apertados pulôveres. Resolveu a questão com uma tesoura, cortando a frente da roupa. Com o acréscimo de botões, surgiu o cardigã, que voltou a ser um hit da moda nos dias atuais.

Pensando no impensável

A Rússia voltou a cultivar projetos expansionistas na Era Putin, um recalcado agente menor da KGB que passou a alimentar o sonho de ressuscitar o zumbi da União Soviética. Anexou a estratégica península à beira do Mar Negro através da controvertida Adesão da Crimeia e Sevastopol à Federação Russa, assinada em Moscou em 2014. Agora, invade a Ucrânia – bombardeando implacavelmente o país e sua população civil, a pretexto de anexar regiões pró-russas do país. Sem interferir diretamente no conflito, Ocidente reage com sanções e embargos econômicos destinados a isolar a Rússia.

A humilhação e o isolacionismo a que foi submetida a Alemanha derrotada na Primeira Guerra, geraram o arrogante e vingativo Terceiro Reich, potência militar que quase tomou conta do mundo. Putin tem feito advertências constantes, em tom de ameaça, sobre o risco de isolarem a Rússia. A diferença de cenário de 1939 para 2022 é que, nestes oitenta anos, as grandes potências ficaram abarrotadas de arsenais nucleares. E os tiranos que andam por aí – como Putin, Trump (que ameaça voltar), Kim Jung-un – não hesitariam em apertar o botão ao menor gesto de provocação.

 

Um comentário:

J.A.Barros disse...

A Criméia, foi conquistada, dos Tártaros, para o Império Russo, pelo nobre Potenkim, amante da Imperatriz da Russia, a alemã Catarina, a Grande, e fundador da cidade de Sevastopol, no ano de 1783. A Crimeia, localizada entre o Mar Azov e o Mar Negro, é claramente por demais estratégica para a Russia.