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terça-feira, 5 de abril de 2022

Memórias da redação - O trio elétrico da Manchete • Por Roberto Muggiati

FUNDO INFINITO • Renato Sérgio, João Luiz de Albuquerque e Roberto Muggiati. No 2º Free Jazz Festival, em 1986, Manchete montou, no Hotel Nacional, um estúdio para fotografar em alto estilo os músicos participantes, destaques para Gerry Mulligan, Wynton Marsalis, Stanley Jordan e The Manhattan Transfer. O “Trio Elétrico” pegou carona...

Foto: Lena Muggiati


Dava prestígio trabalhar na maior revista ilustrada do país. Já salário era outra história. À falta de uma política salarial na empresa, cada jornalista tinha de lutar pelo seu num indigesto corpo-a-corpo com o dono da empresa, Adolpho Bloch. A maioria não tinha sequer acesso ao capo. Como Adolpho mandava também no conteúdo editorial das revistas, não havia na Bloch aquelas disputas de facções – as famigeradas “!panelinhas” – que ocorriam nas revistas da Abril ou nas redações de O Globo e do Jornal do Brasil. Eu não me dava conta então, foram precisos 35 anos até a falência em 2000, e a sequência do novo milênio, para chegar à percepção cristalina do quanto eu fui rico na Manchete. Rico em amizades. O ano e meio que passei na Veja em São Paulo me fez ver como a Manchete era um espaço democrático. Na redação no oitavo andar do prédio na Marginal do Tietê, eu ocupava um pequeno escritório fechado com vista para o rio lamacento, totalmente apartado da minha equipe de seis subeditores e doze repórteres, que se comprimiam nas “baias” – cubículos separados por divisórias de Eucatex de dois metros de altura. Já a redação da Manchete, também no oitavo andar, era aquele salão aberto com a fachada de vidro voltada para a entrada da baía de Guanabara, com o Pão de Açúcar de sentinela à direita, o azul do céu e do mar – como escreveu nosso repórter-letrista, “é sol, é sal, é sul.”  A redação ocupava 80% da metade fronteira do andar, entre os escritórios do Adolpho e do Jaquito em cada extremidade, separados de nós apenas por uma divisória de vidro. 

Todo mundo passava por aquele bordel. Os patrões vinham bisbilhotar nosso trabalho e dar palpites. Coleguinhas das revistas femininas vinham fofocar e jogar conversa fora. Uma delas, a simpática Laura Taves, sentou um dia na Ponte Aérea ao lado de um dos donos da Abril, meses depois se tornava a nova Sra. Roberto Civita. Como presente de casamento, ganhou a editora de temas feministas Rosa dos Tempos, com assessoria editorial de Rose Marie Muraro, que vivia na redação da Manchete em conchavos feministas com a Heloneida Studart. Justino Martins imperava na grande mesa de edição em L, sua sala de visitas. Recebia preferencialmente mulheres. As jovens amigas Lúcia Sweet e Fernand Bruni eram um colírio para os olhos. A baiana Raimunda Nonata do Sacramento, mais conhecida como Luana, nascida no Curuzu, em Salvador, primeira manequim negra brasileira, sucesso chez Paco Rabanne, Dior e Chanel, casou-se com o Conde de Noailles, uma das cepas mais nobres da aristocracia francesa. Regina Rosemburgo Lecléry visitou Justino na véspera do seu embarque para Paris no avião da Varig que se incendiou a poucos quilômetros do aeroporto de Orly em 1973. O cineasta Pierre Kast, o escritor Jean Genet e o “Clint Eastwood dos pobres”, Anthony Stephen, filho do Barão de Tefé,  também batiam o ponto na redação. Contei aqui outro dia do Nélson Rodrigues, que entrava saudando Adolpho como “o Cecil Bê De Maille (sic) do jornalismo!” Jô Soares, sem dizer palavra, pegava o Adolpho e saía valsando com ele pelo piso de tábuas corridas de madeira nobre. Um dia, Magalhães Jr. me apresentou a Agripino Grieco. Olhando para minha testa larga que já antecipava a calvície, o grande aforista disparou: “Que belo salão de baile para as ideias!” Vinha também, com uma assiduidade enervante, o Francisco Augusto Nascimento – que faturou milhões com o craque Grão de Bico nas pistas de turfe americanas – arrancar deste escriba um nome esperto para batizar um novo cavalo do seu haras em Itaipava. Depois de nomes literários como Jezebel, Iago, Rosencrantz e Suetônio, chutei um Cavalo de Crista. Não sei se o Chico percebeu a alusão à doença venérea; acabou chamando o potro de Capitão Jair, menção a um obscuro deputado iniciante. O pobre do animal jamais chegou entre os dez primeiros sequer.

Em 1975 assumi a direção editorial da Manchete no lugar do Justino. João Luiz de Albuquerque era meu chefe de reportagem, assistido pela dupla dinâmica João Resende e Suzana Tebet. Os Bloch inventaram uma reunião de pauta semanal com o pleno ampliado: a participação obrigatória dos editores de todas as revistas da casa. Cada qual tentando vender o seu peixe à custa da Manchete. O editor de Manchete Rural propunha matéria sobre uma nova vacina contra a febre aftosa, e por aí vai. João Luiz secretariava. Diplomaticamente, eu nunca rejeitava explicitamente uma sugestão: “Vamos ficar de olho.” João Luiz anotava. Eram tantas as sugestões que ficavam de olho que ele bolou um carimbo, aquele olho-lâmpada dramático que ocupa o ponto focal da tela de Picasso “Guernica”. Acabei adotando esse carimbo como meu ex-libris. “Fique de olho”, o lema perfeito para um jornalista. 

