segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

O atropelamento e a morte de Otto Maria Carpeaux numa sexta-feira de Carnaval • Por Roberto Muggiati

Otto Maria Carpeaux
Foto Manchete
O primeiro não foi necessariamente causa do segundo, final e irreversível. Houve um hiato de três ou quatro anos entre os dois acontecimentos. Colaborador mais assíduo da série “As obras-primas que poucos leram” – publicada semanalmente pela Manchete entre 1972 e 1977 – Otto Maria Carpeaux costumava entregar pessoalmente seus textos na redação, geralmente a mim, secretário e depois editor-chefe. Ao contrário do que possa parecer, isso não implicava nenhum convívio ou papo literário. Ele meramente levava seu artigo à redação. Postava-se à minha frente do outro lado da grande mesa de edição, mudo, fazendo uma última leitura do texto impecavelmente datilografado por sua mulher, Hélène Silberherz (1899-1988), cantora que conhecera em Viena e com quem se casou em 1930, aos trinta anos. Inseria uma ou outra palavra com caneta esferográfica em sua letra miúda e serrilhada. Nas poucas vezes que falou comigo, mostrou um problema acentuado de dicção, as mandíbulas emperravam. Apresentava-se sempre elegante, de terno e gravata, com exceção da vez em que foi insolitamente atropelado diante do prédio do Russell, quando os carros ainda trafegavam em direção ao centro da cidade. O motorista freou antes de tocar levemente no escritor distraído, que foi ao chão, num tombo em câmera lenta sem maiores consequências. Dois homens da portaria o ampararam até a redação. Carpeaux estava inteiro e ficou amuado com todos aqueles cuidados. Desvencilhou-se, espanou com a ponta dos dedos a poeira que ainda restava sobre as ombreiras do paletó e tirou o texto da pequena pasta de couro. 

Carpeaux escreveu a maior parte dos 200 artigos da série. Não só explicou admiravelmente ao leigo clássicos como O castelo, de Kafka; Crime e castigo, de Dostoievski e Madame Bovary, de Flaubert, como mostrou sua versatilidade ao analisar o romance cult de J.D. Salinger O apanhador no campo de centeio. O mais notável é que só aprendera o português aos quarenta anos de idade, quando chegou ao Brasil em 1939, fugindo do nazismo. 

Judeu, nascido Otto Karpfen em Viena em 1900, participou ativamente da vida cultural da Áustria e da Alemanha, antes que a ascensão do hitlerismo começasse a lhe trazer problemas. Convertido ao catolicismo em 1933, acrescentou “Maria” ao nome e afrancesou o sobrenome para Carpeaux. Com a anexação da Áustria pela Alemanha, Carpeaux e a mulher foram obrigados a fugir, deixando para trás a mãe (o pai já tinha morrido) e levando consigo apenas um missal. Depois de um breve período em Antuérpia, na Bélgica, o casal pegou um navio para o Brasil, justo quando a Segunda Guerra se iniciava, com a invasão da Polônia pela Alemanha em 1º de setembro de 1939. Excepcionalmente dotado para línguas – falava alemão, francês, italiano, inglês, catalão, galego, provençal, servo-croata e latim – em um ano aprendeu e dominou o português. Por seu saber incomparável, Carpeaux traria, nas quatro décadas seguintes, uma contribuição vital para a cultura brasileira, em projetos individuais e coletivos. Sua predominância na série da Manchete é apenas uma amostra da incrível capacidade de trabalho. 

Eu já não o via mais desde que a série terminara em 1977. Na sexta-feira, 3 de fevereiro de 1978, estou na Praça Tiradentes com minha mulher, Lena, bisbilhotando a explosão do Carnaval gay, que costumava abrir com o Baile da Paulistinha. O lugar mais improvável para saber que Otto Maria Carpeaux – o homem que falou com Kafka em Berlim – morrera de um ataque cardíaco. A notícia foi trazida pelo Cony, que tinha ido ao enterro naquela tarde. Involuntariamente, Cony, Lena e eu – com olhares vagos para a folia ao nosso redor – fizemos um minuto de silêncio.

Um comentário:

Natanael disse...

Belíssimo texto, meu caro. Este austríaco foi verdadeiramente um grande da literatura.