terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Feminismo 2020: do discurso aos tiros, facadas e tesouradas • Por Roberto Muggiati

“O problema é que eu odiava a ideia de ter de servir aos homens.”

SYLVIA PLATH


A francesa Pauline Harmange lança o livro "Eu odeio os homens", que reúne histórias de mulheres que retaliaram fisicamente os machões.

A nova palavra da moda é “misandria” (ódio ou aversão aos homens), o oposto da nossa popular – e milenar – misoginia. A misandria acaba de ser posta em circulação pelas neofeministas francesas no rastro do livro-manifesto Moi les Hommes, Je les Déteste/Eu odeio os homens, que sai no Brasil pela Record e promete ser um dos lançamentos mais polêmicos de 2021. A autora, a francesa Pauline Harmange, 25 anos, tem toda a razão do mundo para odiar os homens. Trabalhou muito tempo numa organização que cuida de vítimas de estupro e assistiu de perto à violência e à impunidade. Pauline extravasa sua raiva e sensação de impotência diante da brutalidade masculina no plano do discurso teórico, valendo-se das palavras. Eu queria lembrar aqui casos célebres de mulheres que decidiram partir para uma retaliação física contra os machões. 

I Shot the Sheriff


Feminista radical - com razão, pois sofreu muito nas mãos de homens - Valerie Solanas é uma das mártires feministas do século passado. 

• Uma destas mais notáveis heroínas foi Valerie Solanas, autora do SCUM Manifesto, lançado em 1968 pela Olympia Press, editora parisiense que publicava em inglês livros proibidos nos Estados Unidos, como Lolita, de Vladimir Nabokov, e Almoço Nu, de William Burroughs. SCUM era a sigla de Society for Cutting Up Men/Sociedade para Esquartejar os Homens, a palavra “scum” (escória) representava para Solanas como as mulheres eram tratadas pelos homens. Na infância sofreu na pele abusos sexuais do pai; aos onze anos, a mãe a mandou morar com o avô, um alcoólatra que a surrava constantemente e depois a botou na rua. Sua experiência como mendiga e prostituta foi relatada na peça teatral Up Your Ass.  Valerie entregou o manuscrito para a apreciação do artista pop Andy Warhol, que o acabou perdendo e se recusou a compensá-la pelo prejuízo. No dia 3 de junho de 1968, Valerie foi ao ateliê de Warhol em Nova York e deu três tiros no artista. Só acertou um, mas o suficiente para que Warhol sofresse sequelas menores para o resto vida. Solanas foi condenada a passar três anos num hospital psiquiátrico, O médico que a avaliou disse que exibia uma “reação esquizofrênica, do tipo paranoide com marcas de depressão e potencial suficiente para agir". Warhol se recusou a testemunhar contra ela. A ousadia de suas ideias e o atentado a Warhol causaram um impacto profundo no movimento feminista. Vários grupos radicais surgiram, como a Frente de Libertação Feminina; filmes foram rodados, como Scum Manifesto (1976), em que a atriz de O ano passado em Marienbad, Delphine Seyrig, lê o texto histórico de Valerie. Morta em 1988, aos 52 anos, de enfisema e pneumonia, Solanas entrou para a galeria das mártires feministas do século 20.

Por um punhado de propinas

E a dama que esfaqueou o guru  da economia na ditadura

• Marisa Tupinambá ganhou celebridade instantânea em 1981 quando desferiu uma quantidade liberal de facadas no tórax e no abdome do amante Roberto Campos – o guru econômico da ditadura militar, apelidado de Bob Fields e execrado pela esquerda. Marisa quem? Funcionária da embaixada do Brasil em Paris na gestão Delfim Netto, em 1974, ela atuava como uma espécie de promoter, organizando eventos que atraíssem parceiros comerciais para o Brasil. A envolvente brasileira teve romances com o filho do rei Faiçal, com o joalheiro Alain Boucheron e com o conde Jean-Jacques de la Rochette, antes de se tornar amante de Campos, que a lotou na embaixada de Paris. Demitida um ano depois, Marisa mudou-se para Londres, onde recebia uma mesada da Odebrecht – o propinoduto já funcionava fullgás na época, segundo artigo do jornalista Elio Gaspari. Símbolo da respeitabilidade do regime autoritário, casado, pai de três filhos, embaixador do Brasil em Londres, Campos perdeu totalmente a cabeça ao conhecer a falsa loura. E acabou se dando mal. Marisa submeteu Campos a um constrangimento terrível quando o agrediu a bolsadas numa noite de gala no Royal Festival Hall na presença da Rainha Elizabeth II. O motivo da agressão? Campos a teria deixado fora das comissões em negociatas que ela intermediava com empreiteiras nacionais e poderosas multinacionais. Numa entrevista ao Pasquim em 1983, Marisa disse: “Roberto não deixava as pessoas me pagarem. Acho que tinha raiva, aquela história de amor e ódio. Para mim, dizia que os negócios não tinham sido fechados.” A relação acabou culminando em ódio escancarado na noite de 28 de abril de 1981, num apart-hotel de São Paulo, quando Campos, 63 anos, comunicou a Marisa, 35, que seu caso tinha chegado ao fim. