terça-feira, 21 de julho de 2015

A estrela do David


Por ROBERTO MUGGIATI

Outro da Bloch que se foi, David Klajmic. Certa vez o David me deu um presente. Sou eternamente grato. Foi um relógio de pulso Mondaine. Aproximou-se da grande mesa do editor, por trás da qual eu me protegia – dez metros por dez metros, em ângulo reto – e me entregou o estojo dizendo: “Com os agradecimentos do Egon.” Egon era o pai do Michel Frank, envolvido até a medula na morte de Cláudia Lessin Rodrigues. O dono dos relógios Mondaine agradecia porque tínhamos em mão um dossiê completo do caso e não o publicamos. Os agradecimentos – e um milhão de relógios – deveriam ser endereçados ao Oscar Bloch Sigelmann, que proibiu a redação da Manchete de publicar a matéria.
Na quarta-feira, 7 de setembro de 1977, as bancas estariam fechadas. Tínhamos de antecipar o lançamento da revista para terça. O fechamento da edição foi marcado para um ensolarado domingo, 4 de setembro. Desci cedo da Serra no meu fusca com meu sobrinho Sérgio, que tinha acabado seu casamento com a australiana Jane. Encerrava-se toda uma temporada de fins de semana no Sítio do Sossego, em Nogueira. Meu casamento também começava a terminar. Um fechamento de Manchete num domingo era um verdadeiro terror. Cheguei ao prédio do Russell às dez da manhã e arregacei as mangas. Os patrões já estavam lá, excitadíssimos – o Adolpho, o Oscar e o Jaquito, que Adolpho denominava “a Troika”, em alusão ao trio que reinava na União Soviética. De camisa esporte nestes dias festivos, adrenalina a mil, eles adoravam brincar de jornalista e interferir ostensivamente no nosso trabalho. A grande história do momento era a morte de Claudia Lessin Rodrigues, cujo corpo fora encontrado nas rochas da Avenida Niemeyer numa segunda-feira no final de julho. Uma dupla da revista – o repórter Tarlis Baptista e o fotógrafo Adir Mera – voltava de um trabalho na Barra e parou ao ver a movimentação policial. O Mera fotografou toda a operação de resgate do corpo – a lembrança daquelas fotos em preto e branco da nudez juvenil de Cláudia Lessin me persegue até hoje. Tarlis prosseguiu, com seu instinto de cão farejador, atrás de todas as pistas possíveis.  Tamanha persistência foi premiada. Às dez horas da noite daquele domingo ele voltou exultante de um encontro que tivera numa churrascaria do Meier com o detetive Jamil Warwar. Trazia em mãos o dossiê completo do caso, ouro puro.
Oscar Bloch Sigelmann pegou o telefone da minha mesa e ligou para Egon Frank, pai de Michel. “Olá, Egon, temos aqui a versão completa do dossiê policial, mas não vamos publicar, de jeito nenhum. Você pode contar conosco.” Os anúncios da Mondaine eram importantes na receita da Bloch. Jornalismo é isso aí. A Manchete nada publicou e outra cópia do Dossiê Warwar foi entregue de bandeja ao repórter da Veja Valério Meinel, que ganhou o Prêmio Esso de Reportagem daquele ano com a matéria de capa.
Oscar me odiava cordialmente. “Muggiati, quando o Adolpho morrer, o primeiro que eu vou demitir é você.” Bipolar, às vezes me beijava e dizia: “Você é o maior editor da Manchete de todos os tempos!” Ironia da sorte, embora mais jovem do que seu tio Adolpho, morreu antes e só demitiu a si mesmo. David Klajmic tinha autoridade moral sobre o Oscar. Quando o Célio Lyra sofreu uma estafa, David intercedeu para que ele tivesse o melhor tratamento no Samaritano. As contas do hospital VIP assustaram os Bloch. David aproveitou o susto para convencer os patrões a fazerem uma permuta com a Golden Cross e garantiu assim, por alguns anos, um plano de saúde para os funcionários. A última vez que vi David foi no enterro do Célio Lyra, no São João Batista, no canto mais distante do cemitério, quase perto do Rio Sul. Tudo com o Célio era complicado, até a morte: o caixão não cabia na vaga junto à parede e teria de ser serrado. Saí antes do fim. Encontrei o David sentado num banco no portão de entrada do cemitério. Não acompanhara o enterro até aquelas lonjuras. Parecia cansado, tomado por aquele cansaço mortal que abateu muitos de nós depois que o Império Bloch se desmantelou.
Neste próximo 1º de agosto a falência da Bloch Editores completa quinze anos. Quinze anos de solidão, sofrimento, doença, morte e agruras.
Meu caro David Klajmic, muito obrigado pelo reloginho Mondaine, que, como todo relógio popular, se esfacelou em poucos meses. Obrigado, mais do que tudo, pela lição de jornalismo – e de vida.

