domingo, 10 de janeiro de 2021

Da série Duelo no BLOK Corral • Por Roberto Muggiati

 

1975: Magalhães Júnior vs. João Antônio


Magalhães Júnior. Foto de Antonio Rudge/Manchete


Na Rua General Glicério tem uma espécie de pombal, uma caixinha com portinhola de vidro, destinada à doação ou troca de livros. Nunca encontrei algo que me interessasse ali, mas no último sábado foi diferente. Peguei logo a edição de bolso de Malagueta, Perus e Bacanaço, que João Antônio publicou em 1963 aos 28 anos. Tinha meus motivos pessoais: João Antônio trabalhou comigo na Manchete. Dez anos depois de publicar o elogiado livro de estreia, casado, com um filho pequeno, ele ganhava a vida como repórter da revista. Literatura – especialmente do seu tipo – não enchia a mesa de ninguém nesse país, particularmente nos tempos da ditadura militar. Amargurado, queima seu tempo e talento a escrever textos banais na semanal ilustrada das capas com mulheres bonitas, da qual me tornei o editor-chefe a partir de 1975. As matérias dos repórteres são reescritas por redatores mal-humorados, o R. Magalhães Júnior era o pior deles. Uma tarde, alto e bom som, na presença de toda a redação, ele achincalha um texto escrito pelo elogiado cronista do submundo, herdeiro de João do Rio e de Lima Barreto. João Antônio submete-se à humilhante reprimenda do Magalhães em silêncio. Ao voltar para casa, tem um surto de violência e quebra o apartamento inteiro. É imediatamente internado no Pinel, o manicômio de nove entre dez intelectuais cariocas.


A vida de João Antônio tomou outros rumos. Largou mulher e filho, viveu na Alemanha com uma bolsa de estudos e, ao voltar, concentrou seus esforços exclusivamente na literatura. Isolado como um eremita num apartamento na Praça Serzedelo Correa, em Copacabana, sua morte, aos 59 anos, só foi descoberta quinze dias depois.

Já o irascível – e, em raríssimos momentos, doce Raimundo Magalhães Júnior, morreu em 1981, aos 74 anos, atropelado quando atravessava teimosamente as pistas largas do Flamengo diante do prédio da Manchete. Para mim, foi um suicídio acidental. Dias antes, ao enfiar na cabeça a boina basca para ir embora, Magalhães confidenciou para mim: “Muggiati, que saber de uma coisa? Estou cansado. Acho que já vivi demais...”


1974: Maurício Gomes Leite vs. Sebastião Uchoa Leite

Sexta-feira, dia 25 de fevereiro de 1974, a redação do Russell a todo vapor fechando a matéria do pavoroso incêndio do Edifício Andraus, em São Paulo, ocorrido na véspera. Todo mundo fica com os nervos à flor da pele nestas ocasiões. 

Mauricio G. Leite


Sebastião Uchoa Leite 

O chefe de redação é o mineiro Maurício Gomes Leite (seu apelido: Maurício Gomes Leiaute), que tenta agilizar o fechamento das páginas para a gráfica. Tem um redator novo, uma espécie de estranho no ninho, com quem Maurício implicou desde o primeiro minuto. Por acaso seu sobrenome coincide com o do Maurício: Sebastião Uchoa Leite. É realmente uma figura fechada no seu universo e poeta de qualidade, não tem a menor paciência para fechar leiautes. Por um motivo fútil qualquer, Maurício e Sebastião começam a bater boca na redação e imediatamente vão às vias de fato, sendo separados pela turma do deixa-disso. Sebastião é sumariamente demitido. Maurício, das facções godardianas da crítica de filmes de BH, havia estreado como diretor do cinema novo em 1968 com A vida provisória. 

Em 1977 o visitei em Paris num pequeno apartamento ao lado da Torre Montparnasse, casado com a filha do Ministro das Relações Exteriores Azeredo da Silveira e com um bebê recém-nascido, que chorava sem parar. Graças ao sogro, tinha arranjado um emprego de tradutor na Unesco. 

Segundo um texto recente de seus camaradas cinéfilos mineiros, Maurício teria morrido em Paris sozinho e amargurado, em 1993, aos 57 anos. 


Já Sebastião Uchoa Leite, fez carreira discreta de poeta conceituado e morreu do coração aos 68 anos. Ignoro se foi cremado ou sepultado, mas, previdente, desde os tempos da Manchete ostentava já o seu epitáfio, assumindo toda o seu estranhamento social: “Aqui jaz, para o seu deleite, Sebastião Uchoa Leite.” 


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