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segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Tomando caipivodca e lendo P.G. Wodehouse na Montanha Mágica de Laranjeiras numa hora de crise aos 85 anos: só eu... • Por Roberto Muggiati

Roberto Muggiati no  Armazém Cardosão, Laranjeiras. Foto de Lena Muggiati 

Corrijo T.S. Eliot, para mim “January is the cruellest month”. O ano começou com uma sexta-feira 13. Às oito da manhã me liga a assistente social da UPA de Botafogo convocando para a alta de minha mulher, Lena. Apavorei. Eu tinha internado Lena na segunda-feira 9 – um dia sinistro em que choveu sem parar no Rio e as telas de TV repassavam imagens de um dos episódios mais feios da nossa história, uma turba muito rude quebrando tudo em Brasília. 

Lena Muggiati no Hospital Rocha
Maia, em Botafogo

Um surto emocional acompanhado de uma crise de inapetência levara Lena à beira da inanição, um fiapo inerte de 35 quilos. Visitei-a todo dia, melhorava aos poucos, mas ainda não estava em condições de ter alta. Corri até a UPA, por sorte encontrei a médica que a atendia, a assistente social me dera uma informação truncada. Lena ia ser transferida para o Hospital Rocha Maia, em Botafogo, que oferecia melhor suporte médico.

Agora as visitas eram mais complicadas. Saindo de Laranjeiras, se surgisse um raro ônibus 584, que me deixava na sede do Botafogo perto do Rio Sul, era só uma caminhada até o Rocha Maia. Se o também raro 583 (Cosme Velho-Leblon) desse o ar de sua graça, eu descia no metrô de Botafogo e pegava um táxi até o hospital. O pior cenário era tomar o 422 até o Largo do Machado, o metrô até a estação Botafogo-Coca Cola (sic) e daí um táxi até o Rocha Maia. Arriscar uma caminhada até lá sob o sol de verão era estafante e perigoso, em meio a pistas de alta velocidade.

Nada acontece por acaso. Naquelas noites eu revia a versão de A montanha mágica de Thomas Mann num filme de três horas da TV alemã. Mann mostrava o hospital como uma parábola da sociedade e a doença como uma parábola da vida. E eu completamente mergulhado naquela mórbida frequentação nosocomial. 

Meu antídoto para toda essa gravidade literária era ler o autor mais leve e engraçado do século 20, o inglês P.G. Wodehouse (1881-1975). Comprei dois ou três livros dele nos sebos de calçada daqui – onde já encontrei coisas surpreendentes. Quando era editor da Manchete, eu tinha um redator muito culto e querido, George Gurjan. Nos momentos de pausa, entre um leiaute e outro, ele enfiava sempre o nariz num livro do Wodehouse. P.G. descreve com muito humor as aparentemente rígidas relações de classe britânicas e faz até uma inversão de papeis: é o valete Jeeves quem manda no seu patrão-playboy. Seus melhores livros, publicados nos anos 1920/30, são um deleite de linguagem com a colorida gíria inglesa da época.

Moro em pleno vale das Laranjeiras, no que chamo de Baixo-Glicério. Para aliviar o estresse comecei a caminhar até as alturas do Armazém Cardosão. Abreviava o trajeto subindo uma escada de 59 degraus e depois a ladeira que serpenteava até o bar-restaurante. Encurtava a volta descendo direto uma escada de 115 degraus. Chamei aquele cume de Montanha Mágica. Laranjeiras é um bairro estranho, com encostas e morros escarpados, boa parte coberta por trechos de Mata Atlântica do Maciço da Tijuca. Também venta muito por estas bandas, por isso criei um nome alternativo para a região, Cumbres borrascosas, título espanhol do Morro dos Ventos Uivantes, que Buñuel filmou no México como Abismos de pasión.

