Mostrando postagens com marcador Guimarães Rosa. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Guimarães Rosa. Mostrar todas as postagens

sábado, 8 de outubro de 2022

Manchete, incubadora de imortais • por Roberto Muggiati

Redação da Manchete, 1972: Ruy Castro e Narceu de Almeida, repórteres da revista,
Foto Acervo Pessoal.

Mais um das nossas cores vai integrar os quadros da ABL. Com o ingresso de Ruy Castro na Academia Brasileira de Letras, a revista Manchete amplia a lista de seus redatores eleitos para a casa de Machado de Assis. Citando à vol d’oiseau, foram o romancista Josué Montello (1954), o teatrólogo e ensaísta R. Magalhães Jr (1956), o jornalista e educador Arnaldo Niskier (1984), o jornalista e poeta Ledo Ivo (1986), o jornalista e escritor Murilo Melo Filho (1999), o historiador e ensaísta Afonso Arinos Filho (1999), o jornalista e romancista Carlos Heitor Cony (2000), o jornalista e escritor Cícero Sandroni (2004).

Paulo Coelho inova: fardão
com espada de samurai.
Esqueci alguém? Sim, logo ele, o homem que mais vende livros no mundo, Paulo Coelho, eleito em 2002 na sucessão de Roberto Campos e recebido por Arnaldo Niskier. Mas o que tem o “mago” a ver com a Manchete

Pouca gente sabe, mas Paulo foi correspondente da revista em Londres no final dos anos 70. Editor da revista na época, lembro de poucas pautas suas: uma matéria sobre o Museu Sherlock Holmes na Baker Street, outra, tipo relatório oficial, sobre a despoluição do rio Tâmisa. Talvez já estivesse tramando as alquimias que fariam dele o autor da obra mais traduzida do mundo, segundo o Livro Guinness dos Recordes.

Tem também uma vinheta histórica envolvendo o radialista da Manchete Roberto Canazio. Funcionário da Academia Brasileira de Letras, ele aparece numa foto segurando a urna em que foram incinerados os votos por carta da polêmica eleição de 1975 em que o ex-presidente JK foi derrotado pelo obscuro escritor goiano Bernardo Elis.

Como saideira, gostaria de lembrar o envolvimento de Ruy Castro, repórter iniciante de Manchete, em 1967, com a posse de Guimarães Rosa na Academia Brasileira de Letras. A memória foi escrita por Ruy 50 anos depois para a Folha de S. Paulo e reproduzida no Panis. Leia a seguir.


SEXTA-FEIRA, 17 DE NOVEMBRO DE 2017

A entrevista que não houve

por Ruy Castro (para a Folha de São Paulo)


RIO DE JANEIRO - Por esses dias de novembro de 1967, há inacreditáveis 50 anos, eu estava telefonando para Guimarães Rosa em nome da revista "Manchete", pedindo uma entrevista.

Naquela semana, Rosa finalmente tomaria posse de sua cadeira na Academia Brasileira de Letras, para a qual fora eleito por unanimidade em 1963. Ainda não a assumira porque, médico e cardíaco, temia não sobreviver à cerimônia. Mas agora era a hora.

Nunca entendi por que Justino Martins, diretor da "Manchete", me confiou a tarefa. A revista estava cheia de repórteres experientes —dois deles os poetas Lêdo Ivo e Homero Homem, certamente amigos de Rosa. Eu tinha, se tanto, seis meses de profissão e acabara de chegar à "Manchete". Mas foi assim. Justino convocou-me à sua mesa, deu-me o número do telefone de Rosa e só me recomendou que chamasse o homem de embaixador —o que Rosa também era.

Naquele mesmo dia, telefonei. O próprio Rosa atendeu e, muito amável, se desculpou, alegando que estava escrevendo seu discurso de posse e não podia parar para dar entrevistas, mesmo que fosse para "Manchete". Eu insisti, "Mas, embaixador...". E ele, firme. Talvez tocado pela evidente juventude do repórter, sugeriu que eu telefonasse no dia seguinte —quem sabe já teria terminado o discurso. Fiz isto, mas, não, ele não havia terminado. Como consolação, disse que, se eu fosse à cerimônia, me daria uma cópia do texto.

