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segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Lairton Cabral: lá-áá, lá-áá, nosso viajante-mor da Alfa Bravo... • Por Roberto Muggiati

Redação da Manchete, 6 de outubro de 1977, meus quarenta anos comemorados com champanhe francês. O tipo de mix que só a Bloch sabia reunir: Aloisio Neves, preso recentemente na Operação Quinto do Ouro; Wilson Cunha, chefe de redação e crítico de cinema; eu, editor da revista Manchete; Lairton Cabral, o factótum do império de comunicação da Bloch; e o Marechal, chefe dos contínuos e espião-mor de Adolpho Bloch, incluído nos anos 50 na lista dos dez homens mais elegantes do Rio de Janeiro do Ibrahim Sued.


Durante anos, eu ligava para o Lairton Cabral no dia 5 de outubro e lhe desejava um Feliz Aniversário. Confesso que fiquei um pouco relapso depois da falência da Bloch em 2000. Ele, não – me telefonava religiosamente todo 6 de outubro. A sucessão dos librianos na Manchete começava no dia 4 com George Gurjan, passava por Lairton, por mim e prosseguia com Vera Gertel (7), Adolpho (8), Jaquito (10), Jader Neves (13), Murilo Melo Filho (14). Alberto – nosso humorista-mor – desguiava para Escorpião em 28 de outubro e a lista fechava com Oscar Bloch Sigelmann em 1º de novembro – reparem, estes 28 dias incluíam o Círculo do Poder, que Adolpho chamava a Troika: ele, o Oscar e o Jaquito. 

Colado ao chefe, como a fiel secretária Marta, Lairton tinha, entre suas múltiplas funções, a de “tirar” passagens aéreas para deus-e-todo-mundo. A certa altura da década de 1960, a Editora Abril simplificou o problema das viagens dos funcionários criando uma agência de turismo própria: não só minimizava seus custos, como faturava com as viagens dos outros. Ao longo das décadas, Lairton continuou sendo a agência-do-eu-sozinho da Bloch e imaginem a imensidão de suas responsabilidades quando, a partir de 1983, a empresa ampliou suas atividades com a Rede Manchete de Televisão. Isso incluía megacoberturas como as Olimpíadas e as Copas do Mundo, além de outras movimentações de reportagens e dramaturgia. A novela Pantanal, recorde de audiência histórico, foi toda filmada no Mato Grosso. A novela Brida, inspirada no romance de Paulo Coelho, teve suas sequencias de abertura todas filmadas na Irlanda. E lá ficava o Lalá até a meia-noite colado ao telefone na caixa de cristal do Russell. 

Ao contrário da Abril, que privilegiava a “cultura do memorando”, na Bloch tudo se fazia pelo telefone. A atuação empresarial de Adolpho Bloch acontecia no reduzido espaço de poucos centímetros quadrados da mesa da secretária Marta, onde o capo apoiava o cotovelo, comandando: “Ligue pra Fulano!” “Telefone para Sicrano” “Me chama aquele cagalhão de Lucas!” 

Lairton também ganhava seu dia de lápis e papel na mão e fone colado ao ouvido durante sua longa jornada. Conhecia oralmente todos e todas as agentes e recepcionistas de companhias aéreas do país. Alguns – algumas – eram relações de anos e tinham adquirido até certa intimidade. Lalá era mestre no jargão do metiê. Sabia usar o Alfabeto Fonético como poucos. Ironicamente, ao requisitar uma passagem para o chefe – que estava geralmente por perto – baixava o volume de voz: justo o nome do desafeto aparecia duas vezes no de Adolpho. “A de Alfa, D de Delta, O de Oscar, P de Papa, H de Hotel, O de Oscar.” 

Às vezes o visitante desavisado ao gabinete do Presidente – entrava quem queria, à hora que queria – topava com uma situação insólita: Adolpho Bloch de calças arriadas recebendo no glúteo uma injeção aplicada por Lairton, que, entre outras coisas, tinha noções de paramédico.

