David Bowie fotografado pelo seu amigo Jimmy King. Provavelmente a última imagem do "Camaleão", durante o lançamento do seu 28° álbum. (Reprodução do site oficial de DB. |
Por ROBERTO MUGGIATI
David Bowie me fez lembrar duas ocasiões profissionais importantes na Manchete. Justino Martins tinha voltado a dirigir a revista, depois de mais de cinco anos de desterro – de 1975 a 1980 – quando ocupei o seu cargo. Em 1980, aliás, codirigimos a Manchete, uma coisa maluca que só podia acontecer mesmo na Bloch. Foi um ano de bonança, graças à visita do Papa João Paulo II: não só esgotamos edições com centenas de milhares de exemplares, como vendemos às pencas uma medalhinha milagrosa supostamente abençoada pelo Sumo, que nem deve ter chegado a saber da tramoia. Frank Sinatra também veio ao Brasil e ajudou a esgotar edições. Em 1981, propus ao Justino que assumisse sozinho a edição – afinal, eu compartilhava a tese dele de que dirigir uma revista é como dirigir um filme: estava criado o “jornalismo de autor”. Continuei na redação como “segundo” do diretor numa boa.Manchete, no glorioso oitavo. Adolpho criou um ritual de comemorar nossos aniversários com champanhe: os de Justino, com espumante gaúcho barato e morno; os meus, com Moët Chandon francês, resfriado em baldes de prata e servidos em flûtes de cristal maciço, como podem reparar na foto. Apesar da rivalidade estimulada pelo capo da Bloch para aumentar a produtividade (uma tese discutível), em nossos 18 anos de convivência eu e o Justino sempre nos demos bem.
Naqueles tempos de censura eu, que estreara a carreira paralela de escritor com um incendiário Mao e a China – publicado uma semana antes do AI5 – me dei conta de que, como não se podia mais falar abertamente de política, a nova forma de fazer política era através da cultura; mais precisamente, da chamada contracultura. Passei a escrever então sobre rock. Em 1973, publiquei Rock/O grito e o mito, que fez a cabeça de muito jovem e foi adotado em várias faculdades de comunicação do país. Sugeri, ou foi o próprio Justino quem sugeriu, uma série na Manchete intitulada “Os Jovens Que Balançaram o Coreto”. A série começou com Bob Dylan e incluiu uma dezena de perfis, entre os quais o de David Bowie, com o título “Um extraterreno no planeta pop”. Eram perfis dinâmicos e começavam com o “olho” da abertura em página dupla da Manchete:
“Rei do glitter – o rock de plumas e paetês que estourou no início dos anos 70 – David Bowie, mais do que um superstar, é um sobrevivente. Ele nasceu no pós-guerra num bairro pobre de Londres, quase ficou cego, quase foi emasculado, quebrou pernas, mãos e dedos, internou o irmão num asilo de loucos, mas partiu para a luta, com voz, corpo e garra, conquistando o poder e a glória e um lugar privilegiado no Olimpo do rock.”
Àquela altura, o Justino já tinha partido, em agosto de 1983, consumido por um câncer fulminante em menos de um mês. Foi uma morte simbólica, ocorrida dois meses depois da entrada no ar da Rede Manchete de Televisão. Com a TV, as revistas foram abandonadas e entraram em lenta agonia até a falência de agosto de 2000. (Ironicamente, foi o aval da editora a um empréstimo para a TV que acabou levando à concordata e à falência...)
Mas quero lembrar um estranho momento de rock com o Justino, ainda em 1983. O heavy metal surgira com força total para detonar o rock-de-elevador da New Wave consumido pelos yuppies.
O Kiss na Manchete: uma das últimas edições paginadas por Justino Martins. |
Instalados no curral VIP no gramado do então “maior do mundo”, corri à fila do gargarejo para fazer companhia a Lena, que fotografava diante do palco. Gargarejo é pouco. O líder da banda, Gene Simmons (O Demônio), com sua maquiagem grotesca, vomitava golfadas de uma geleca verde sobre a plateia e... sobrou para mim também. Mais um parêntese – desculpem o cacoete – mas é tanta coisa interessante. Esse Demônio do Kiss era apenas a persona cênica de um pacato cidadão. Cito das folhas roqueiras; “Gene Simmons, nome artístico de Chaim Weitz, nascido num kibutz de Israel, naturalizado norte-americano, ex-professor primário, contrariamente a muitas personalidades do rock afirma ‘nunca ter consumido drogas, nunca ter fumado nem nunca ter bebido álcool demais em toda a vida’.” No mundo louco do rock, tudo é possível. . .