  

4 comentários:

J.A.Barros disse...

Nos 25 anos que trabalhei na Manchete, uma das pessoas que me impressionou e marcou foi a personalidade de David Klajmic Diretor do Departamento de publicidade da Editora sempre foi um amigo e companheiro. Verdadeiro e franco nas suas polemicas v ai deixar um buraco imenso junto aos amigos que o cercavam. Até lá David.

Alexandre Raposo disse...

"Esse cansaço mortal" é realmente devastador. Mas ficam as boas lembranças. Vida que segue...

Nelio Horta disse...

Que bela matéria Mugg. O seu texto, com detalhes do convívio com os Bloch, e com o David Klajmic, que morreu esta semana, me fez reviver os 38 anos que tive na Empresa. Ao lado de grandes colegas, como você, verdadeiros irmãos, nos ”tapas e beijos” diários, apesar das Redações e funções diferentes . Parece que eu estava ali, vendo o “seu” Adolfo e o Jaquito falarem, enquanto o “seu” Oscar, com seu “falso sorriso” vociferava. Do tempo que estive na Bloch, a maior parte foi na Pais&Filhos, onde recebi do “seu” Oscar, o maior “esporro”, me responsabilizando, pelas ausências de alguns redatores. O Roberto Antunes, foi testemunha. Só no final, já na ELEELA, tive o prazer de conviver com você Mugg., um grande aprendizado, um grande diretor. As revistas da “segundona” , como as nossas, tinham pouco contato com a publicidade e com o David. Mas sempre havia tempo para falarmos de algum novo projeto em tom descontraído. Até qualquer dia David. Descanse em paz!

Esmeraldo disse...

Bom amigo e um grande parceiro nos anos loucos da Fatos & Fotos. Às vezes, surgiam nas reuniões de pauta projetos sem aviso prévio do tipo de cadernos especiais de Jeans, Verão, Turismo etc e David era sempre convocado para correr atrás de anunciantes, geralmente pra ontem. Reclamava, com razão, mas saía em campo. Há poucos meses, em função da edição de uma pequena revista institucional, reencontrei-o. Almoçamos em um restaurante no centro da cidade, em companhia de Juvenil Siqueira, o resistente produtor gráfico da ex Bloch, perto do Sindicato dos Publicitários, seu local de trabalho. Nos últimos meses, ficamos em contato por email em função dos vários números da revista. E chegamos a esboçar um projeto de uma edição especial sobre Rio 450+Carnaval+Rio Olímpico. Tivemos que preparar algumas páginas-piloto e uma das duplas era do Maracanã, o que nos fez relembrar uma das "tradições" da Manchete: o "bonde', na verdade uma das Rural Willys da empresa, que levava a turma à tribuna da imprensa do estádio em noite de jogo. O famoso "bonde" era comandado pelo Tarlis, que ditava ao motorista até a melhor rota, às vezes nem tanto, para evitar o trânsito, o que gerava animadas discussões até a chegada ao portão 18 do Maraca. O projeto Rio 450 deu em nada, abatido pela crise, mas valeu pelos bate-papos retomados nessas breves reuniões. Descanse em paz, David.