Há dois ou três meses, Lalá me ligou, com a voz lépida e fagueira de sempre: “Muggi, estou fazendo sessenta anos... de casamento. Casei mocinho, eu tinha vinte e três anos,” Contestei a aritmética do amigo: “Peraí, Lalá! Há sessenta anos você tinha vinte e dois. Em outubro nós vamos fazer oitenta e três!” 

A tergiversação quanto à data tinha já um ar premonitório. Não vou poder mais desejar Feliz Aniversário ao Lairton no próximo cinco de outubro, Nem receber dele as felicitações no dia seguinte, Mas, de uma coisa estou certo. Recitando o Alfa-Bravo como só ele sabia, embarcou numa bela viagem de primeira classe...

sábado, 22 de agosto de 2020

Lairton Cabral: um amigo que se despede

 


Lairton Cabral 


por José Esmeraldo Gonçalves

Dez entre dez jornalistas que passaram pela Bloch viram, em algum momento, essa imagem, ao vivo. 

Lairton Cabral na sua sala do oitavo andar do prédio da Rua do Russel, ao telefone. 

Lalá, como era carinhosamente chamado nas internas da Manchete, tinha multifunções executivas junto à diretoria da empresa, mas para as redações era o eficiente "agente de turismo" que marcava as passagens aéreas das equipes de reportagem, reservava hotéis e transportes locais. Não era pouco trabalho para atender à rotina de cerca de 20 revistas. Uma publicação como a Desfile cobria as semanas da moda em Paris, Milão e Nova York e, além, disso, pelo menos uma vez por ano, levava à Europa repórteres, fotógrafos, modelos e produtoras para edições especiais de coleções de verão. A Manchete, que investia regularmente em viagens internacionais ou pelo Brasil, tinha as grandes coberturas fixas, do tipo Copas do Mundo, Olimpíadas, Copa América etc que mobilizavam comitivas numerosas, muitos deslocamentos e até roteiros imprevistos determinados pelos resultados esportivos. Problemas que  pousavam na mesa do Lairton e de lá decolavam perfeitamente resolvidos. 

Quando a Bloch instalou a Rede Manchete, Lairton assumiu, com a calma de sempre, as intensas demandas logísticas da TV. Ele chegou à empresa em julho de 1968, vindo da antiga Panair, para secretariar as redações. Com o tempo, ganhou novas funções próximas à "sala de crise", de Adolpho Bloch e Pedro Jack Kapeller, onde paravam as mais diversas situações em busca de soluções. 

Na coletânea "Aconteceu na Manchete, as histórias que ninguém contou" (Desiderata), Lairton recordou um desses casos. 