Na terça-feira 17 de janeiro, Rio 40° com sensação térmica de 50°, acompanhei Lena num passeio de ambulância até uma clínica de Madureira, onde ela foi fazer uma tomografia computadorizada. Na TV da sala de espera vi que tinha morrido o Henrique Caban, meu colega na equipe inicial da Veja em São Paulo em 1968. Depois nos reencontramos na Bloch,  ele foi secretário do Samuel Wainer no malogrado projeto do Domingo Ilustrado, uma revista em forma de jornalão para ser lida na praia – se a brisa marinha permitisse, só na cabeça do Adolpho mesmo... Duas coincidências do dia com um toque do Além: uma semana antes eu presenteara a Sirleine do Pastel, que vende seus quitutes defronte ao Cardosão, com um exemplar do meu primeiro livro, Mao e  China, lançado em São Paulo na segunda-feira antes da sexta-feira 13 de dezembro do AI-5. Costumo comprar livros da minha autoria na Estante Virtual, o da Sirleine portava justamente uma dedicatória ao Caban, em letra vermelha. Caban fazia parte da “Máfia do Partidão”: nas redações brasileiras, quem tinha carteirinha do PCB era sempre protegido e tinha emprego garantido.

Quando voltei para casa – quatro horas de ida e volta até Madureira numa ambulância sacolejante, o piso ao longo do caminho estava sendo recapeado – recebi na portaria do prédio dois livros da Estante Virtual. Quando abri o segundo tomei um choque, um livro que eu não tinha encomendado: De como ser, do Harry Laus, seu nome em maiúsculas gritantes na capa. Harry Laus (1922-1992) era meu editor de artes plásticas na Veja quando eu dirigia o módulo de Artes e Espetáculos. Militar de carreira, inteligente, transgressor, foi reformado como tenente-coronel pelo golpe de 1964. Homossexual, tinha escrito um romance sobre sexo proibido num quartel de fronteira, O batalhão sagrado, que nunca foi publicado. Por conta da minha primeira mulher, chegada a homossexuais, ficamos amigos e compartilhamos alguns programas fora da redação na buliçosa São Paulo daquela época. Depois que deixei a Veja em setembro de 1969 nunca mais vi o Harry Laus, que se tornou um contista ignorado no Brasil, mas muito prestigiado na Europa com a tradução de seus livros.

 Intrigado por aquela súbita aparição, subi para minha caipivodca de seriguela no Cardosão. Por uma feliz coincidência era o dia de jazz na casa. Um grupo compacto com um som fusion competia com os aviões da Ponte Aérea que passavam zunindo a cada dois minutos na descida para o Santos Dumont. O sabor da caipivodca de fruta silvestre, os bólidos prateados silvando a apenas cem metros de nossas cabeças e o jazz num longo improviso sobre o Corcovado do Jobim – e a visão muito próxima do Cristo Redentor que tínhamos de nossas cadeiras – tudo isso me levou a uma iluminação espiritual, aquele fenômeno que James Joyce chamava de epifania e os zen-budistas de satori. 

Uma semana depois Lena voltou para casa. No hospital a entupiram de comida, ganhou oito quilos de peso e estava em franca recuperação. Subi com ela de táxi para fazermos a foto que ilustra esse texto. O chamado do Além do Harry Laus foi explicado: minha amiga jornalista de Curitiba Marleth Silva, que vive insistindo para que eu escreva minhas memórias, mandou o livro como amostra de uma autobiografia. (Ela desconhecia minha amizade com o Laus.) 

Uma palavrinha para Marleth: escrevo minhas memórias todo dia há mais de vinte anos. O blog Panis Cum Ovum, dos ex-Manchete, com quinze anos de existência, abriga já alguns volumes. O problema é que não consigo colocar um ponto final. Cada dia me brinda com encontros, surpresas, descobertas, benesses, pessoas, lugares. O presente me atropela e se transforma instantaneamente em passado, matéria de memória.  Gosto da expressão com que Boris Vian definia a passagem do tempo: “a espuma dos dias”. Intenso, hiperativo, curioso e afoito, uma ida até a esquina hoje para mim equivale a uma verdadeira odisseia.