David Bowie, no Metropolitan, em 1997. Foto: Arquivo Pessoal |
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Um flash-forward: estamos agora em 1996 e agravou-se aquele eterno conflito em torno da direção da Manchete e das vendas da revista (Alberto me apelidou de Muggi das Crises). Hélio Carneiro ocupou a direção por seis meses, entre fins de 83 e começo de 84. Voltei à berlinda, ou pau-de-sebo. Adolpho morreu em novembro de 1995. Jaquito me chamava às vezes e dizia: “Muggiati, precisamos fazer alguma coisa, pense no futuro dos nossos filhos...” Osias chegava de sorrelfa e sussurrava: “Muggiati, dá um jeito na coisa, senão um belo dia vem aí um executivo paulista de pastinha na mão e assume o teu lugar...” Mas “a coisa” não era nada fácil. Dirigir Manchete era como dirigir a seleção brasileira. Todo mundo – do contínuo ao patrão – se achava capaz de resolver a parada; o técnico é burro, troca o técnico. Enfim, me trocaram em 1996 e, pela primeira vez em trinta anos de Bloch, me vi literalmente alçado ao nirvana. Explico melhor: o prédio original da Manchete, no terreno escavado da rocha a dinamite, na Rua do Russell, 804, foi inaugurado no final de 1968. O segundo prédio, maior em extensão, foi construído no terreno contíguo, onde havia o castelo do advogado José Soares Maciel Filho, o redator da carta-testamento de Getúlio Vargas. As instalações principais da editora mudaram-se para o novo endereço, Rua do Russell, 766, a partir de 1980 – inclusive, e principalmente, a redação da Manchete e o restaurante que, do terceiro andar aberto à beira da piscina, se tornou um espaço mais seletivo, para editores e executivos, no 12º andar, com ar refrigerado. Ao lado, em direção do Hotel Glória, havia ainda uma casa disponível. Um contínuo apelidado Sammy Davis Jr prometeu ao “Seu” Adolpho que convenceria a proprietária, uma idosa que vivia sozinha, a vender o terreno. Dito e feito. Cinco anos depois, os assédios diários do Sammy Davis vingaram e Adolpho comprou a casa. Ali passou a funcionar em 1986 a terceira extensão da fachada de Niemeyer – bem menor que as outras duas, mas um espaço privilegiado de qualquer forma.
Na "Santa Genovena", uma espécie de 'sala do exílio', na Bloch, vivi uma temporada profícua. Foto: Acervo RM |
Pena que a doce vida na “Santa Genoveva” não durou muito. Poucos meses depois da minha ascensão, Jaquito já me fazia voltar ao inferno da redação para editar o número de Carnaval da Manchete: “Estes paulistas não entendem nada de Carnaval...” Não era um bom sinal. Em 31 de agosto de 1997, desci de Itaipava para fechar em poucas horas a edição extra de Fatos&Fotos sobre a morte da Princesa Diana.
Duas coisas boas sobre a mudança: a reforma gráfica do designer milanês Carlo Rizzi, primorosa, que deu uma cara nova à Manchete. E outra, que explica por que qualquer pessoa de fora nunca daria certo na Manchete: o estilo de gestão de Adolpho Bloch, que fugia à padronização dos “quadros”, um estilo posso chamar até de humanista. Cada funcionário era um indivíduo único, com suas virtudes e seus defeitos, do qual Adolpho tentava extrair o melhor que pudesse oferecer para o trabalho comum.
Em 31 de outubro, Dia das Bruxas, uma sexta-feira, o editor paulista pediu as contas e se mandou. Jaquito me ligou comunicando que eu estava de volta à direção da Manchete e que o fechamento da revista na segunda-feira seria por minha conta. É aí que entra David Bowie pela segunda vez nessa história. Eu tinha um camarote no Metropolitan para assistir ao seu show da turnê do álbum Earthling no domingo, 2 de novembro, Dia de Finados. Anteriormente, véspera de fechamento para mim era sagrada e a noite de domingo era de abstinência total. Tinha de estar cem por cento em forma para encarar o desafio da segunda-feira, que se estendia às vezes até a noite de terça. Desta vez, no entanto, eu repensei tudo aquilo e, “existencialista, com toda razão” mandei tudo praquele lugar. Fui ao Metropolitan com meu filho, Roberto, e meu sobrinho, Fernandinho. Tomei todas e curti adoidado o rock do Camaleão Bowie, aquele que catorze anos antes, nas páginas da Manchete, eu batizara de “um extraterreno no planeta pop.”