"Adolpho era um homem de objetivos e movia mundos para alcançá-los. Certa vez, ele convocou à sua sala o diretor de teatro Flávio Rangel e lhe pediu que fosse a Santiago do Chile para assistir ao musical Pippin, em cartaz na capital chilena. 'Quero montar essa peça aqui no nosso teatro. Dizem que é uma maravilha. Quero sua opinião", falou Adolpho. Espantado, Flávio, que para o governo militar era um subversivo perigoso, respondeu que não o deixariam viajar, ainda mais para o Chile, que abrigava exilados brasileiros. Nem passaporte ele tinha naquele momento. Adolpho limitou-se a dizer que 'dava um jeito'. 'Vamos lá em casa que eu verei o que posso fazer'. E lá fomos nós, Carlos Heitor Cony, eu, Flávio e Isolda. Um parêntese: Isolda, compositora e autora de um dos maiores sucessos de Roberto Carlos, a canção Outra Vez, trabalhava na Bloch e teria um papel-chave na história. Quem imaginava que Adolpho acionaria algum contato para conseguir a liberação da viagem de Flávio estava enganado: a reunião era para encontrar um meio criativo de driblar a proibição. Na época, Isolda era amiga de um inspetor de polícia e tinha algum conhecimento na área. Ficou resolvido que eu - sobrou para mim - faria o papel do general Antônio Faustino, então secretário de Segurança do Rio de Janeiro, e ligaria para a Polícia Federal pedindo que emitissem um documento de viagem para o diretor de teatro. O próprio Flávio, imitando voz feminina, e daquelas bem melosas, ligou para a PF, identificou-se como secretária do general Faustino e pediu que o delegado do setor aguardasse. 'O secretário de Segurança quer dar uma palavrinha', disse a "secretária". Flávio me passou o telefone. Tentei fazer uma voz amistosa mas autoritária e determinei ao delegado que naquele momento eu, o "general Faustino", estava autorizando a emissão de um documento para a viagem do diretor Flávio Rangel ao Chile, tratava-se de um assunto de importância para o governo. Em tempo de regime militar, embora a PF não fosse subordinada à secretaria de Segurança, palavra de general era, naturalmente, uma ordem. Antes de desligar o telefone, o "general" informou que Cony e Flávio, acompanhados da funcionária Isolda, estavam a caminho da sede da PF, na Praça Mauá, para apanhar com urgência o referido documento. 'Perfeitamente, general, está feito. Tenha uma boa tarde', respondeu o solícito delegado. O resto da história é conhecido. Flávio viu e aprovou Pippin. Adolpho comprou os direitos e montou o musical no seu teatro, no Edifício Manchete. A peça foi um sucesso e o general Faustino jamais soube do papel  fundamental e involuntário que teve na produção de um dos maiores musicais já exibidos no Brasil."

Lairton trabalhou na Bloch até agosto de 2000, data da dramática falência da editora. Jamais deixou de manter contato com os antigos colegas e não faltava aos almoços de fim de ano. Não faz muito tempo, já com a pandemia em curso, ele telefonou para vários amigos ex-Bloch, que sabia em quarentena, para saber notícias. 

Lairton faleceu no dia 18 de agosto, após complicações decorrentes de um coágulo no cérebro. À família, o nosso abraço de pêsames. Além das saudades, ele nos deixa as boas lembranças da sua competência, do companheirismo e integridade, do respeito com que tratava a todos igualmente, sem ligar para funções descritas em crachás. Tenho certeza de que para todos os colegas da velha Bloch foi um privilégio tê-lo como amigo. 

Que o Lalá descanse em paz. 

 


terça-feira, 10 de outubro de 2017

É festa! Lairton Cabral comemora 80 anos



O aniversariante com Décio e Jorge, amigos e colegas da ex-Bloch.

Lairton Cabral comemorou 80 anos, no sábado passado. É difícil encontrar entre os milhares de jornalistas e funcionários dos setores administrativos que passaram pela Bloch alguém que não conheça Lairton, o Lalá, como é carinhosamente chamado.

Toda a logística das revistas e, depois, da Rede Manchete, passava por ele. Hotéis, passagens de avião, aluguel de carros, autorizações etc, saiam da sua agitada mesa.

Além disso, como secretário executivo, atendia às demandas da presidência da empresa. Não era pouca coisa.

Difícil passar no corredor e não vê-lo ao telefone resolvendo os pepinos, sem perder a calma e o bom humor.

Para usar a linguagem que Lairton adotava ao se comunicar com as companhias aéreas - antes da Bloch, ele foi da Panair - aí vão os nossos Papa-Alfa-Romeo-Alfa-Bravo-Echo-November-Sierra !!!

