quinta-feira, 24 de março de 2022

O Rosa e o Reaça • Por Roberto Muggiati

Nélson Rodrigues na Manchete. Reprodução Foto de Paulo Scheuensthul

Um desfilava seu perfume pelos salões refrigerados da diplomacia. O outro derramava seu suor pelas redações fedorentas dos jornais. Ambos exímios artesãos das palavras, construíram com sua elaborada bricolagem verbal suas mitologias pessoais: o Sertão e o Subúrbio. Estou falando dos dois grandes escritores que marcaram o século 20 brasileiro: o cerebral João Guimarães Rosa (1908-67) e o visceral 

Nélson Falcão Rodrigues (1912-1980) – o yin e o yang de nossa literatura.

Por que trago Nelson à cena nesta altura do campeonato? Porque, com a reedição dos seus romances pela HarperCollins, ele se tornou um de nossos ficcionistas mais publicados. Depois, porque encontrei no camelô da esquina por dez reais uma edição nova em folha de A cabra vadia/Novas confissões, 470 páginas de um Nelson-por-ele-mesmo. Vou dar só uma amostra, que é a primeira das 85 confissões, intitulada “O ex-covarde”, onde ele desfia o rosário de tragédias da família Rodrigues:

“Sofri muito na carne e na alma. Primeiro foi em 1929, no dia seguinte ao Natal. Às duas horas da tarde, ou menos um pouco, vi meu irmão Roberto ser assassinado. Era um pintor de gênio, espécie de Rimbaud plástico, e de uma qualidade humana sem igual. Morreu errado ou, por outra, morreu porque era ‘filho de Mário Rodrigues’. E, no velório, sempre que alguém vinha abraçar meu pai, meu pai soluçava: – ‘Essa bala era para mim.’ Um mês depois meu pai morria de pura paixão. Mais alguns anos e meu irmão Joffre morre. Éramos unidos como dois gêmeos. Durante 15 dias, no Sanatório de Corrêas, ouvi a sua dispneia. E  minha irmã Dorinha. Sua agonia foi leve como a euforia de um anjo. E, depois, foi meu irmão Mário Filho. Eu dizia sempre: – ‘Ninguém no Brasil escreve como meu irmão Mário.’ Teve um enfarte fulminante. Bem sei que, hoje, o morto começa a ser esquecido no velório. Por desgraça minha, não sou assim. E, por fim, houve o desabamento de Laranjeiras. Morreu meu irmão Paulinho e, com ele, sua esposa Maria Natália, seus dois filhos, Ana Maria e Paulo Roberto, e sua sogra, D. Marina. Todos morreram, todos, até o último vestígio. Falei do meu pai, dos meus irmãos e vou falar também de mim. Aos 51 anos, tive uma filhinha que, por vontade materna, chama-se Daniela. Nasceu linda. Dois meses depois, a avó teve uma intuição. Chamou o Dr. Sílvio Abreu Fialho. Este veio, fez todos os exames. Depois, desceu comigo. Conversamos na calçada do meu edifício. Ele foi muito delicado, teve muito tato, mas disse tudo. Minha filha era cega.”

Nelson não menciona outro drama imenso. Ele, que gostava, de se proclamar o Reacionário e cutucar as esquerdas, teve o filho Nelsinho, militante opositor da ditadura militar, preso e torturado e, só então, depois de obter a soltura do rapaz junto aos generais de plantão, reviu suas posições e passou a defender a “anistia ampla, geral e irrestrita”. 

Guimarães Rosa. Reprodução
Guimarães Rosa anda meio esquecido nestes dias de modorra intelectual em nosso país tropical. Merecia – e muito – voltar à atenção dos leitores o homem que escreveu “Viver é muito perigoso: sempre acaba em morte”. O curioso é que a morte de Rosa teve um forte toque rodriguiano. Eleito para a Academia Brasileira de Letras em agosto de 1963, protelou por mais de quatro anos a posse, receando não resistir à emoção da cerimônia. Finalmente, foi recebido por seus pares na quinta-feira, 16 de novembro de 1967. Em seu discurso chegou a afirmar premonitoriamente: “A gente morre é para provar que viveu”. Ao entardecer de domingo, 19 de novembro, morreu de infarto agudo em seu apartamento de Copacabana. Rosa era um dos indicados para o Prêmio Nobel de Literatura daquele ano, que coube a um latino-americano de menor brilho, o guatemalteco Miguel Ángel Asturias.

Nélson Rodrigues também morreu num domingo, três dias antes do Natal de 1980, de complicações cardiorrespiratórias, e foi enterrado também no cemitério de São João Batista – onde sepultaram Guimarães Rosa no mausoléu da Academia. Detalhe: no fim da tarde daquele domingo, o falecido Nélson fazia treze pontos na Loteria Esportiva, num "bolão" com seu irmão Augusto e colegas de O Globo.

Tive o privilégio de conhecer Nélson Rodrigues em carne e osso. Quando adentrava a redação da Manchete, bradava no seu vozeirão abaritonado:

“Salve, Adolpho Bloch, o Cêcil B. de Maille (sic) do jornalismo!” 

Era generoso nos apelidos. Um de nossos colegas, o bronzeado e atlético Cláudio Mello e Souza, foi contemplado com dois: O Remador do Ben Hur e O Havaiano de Ipanema. Numa de suas últimas matérias para a revista Manchete, sobre sua peça A serpente, em 1978, um Nélson já adoentado submeteu-se pacientemente a posar para uma foto com uma ridícula cobra de pano enrolada no pescoço.

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