Rosa tomou posse na quinta-feira, 16. Ao fim do discurso e sob a chuva de aplausos, saiu pelo salão apertando mãos, como se levitasse. Parecia encantado, não via ninguém –só a mim cumprimentou duas vezes, sem saber quem eu era. E o coração resistiu bem, não o traiu.

Deixou para traí-lo três dias depois, na noite de domingo, 19, no seu apartamento, em Copacabana.

E eu me esquecera de pedir-lhe o discurso.

quinta-feira, 24 de março de 2022

O Rosa e o Reaça • Por Roberto Muggiati

Nélson Rodrigues na Manchete. Reprodução Foto de Paulo Scheuensthul

Um desfilava seu perfume pelos salões refrigerados da diplomacia. O outro derramava seu suor pelas redações fedorentas dos jornais. Ambos exímios artesãos das palavras, construíram com sua elaborada bricolagem verbal suas mitologias pessoais: o Sertão e o Subúrbio. Estou falando dos dois grandes escritores que marcaram o século 20 brasileiro: o cerebral João Guimarães Rosa (1908-67) e o visceral 

Nélson Falcão Rodrigues (1912-1980) – o yin e o yang de nossa literatura.

Por que trago Nelson à cena nesta altura do campeonato? Porque, com a reedição dos seus romances pela HarperCollins, ele se tornou um de nossos ficcionistas mais publicados. Depois, porque encontrei no camelô da esquina por dez reais uma edição nova em folha de A cabra vadia/Novas confissões, 470 páginas de um Nelson-por-ele-mesmo. Vou dar só uma amostra, que é a primeira das 85 confissões, intitulada “O ex-covarde”, onde ele desfia o rosário de tragédias da família Rodrigues:

“Sofri muito na carne e na alma. Primeiro foi em 1929, no dia seguinte ao Natal. Às duas horas da tarde, ou menos um pouco, vi meu irmão Roberto ser assassinado. Era um pintor de gênio, espécie de Rimbaud plástico, e de uma qualidade humana sem igual. Morreu errado ou, por outra, morreu porque era ‘filho de Mário Rodrigues’. E, no velório, sempre que alguém vinha abraçar meu pai, meu pai soluçava: – ‘Essa bala era para mim.’ Um mês depois meu pai morria de pura paixão. Mais alguns anos e meu irmão Joffre morre. Éramos unidos como dois gêmeos. Durante 15 dias, no Sanatório de Corrêas, ouvi a sua dispneia. E  minha irmã Dorinha. Sua agonia foi leve como a euforia de um anjo. E, depois, foi meu irmão Mário Filho. Eu dizia sempre: – ‘Ninguém no Brasil escreve como meu irmão Mário.’ Teve um enfarte fulminante. Bem sei que, hoje, o morto começa a ser esquecido no velório. Por desgraça minha, não sou assim. E, por fim, houve o desabamento de Laranjeiras. Morreu meu irmão Paulinho e, com ele, sua esposa Maria Natália, seus dois filhos, Ana Maria e Paulo Roberto, e sua sogra, D. Marina. Todos morreram, todos, até o último vestígio. Falei do meu pai, dos meus irmãos e vou falar também de mim. Aos 51 anos, tive uma filhinha que, por vontade materna, chama-se Daniela. Nasceu linda. Dois meses depois, a avó teve uma intuição. Chamou o Dr. Sílvio Abreu Fialho. Este veio, fez todos os exames. Depois, desceu comigo. Conversamos na calçada do meu edifício. Ele foi muito delicado, teve muito tato, mas disse tudo. Minha filha era cega.”

Nelson não menciona outro drama imenso. Ele, que gostava, de se proclamar o Reacionário e cutucar as esquerdas, teve o filho Nelsinho, militante opositor da ditadura militar, preso e torturado e, só então, depois de obter a soltura do rapaz junto aos generais de plantão, reviu suas posições e passou a defender a “anistia ampla, geral e irrestrita”. 