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

David Bowie, Justino Martins e o rock



David Bowie fotografado pelo seu amigo Jimmy King. Provavelmente a última imagem do "Camaleão", durante o lançamento do seu 28° álbum. (Reprodução do site oficial de DB. 
Por ROBERTO MUGGIATI
David Bowie me fez lembrar duas ocasiões profissionais importantes na Manchete. Justino Martins tinha voltado a dirigir a revista, depois de mais de cinco anos de desterro – de 1975 a 1980 – quando ocupei o seu cargo. Em 1980, aliás,  codirigimos a Manchete, uma coisa maluca que só podia acontecer mesmo na Bloch. Foi um ano de bonança, graças à visita do Papa João Paulo II: não só esgotamos edições com centenas de milhares de exemplares, como vendemos às pencas uma medalhinha milagrosa supostamente abençoada pelo Sumo, que nem deve ter chegado a saber da tramoia. Frank Sinatra também veio ao Brasil e ajudou a esgotar edições. Em 1981, propus ao Justino que assumisse sozinho a edição – afinal, eu compartilhava a tese dele de que dirigir uma revista é como dirigir um filme: estava criado o “jornalismo de autor”. Continuei na redação como “segundo” do diretor numa boa.
Lairton Cabral, Antonio Rudge, eu, Justino Martins e Wilson Cunha
 (ao fundo, Murilinho e uma das suas gravatas):
tempos de champanhe e flütes de cristal na comemoração do
meu aniversário em 1978. Foto: Acervo RM
Adolpho nunca engoliu o Justino, que chamava de “Índio”, talvez porque fosse o único jornalista da Bloch a encará-lo com altivez. Quando sentiu que eu podia substitui-lo, botou Justino “na geladeira”, Ou melhor, no maior calor, numa redação pequena e entulhada, com o ar condicionado desligado, a de Fatos& Fotos, um andar abaixo da redação de Manchete, no glorioso oitavo. Adolpho criou um ritual de comemorar nossos aniversários com champanhe: os de Justino, com espumante gaúcho barato e morno; os meus, com Moët Chandon francês, resfriado em baldes de prata e servidos em flûtes de cristal maciço, como podem reparar na foto. Apesar da rivalidade estimulada pelo capo da Bloch para aumentar a produtividade (uma tese discutível), em nossos 18 anos de convivência eu e o Justino sempre nos demos bem.
Naqueles tempos de censura eu, que estreara a carreira paralela de escritor com um incendiário Mao e a China – publicado uma semana antes do AI5 – me dei conta de que, como não se podia mais falar abertamente de política, a nova forma de fazer política era através da cultura; mais precisamente, da chamada contracultura. Passei a escrever então sobre rock. Em 1973, publiquei Rock/O grito e o mito, que fez a cabeça de muito jovem e foi adotado em várias faculdades de comunicação do país. Sugeri, ou foi o próprio Justino quem sugeriu, uma série na Manchete intitulada “Os Jovens Que Balançaram o Coreto”. A série começou com Bob Dylan e incluiu uma dezena de perfis, entre os quais o de David Bowie, com o título “Um extraterreno no planeta pop”. Eram perfis dinâmicos e começavam com o “olho” da abertura em página dupla da Manchete:
“Rei do glitter – o rock de plumas e paetês que estourou no início dos anos 70 – David Bowie, mais do que um superstar, é um sobrevivente. Ele nasceu no pós-guerra num bairro pobre de Londres, quase ficou cego, quase foi emasculado, quebrou pernas, mãos e dedos, internou o irmão num asilo de loucos, mas partiu para a luta, com voz, corpo e garra, conquistando o poder e a glória e um lugar privilegiado no Olimpo do rock.”
