sábado, 6 de abril de 2019

O Brasil – acreditem – já foi elegante: pelo menos nos cinco anos em que circulou a revista Senhor • Por Roberto Muggiati

Cenas cariocas clicadas pela Senhor: Didu Souza Campos, o apanhador no campo de polo. 
Fotos: Reproduções Senhor


A capital do país mudou para o Planalto, mas os cariocas não tomaram conhecimento. Quando surgiu a sigla da construtora de Brasília, Novacap, eles batizaram sua cidade de Belacap – e capital da beleza nacional o Rio continuou sendo, e também da inteligência.

A beleza se media nos badalados concursos de Miss no Maracanãzinho. Já o talento intelectual passava a desfilar na passarela de uma nova revista, lançada há exatos 60 anos, em março de 1959. Sediada no Rio, ela começou com o logotipo SR. – a palavra SENHOR inserida verticalmente na perna do R, e o lema “Uma revista para o senhor". Seu modelo era mais a intelectualizada Esquire do que a Playboy, que estourava nas bancas dos EUA com suas louraças peladas. Senhor tratava de elegância, etiqueta, política, economia e literatura (publicando contos e crônicas), mas não deixava de ter um olho arregalado também para mulher bonita, embora não exibisse corpos nus como alcatra num açougue, A praia da Senhor (o logotipo passou a aparecer por extenso a partir de abril de 1960) era o bom gosto e a sofisticação. Formulava um estilo de vida para o novo homem brasileiro que emergia do desenvolvimentismo de JK.

Walter e Elisinha Moreira Salles na SR.

O Melhor da SR revisitado em 2012

Eram tempos vibrantes: bossa nova, cinema novo, Sputnik, beats, cool jazz, revolução cubana – e, claro, revolução sexual. Todos esses temas encontravam espaço nas páginas da Senhor. O aquecimento do mercado garantia um respaldo publicitário para manter a Senhor nas bancas todo mês, com anúncios de moda, bebidas, cigarros, automóveis, eletrodomésticos, aparelhos de som, linhas aéreas. Foi uma bela aventura jornalística e cultural que durou até janeiro de 1964, um total de 59 edições, que tiveram sua memória resgatada em 2012 pela antologia facsimilar O Melhor da SR, ideia e coordenação de Maria Amélia Mello, organização de Ruy Castro (520 páginas, incluindo o suplemento SR. Uma senhora revista, Imprensa Oficial de São Paulo).

Revejo com satisfação e – por que não? – orgulho, minha assinatura no ensaio em página dupla “Os Moralistas Corruptores”, que a Senhor publicou em outubro de 1962, quando eu já estava em Londres, trabalhando no Serviço Brasileiro da BBC.

Rebolado segundo José Ramos Tinhorão

Senhor, agosto de 1961

Vinicius fala de poesia com Antonio Maria

Garrincha no ultimo número, janeiro de 1964. A foto de Alberto Ferreira foi Prêmio Esso. 
Meu trampolim para a Senhor foi o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, que saía aos sábados. Graças a Nelson Coelho, minha “conexão zen" em São Paulo, publiquei meus primeiros artigos no sdjb. (Um deles, sobre Jack Kerouac, me valeu um cartão postal do “rei dos beats”, datilografado na mesma máquina em que ele escreveu On the Road, a única correspondência de Kerouac com um brasileiro.) Em 1960, numa promoção da Esso, fui indicado pela Gazeta do Povo de Curitiba para fazer um estágio no Diário Carioca. Aproveitando a estada no Rio, visitei a redação da Senhor em Copacabana, na Rua Santa Clara, 344. Passaria por lá de novo em 1962, entre uma bolsa de estudos em Paris e o emprego na BBC de Londres. Entreguei a Paulo Francis a tradução que eu tinha feito do conto de J.D. Salinger, “Um Dia Perfeito para Peixebanana”. Francis publicou o conto de Salinger em julho de 1962, mas omitiu o crédito da tradução. Reclamei horrores, é claro. Quanto ao Salinger, imaginem só, fomos espoliar logo o mais ferrenho defensor dos direitos autorais. Eu simplesmente li o conto, adorei e traduzi. E o Francis, sem maiores burocracias, encaminhou à diagramação para publicar. Naquele tempo, realmente, não havia pecado abaixo do Equador... Só mais recentemente me dei conta de que, embora anônimo, fui o primeiro brasileiro a publicar uma tradução do Salinger.

Lembro meu primeiro contato com a equipe – estelar, mas simpática e acessível. Reynaldo Jardim, mestre da diagramação que criou os revolucionários espaços em branco no Jornal do Brasil; a sofisticada Bea Feitler, na flor dos seus 21 anos, que depois iria brilhar em Nova York como chefe de arte nas revistas Harper’s Bazaar, Vanity Fair e Rolling Stone; Nahum Sirotsky, um dos primeiros diretores da Manchete; Cláudio Mello e Souza, poeta neoconcreto, recém-batizado por Nelson Rodrigues de “o remador do Ben-Hur” (o filme fora lançado naquele mesmo ano da Senhor); Luiz Lobo, um dos melhores textos de nossa imprensa; Ana Arruda, sua contrapartida feminina. Cito aqueles que frequentavam a redação e que conheci pessoalmente. Os colaboradores eram uma plêiade que fez história na cultura brasileira: Manuel Bandeira (O biquíni é casto), Drummond, Clarice Lispector, os Antônios (Callado e Maria), os Ottos (Lara Resende e Maria Carpeaux), Ferreira Gullar, Millôr Fernandes, Rubem Braga, Tom, Vinicius e por aí vai. Foi na Senhor que Jorge Amado publicou em primeira mão a novela “A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Agua”; e Guimarães Rosa o conto "Meu Tio, o Iauaretê”.

O aspecto visual da revista marcou época, criado com ousadia por artistas plásticos como Carlos Scliar, Darel e Glauco Rodrigues, pelos cartunistas Claudius e Jaguar e por fotógrafos como Armando Rozario, Flávio Damm e Fulvio Roiter.

Eu estava no Rio em 1960 quando Jorge Amado organizou o Festival do Escritor. Jean-Paul Sartre lançou o livro Furacão sobre Cuba e passei horas agradáveis na fila quilométrica dos autógrafos em companhia dos novos amigos da Senhor. Um ingênuo perguntou a Sartre quando ele escreveria sobre o Brasil. “Façam primeiro sua revolução” – disparou o escritor. O Festival Sartre & Simone no Brasil durou mais de dois meses. Meu professor de filosofia em Curitiba, Fausto Castilho, conseguiu convencer Sartre – que proclamara em 1955 “Não pode haver mais filósofos neste momento” – a falar especificamente sobre filosofia na famosa Conferência de Araraquara.

Na palestra do autor de A Náusea, na Faculdade Nacional de Filosofia e Letras, no Rio, quem roubou o show foi um colaborador da Senhor (e depois da Manchete), o romancista Carlos Heitor Cony, que provocou Sartre com a pergunta: “Por que o senhor não se suicidou aos 35 anos?” Referia-se a um conceito que o escritor defendera em seus romances. Sartre fuzilou Cony com seu olhar zarolho, mas deu uma resposta ponderada e filosófica. Pouco antes de morrer, falando sobre a revista, Cony lembrou: “Eu trabalhava no Correio da Manhã, um jornal sério. Na Senhor tinha mais liberdade para escrever.  Foi uma época que me deixou muita saudade."

Não só você, Cony: a Senhor deixou saudades nas dezenas de jornalistas que passaram por suas páginas brilhantes.

Um comentário:

Eliana disse...

Leitura contra o baixo astral. Obrigado