Guimarães Rosa. Reprodução
Guimarães Rosa anda meio esquecido nestes dias de modorra intelectual em nosso país tropical. Merecia – e muito – voltar à atenção dos leitores o homem que escreveu “Viver é muito perigoso: sempre acaba em morte”. O curioso é que a morte de Rosa teve um forte toque rodriguiano. Eleito para a Academia Brasileira de Letras em agosto de 1963, protelou por mais de quatro anos a posse, receando não resistir à emoção da cerimônia. Finalmente, foi recebido por seus pares na quinta-feira, 16 de novembro de 1967. Em seu discurso chegou a afirmar premonitoriamente: “A gente morre é para provar que viveu”. Ao entardecer de domingo, 19 de novembro, morreu de infarto agudo em seu apartamento de Copacabana. Rosa era um dos indicados para o Prêmio Nobel de Literatura daquele ano, que coube a um latino-americano de menor brilho, o guatemalteco Miguel Ángel Asturias.

Nélson Rodrigues também morreu num domingo, três dias antes do Natal de 1980, de complicações cardiorrespiratórias, e foi enterrado também no cemitério de São João Batista – onde sepultaram Guimarães Rosa no mausoléu da Academia. Detalhe: no fim da tarde daquele domingo, o falecido Nélson fazia treze pontos na Loteria Esportiva, num "bolão" com seu irmão Augusto e colegas de O Globo.

Tive o privilégio de conhecer Nélson Rodrigues em carne e osso. Quando adentrava a redação da Manchete, bradava no seu vozeirão abaritonado:

“Salve, Adolpho Bloch, o Cêcil B. de Maille (sic) do jornalismo!” 

Era generoso nos apelidos. Um de nossos colegas, o bronzeado e atlético Cláudio Mello e Souza, foi contemplado com dois: O Remador do Ben Hur e O Havaiano de Ipanema. Numa de suas últimas matérias para a revista Manchete, sobre sua peça A serpente, em 1978, um Nélson já adoentado submeteu-se pacientemente a posar para uma foto com uma ridícula cobra de pano enrolada no pescoço.

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

A entrevista que não houve

por Ruy Castro (para a Folha de São Paulo)

RIO DE JANEIRO - Por esses dias de novembro de 1967, há inacreditáveis 50 anos, eu estava telefonando para Guimarães Rosa em nome da revista "Manchete", pedindo uma entrevista.

Naquela semana, Rosa finalmente tomaria posse de sua cadeira na Academia Brasileira de Letras, para a qual fora eleito por unanimidade em 1963. Ainda não a assumira porque, médico e cardíaco, temia não sobreviver à cerimônia. Mas agora era a hora.

Nunca entendi por que Justino Martins, diretor da "Manchete", me confiou a tarefa. A revista estava cheia de repórteres experientes —dois deles os poetas Lêdo Ivo e Homero Homem, certamente amigos de Rosa. Eu tinha, se tanto, seis meses de profissão e acabara de chegar à "Manchete". Mas foi assim. Justino convocou-me à sua mesa, deu-me o número do telefone de Rosa e só me recomendou que chamasse o homem de embaixador —o que Rosa também era.

Naquele mesmo dia, telefonei. O próprio Rosa atendeu e, muito amável, se desculpou, alegando que estava escrevendo seu discurso de posse e não podia parar para dar entrevistas, mesmo que fosse para "Manchete". Eu insisti, "Mas, embaixador...". E ele, firme. Talvez tocado pela evidente juventude do repórter, sugeriu que eu telefonasse no dia seguinte —quem sabe já teria terminado o discurso. Fiz isto, mas, não, ele não havia terminado. Como consolação, disse que, se eu fosse à cerimônia, me daria uma cópia do texto.

Rosa tomou posse na quinta-feira, 16. Ao fim do discurso e sob a chuva de aplausos, saiu pelo salão apertando mãos, como se levitasse. Parecia encantado, não via ninguém –só a mim cumprimentou duas vezes, sem saber quem eu era. E o coração resistiu bem, não o traiu.

Deixou para traí-lo três dias depois, na noite de domingo, 19, no seu apartamento, em Copacabana.

E eu me esquecera de pedir-lhe o discurso.