Depois, transformei aqueles perfis num livro, Rock: do Sonho ao Pesadelo, publicado em 1984 pela L&PM. Fiz até a capa, em parceria com minha mulher Lena, fotógrafa de Manchete. Naquela época sem recursos de computador, foi um trabalho braçal mesmo. Lena fez a foto em cor de uma guitarra e depois a ampliou em papel. Peguei doze retratos de roqueiros em P&B, também em papel, que recortei à mão para dar um efeito rasgado. Espalhei os retratos sobre a foto de fundo da guitarra. Depois cobri tudo por uma placa de vidro e, com um martelo, estilhacei o vidro todo. O Ivan Pinheiro Machado, da L&PM – ele mesmo artista gráfico e capista da maioria dos seus livros – adorou.
Àquela altura, o Justino já tinha partido, em agosto de 1983, consumido por um câncer fulminante em menos de um mês. Foi uma morte simbólica, ocorrida dois meses depois da entrada no ar da Rede Manchete de Televisão. Com a TV, as revistas foram abandonadas e entraram em lenta agonia até a falência de agosto de 2000. (Ironicamente, foi o aval da editora a um empréstimo para a TV que acabou levando à concordata e à falência...)
Mas quero lembrar um estranho momento de rock com o Justino, ainda em 1983. O heavy metal surgira com força total para detonar o rock-de-elevador da New Wave consumido pelos yuppies.
O Kiss na Manchete: uma das últimas edições
paginadas por Justino Martins.
E uma das bandas mais carismáticas do hard rock veio tocar no Brasil, o Kiss. Fui cobrir o show de sábado à noite no Maracanã com minha mulher, Lena, que fotografaria o evento. O carro da Manchete nos pegou em Botafogo e foi depois apanhar o Justino e sua filha adolescente (Maria) Valéria na Joatinga. Era a única filha do Justino, que perdera o Carlito num trágico acidente de carro num Carnaval do início dos 1970. Valéria, com seus 17 ou 18 anos, era a razão de todo esse rock na vida do Justino. Quando o pegamos em sua bela casa na Joatinga, projeto de Zanine, ele estava terrivelmente chocado. Um grave acidente ocorrera naquela manhã: dois pintores que iam trabalhar na casa do Justino foram brutalmente atacados pelos cães da casa, uns rotweillers, se não me engano. O estrago foi grande e os homens tiveram de ser hospitalizados. Justino se sentia, de certa forma, culpado pelo episódio. O motorista, para chegar mais rápido ao Maracanã, fez um percurso insólito: pegou o Túnel Santa Teresa-Rio Comprido. (Fui checar agora no Google: é o primeiro túnel viário construído no Rio de Janeiro, e o único da época imperial, 1887. De soslaio, vi que ali por perto existe uma Rua Marcel Proust – vocês sabiam dessa?) A manobra deu certo e chegamos rapidamente ao Maracanã.
Instalados no curral VIP no gramado do então “maior do mundo”, corri à fila do gargarejo para fazer companhia a Lena, que fotografava diante do palco. Gargarejo é pouco. O líder da banda, Gene Simmons (O Demônio), com sua maquiagem grotesca, vomitava golfadas de uma geleca verde sobre a plateia e... sobrou para mim também. Mais um parêntese – desculpem o cacoete – mas é tanta coisa interessante. Esse Demônio do Kiss era apenas a persona cênica de um pacato cidadão. Cito das folhas roqueiras; “Gene Simmons, nome artístico de Chaim Weitz, nascido num kibutz de Israel, naturalizado norte-americano, ex-professor primário, contrariamente a muitas personalidades do rock afirma ‘nunca ter consumido drogas, nunca ter fumado nem nunca ter bebido álcool demais em toda a vida’.” No mundo louco do rock, tudo é possível. . .