Em nossos telefonemas, João Luiz e eu adotamos espontaneamente um cacoete. Um se apresentava com o nome esdrúxulo de um músico de jazz. O outro respondia à altura, fonética e jazzisticamente.

– Olá Ike Quebec!

¬ – Tudo bem, Illinois Jacquet?  

[Bedroom tenors > saxofonistas de alcova] 

– E aí, John Robichaux? 

– Tudo em riba, Alphonse Picou.

[Músicos Creoles de Nova Orleãs.]

– Alô, Pony Poindexter!

– Beleza, Conte Candoli!

[Músicos da banda de Stan Kenton.]        

–  Como vai você, Phil Urso?

–  Levando, levando, meu caro Vido Musso.

[Saxofonistas tenores.]

Já com Renato Sérgio, nosso brilhante redator de assuntos culturais, a troca telefônica era minimalista. Mantínhamos uma espécie de shibboleth, uma senha binária, calcada no grito de guerra da Banda de Ipanema.

– Yolhesman!

– Crisbeles!

Ou, na contramão:

– Crisbeles!

– Yolhesman!

O lema da Banda de Ipanema não significava absolutamente nada, foi tirado por um de seus fundadores da pregação de um maluco que vendia bíblias na Central do Brasil. Na verdade, ficou sendo, naqueles tempos sombrios da ditadura militar (a Banda foi fundada em 1964 e saiu pela primeira vez no Carnaval de 1965), uma versão tropical do grito do anjo do Apocalipse.

Enjoado de tudo isso que anda por aí, Renato Sérgio nos deixou há dez anos – o velho e bom paulistano que, segundo José Esmeraldo Gonçalves tinha “um certo e saboroso jeito carioca de ver a vida”.

Depois de uma longa e tenebrosa pandemia, que ainda perdura – nós dois de máscara na livraria Argumento no lançamento do livro de Márcio Pinheiro sobre o Pasquim – reencontrei o João Luiz, protegido por suas guarda-costas de estima, as filhas Gabriela e Cristina. Trocamos mil e uma figurinhas dos tempos da Bloch e ele me contou histórias incríveis dos passeios com Adolpho Bloch no seu bugre. “E eu quero andar na sua baratinha,” disse Adolpho ao ver o buggy do João Luiz diante do prédio do Russell. Mas isso quem pode contar com a devida galhardia é só o próprio João Luiz. Vamos lá, ao teclado, Ferdinand Joseph La Menthe!...

terça-feira, 27 de março de 2018

Charlie Chan e Antônio Rudge nas Olimpíadas de Berlim 1936 • Por Roberto Muggiati

Estádio Olímpico de Berlim, 1936. Reprodução Fotograma You Tube/FreeBank

Hitler na tribuna do estádio. Reprodução fotograma You Tube/DP

O antigo Estádio Olímpico foi reformado para a Copa de 2006. Recebeu moderna cobertura que respeitou
as linhas formais e neoclássicas da arquitetura alemã da era nazista. Foto FIFA

por Roberto Muggiati 

Este estádio de Berlim do Brasil x Alemanha pré-Copa de 2018 tem uma impressionante carga de História. Foi construído para ser o palco principal das Olimpíadas de Berlim em 1936, na arquitetura monumentalista do nazismo, e para testemunhar – com direito à cinematografia espetacular de Leni Riefenstahl – a superioridade da raça ariana, tese obsessiva de Adolf Hitler.

Jesse Owens. Reprodução

O problema foi que Hitler se esqueceu de combinar o esquema com um humilde afrodescendente norte-americano, Jesse Owens, um corredor notável que abocanhou todas as medalhas e humilhou o Führer, presente às competições na tribuna de honra. (Um filme de 2016, Race/Raça, contou bem esta história.)

Nos meus insones anos 1970, um canal de TV (não lembro qual) passava filmes de Charlie Chan na madrugada. Eu não perdia um. Da série, um dos mais sensacionais é Charlie Chan nas Olimpíadas (1937), que mostra o detetive (Warner Oland) e filhos aprontando uma tremenda confusão em plenos jogos de 1936.


A fita incorpora cenas documentais das próprias Olimpíadas, injetando mais adrenalina do que de costume nestas filmagens costumeiramente de estúdio. Outra curiosidade: Chan atravessa o Atlântico a bordo do zepelim Hindenburg, aquele que explodiria espetacularmente em maio de 1937 ao tentar pousar em New Jersey.

O fotógrafo Antonio Rudge, ao lado da repórter Suzana Tebet, na redação da Manchete

Um evento e tanto, as Olimpíadas de Berlim de 1936. Adolf Hitler, Leni Riefenstahl, Jesse Owens, Charlie Chan – estavam todos lá. Mas – e pasmem diante desta revelação – Manchete, antes mesmo de existir, também estava lá na figura de Antônio Rudge.

Nosso grande fotógrafo, que adorava jogar conversa fora na redação, me contou certa vez que, naquela época, estudava medicina na Alemanha e compareceu aos jogos em Berlim. Você não podia assinar embaixo de tudo o que o Rudge dizia, mas nesse mundo maluco tudo é possível. Filho de uma abastada família paulistana, é possível que tenha sido mandado para estudar na Europa. Um belo dia, gastou todo o dinheiro que tinha comprando o melhor equipamento fotográfico da época. Adorava a profissão, era um fotógrafo muito dedicado e tinha um olho especial. Grande Rudge, gostaria muito de ter estado com você nas Olimpíadas de Berlim de 1936. O problema é que só fui nascer no ano seguinte, em outubro de 1937.



PARA VER O FILME "CHARLIE CHAN NOS JOGOS OLÍMPICOS". 
VERSÃO COM LEGENDAS. 
CLIQUE AQUI