David Bowie, no Metropolitan, em 1997.  Foto: Arquivo Pessoal
A certa altura do show, cansado de toda aquela chuva de gosma verde e do som pauleira, afastei-me do palco e saí à procura do Justino. Fui encontra-lo cochilando de pé, encostado à grade nos fundos do cercado que separava os VIPs da plebe rude. Atribui seu cansaço ao trauma da agressão dos cães, mas depois eu saberia que já era o prenúncio da doença, o câncer minando aquela fabulosa figura humana. Fiquei pensando: o Justino, leitor de André Gide e André Malraux, o Cidadão Cannes – apelido que ganhou por suas visitas anuais ao famoso festival – apreciador da nouvelle vague e do Cinema Novo, logo ele encarando aquele circo de horrores da cultura de massa...
* * * *
Um flash-forward: estamos agora em 1996 e agravou-se aquele eterno conflito em torno da direção da Manchete e das vendas da revista (Alberto me apelidou de Muggi das Crises). Hélio Carneiro ocupou a direção por seis meses, entre fins de 83 e começo de 84. Voltei à berlinda, ou pau-de-sebo. Adolpho morreu em novembro de 1995. Jaquito me chamava às vezes e dizia: “Muggiati, precisamos fazer alguma coisa, pense no futuro dos nossos filhos...” Osias chegava de sorrelfa e sussurrava: “Muggiati, dá um jeito na coisa, senão um belo dia vem aí um executivo paulista de pastinha na mão e assume o teu lugar...” Mas “a coisa” não era nada fácil. Dirigir Manchete era como dirigir a seleção brasileira. Todo mundo – do contínuo ao patrão – se achava capaz de resolver a parada; o técnico é burro, troca o técnico. Enfim, me trocaram em 1996 e, pela primeira vez em trinta anos de Bloch, me vi literalmente alçado ao nirvana. Explico melhor: o prédio original da Manchete, no terreno escavado da rocha a dinamite, na Rua do Russell, 804, foi inaugurado no final de 1968. O segundo prédio, maior em extensão, foi construído no terreno contíguo, onde havia o castelo do advogado José Soares Maciel Filho, o redator da carta-testamento de Getúlio Vargas. As instalações principais da editora mudaram-se para o novo endereço, Rua do Russell, 766, a partir de 1980 – inclusive, e principalmente, a redação da Manchete e o restaurante que, do terceiro andar aberto à beira da piscina, se tornou um  espaço mais seletivo, para editores e executivos, no 12º andar, com ar refrigerado. Ao lado, em direção do Hotel Glória, havia ainda uma casa disponível. Um contínuo apelidado Sammy Davis Jr prometeu ao “Seu” Adolpho que convenceria a proprietária, uma idosa que vivia sozinha, a vender o terreno. Dito e feito. Cinco anos depois, os assédios diários do Sammy Davis vingaram e Adolpho comprou a casa. Ali passou a funcionar em 1986 a terceira extensão da fachada de Niemeyer – bem menor que as outras duas, mas um espaço privilegiado de qualquer forma.
Na "Santa Genovena", uma espécie de 'sala do exílio', na Bloch, vivi uma
 temporada profícua.  Foto: Acervo RM
Quando um editor importado da Pauliceia – como anunciara o Osias – veio finalmente ocupar o meu lugar, eu ganhei um novo cargo, uma espécie de promoção, como Editor de Projetos Especiais, e fui ocupar a cobertura do terceiro prédio, um salão imenso com piso de tábua corrida, unidade autônoma de ar condicionado, com uma escultura do Krajcberg atrás da minha mesa e uma varanda que dava para o cartão postal do Aterro, da entrada da baía e do Pão de Açúcar. Era um local meio destacado do resto da Bloch, acessado por uma escada em forma de caracol, que a velha guarda de bengalas ou com problemas de menisco não se atrevia a escalar; e muita gente nunca achava tempo para ir até lá, de modo que fui poupado de um batalhão de chatos. . . O Alberto, com sua verve infalível, apelidou o lugar de “Santa Genoveva” (aludindo a uma clínica de repouso carioca em que se descobriram casos de maus tratos aos velhinhos.) Para quem fazia uma Manchete por semana, a temporada na “Santa Genoveva” foi profícua. Reeditei uma série de fascículos lançada em 1972, História do Brasil, atualizando-a até o Governo FHC e o Plano Real. Foram 52 fascículos encartados semanalmente na própria Manchete com a intenção de – como diziam os marqueteiros – “alavancar” as vendas. Editei o número especial de 45 anos da revista Manchete, um sucesso editorial, de vendas e publicitário, com 350 páginas. Na área pessoal, lancei pela Ediouro A revolução dos Beatles, que tinha a ver com a data-fetiche de 11 de setembro de 1962 – quando os rapazes de Liverpool gravaram seu primeiro disco em Abbey Road (Love me Do/PS I Love You) e eu iniciava minha temporada de três anos em Londres trabalhando na BBC. O livro foi lançado em 1997, comemorando os 35 anos da data, mas, antes disso eu já havia publicado várias matérias na Manchete comemorando aniversários anteriores.
Pena que a doce vida na “Santa Genoveva” não durou muito. Poucos meses depois da minha ascensão, Jaquito já me fazia voltar ao inferno da redação para editar o número de Carnaval da Manchete: “Estes paulistas não entendem nada de Carnaval...” Não era um bom sinal. Em 31 de agosto de 1997, desci de Itaipava para fechar em poucas horas a edição extra de Fatos&Fotos sobre a morte da Princesa Diana.
Duas coisas boas sobre a mudança: a reforma gráfica do designer milanês Carlo Rizzi, primorosa, que deu uma cara nova à Manchete. E outra, que explica por que qualquer pessoa de fora nunca daria certo na Manchete: o estilo de gestão de Adolpho Bloch, que fugia à padronização dos “quadros”, um estilo posso chamar até de humanista. Cada funcionário era um indivíduo único, com suas virtudes e seus defeitos, do qual Adolpho tentava extrair o melhor que pudesse oferecer para o trabalho comum.
Em 31 de outubro, Dia das Bruxas, uma sexta-feira, o editor paulista pediu as contas e se mandou. Jaquito me ligou comunicando que eu estava de volta à direção da Manchete e que o fechamento da revista na segunda-feira seria por minha conta. É aí que entra David Bowie pela segunda vez nessa história. Eu tinha um camarote no Metropolitan para assistir ao seu show da turnê do álbum Earthling no domingo, 2 de novembro, Dia de Finados. Anteriormente, véspera de fechamento para mim era sagrada e a noite de domingo era de abstinência total. Tinha de estar cem por cento em forma para encarar o desafio da segunda-feira, que se estendia às vezes até a noite de terça. Desta vez, no entanto, eu repensei tudo aquilo e, “existencialista, com toda razão” mandei tudo praquele lugar. Fui ao Metropolitan com meu filho, Roberto, e meu sobrinho, Fernandinho. Tomei todas e curti adoidado o rock do Camaleão Bowie, aquele que catorze anos antes, nas páginas da Manchete, eu batizara de “um extraterreno no planeta pop.”

domingo, 17 de agosto de 2014

A Rosa do Marechal

Severino, o chef de cuisine da Bloch, Adolpho e Marechal.  Foto do Acervo de Lairton Cabral publicada no livro 'Aconteceu na Manchete, as histórias que ninguém contou".
por Roberto Muggiati
Jovem repórter da revista Manchete em 1967, a redação de Frei Caneca ainda era para mim uma esfinge a ser decifrada. Entre os múltiplos poderes e forças ocultas com que me defrontava, havia o Marechal, chefe dos contínuos e “agente de inteligência” dos Bloch – na época chamávamos isso de X-9. A redação ficava a léguas do pequeno prédio de dois andares da entrada, onde Adolpho Bloch comandava a tesouraria. Lá nos
fundos, além de um pátio cheio de máquinas desativadas – a gráfica se modernizara e mudara para Parada de Lucas – subia-se por um elevador de carga à redação, no segundo andar. Ao sair do elevador, topávamos com um requinte que se destacava em meio àquele ambiente escuro e sufocante sem janelas: uma máquina de café expresso, operada pelo França e pelo Horácio. Como o café era de graça, e a cafeína energizava, tomávamos uma xícara após a outra. A seguir, antes do acesso à redação, na cabeça de um corredor, ficava a mesa do Marechal, instalado ali como uma espécie de Cérbero guardando o portal de entrada do nosso inferno da cada dia. Sobre a pequena mesa, havia uma dessas bolas de vidro com uma rosa artificial dentro, exemplar típico da decoração kitsch da época. É preciso lembrar aqui, que o Marechal era assim chamado por causa do seu nome de batismo – Floriano Peixoto – e chegou a figurar numa lista dos Dez Mais Elegantes do Ibrahim Sued. Alto, magro, negro retinto, foi estampado nas páginas da revista de terno de linho branco e chapéu panamá.
Naquela época, a editora Abril havia lançado a revista Realidade, investindo com força em reportagens de qualidade. O jornalismo da Manchete, calcado na malandragem carioca, logo partiu para canibalizar as vantagens da adversária. Realidade era mensal, Manchete semanal. Podíamos, assim, nos valendo de uma discreta espionagem industrial, “furar” a rival. Um exemplo: Paris-Match, nosso modelo de estilo, publicou uma reportagem de capa fascinante sobre o primeiro ano de vida do bebê. Tentamos comprar a matéria e soubemos que já fora vendida à Realidade. Fui designado então, pelo editor Justino Martins, a “reconstituir” a reportagem - da Paris Match recorrendo aos conhecimentos do dr. Rinaldo De Lamare, um dos maiores pediatras da praça e autor do best seller da Bloch, A Vida do Bebê. Furamos a Realidade e a edição foi um sucesso retumbante, tendo na foto de capa um bebezinho de um ano nu de pé. Era o Arnaldo Bloch, sobrinho-neto do Adolpho, hoje jornalista de O Globo. Na Bloch, imperava sempre a solução doméstica.
Quando estourou uma crise que ocupou as manchetes dos jornais do mundo inteiro no Haiti do ditador Papa Doc Duvalier, a Realidade estava lá com uma dupla dinâmica de repórter e fotógrafo. Graças a minha amizade com o diplomata Orlando Soares Carbonar – meu colega na Gazeta do Povo de Curitiba nos anos 50 – então chefe de gabinete do Ministro das Relações Exteriores, Magalhães Pinto, consegui uma entrevista exclusiva, no Palácio do Itamaraty – vendo os cisnes pela janela – com o embaixador do Brasil em Port-au-Prince, Geraldo Rainho, que abrigara na embaixada políticos perseguidos por Papa Doc e fora chamada de volta ao Brasil. O depoimento vivo de Raínho, mais algumas pinceladas do livro Os comediantes, de Graham Greene, cuja versão cinematográfica acabara de estrear com estardalhaço (imaginem: Liz Taylor e Richard Burton nos papeis principais...), me ajudaram a escrever um texto vibrante que dava a impressão de que eu estivera lá, vendo tudo, no ventre da besta.
Uma vez mais, furamos a Realidade. O problema é que a mulher do repórter, ao ver a matéria da Manchete, sentiu que eu estava ameaçando a carreira do marido, e partiu para uma desforra pessoal. Invadiu Frei Caneca com uma amiga e, ao chegar à mesa do Marechal, foi evidentemente barrada. Felizmente, eu estava na rua a serviço e escapei do barraco. Impossibilitada de entrar, a mulher do repórter da Realidade pegou a bola de cristal da mesa do Marechal e a arremessou com furor ao chão. A bola estilhaçou-se em mil pedaços e a pobre rosa de crepom caiu ao chão em meio a uma poça d’água – descobrimos então que a rosa kitsch – quase uma Rosa de Hiroxima então – era envolvida por água dentro da sua bolha. Quem resolveu a parada, exorbitando de suas funções, foi o diretor financeiro Nelson Alves: aos trompaços, ele arrastou as invasoras até a calçada de Frei Caneca e as lançou no olho da rua.
Essas súbitas lembranças foram desencadeadas pelo telefonema que recebi esta manhã do Lairton Cabral, comunicando a morte do Marechal, na última terça-feira, 12 de agosto, no seu tugúrio da Região dos Lagos, aos 97 anos. Que todas as rosas do mundo – artificiais, é claro – o acompanhem, Marechal!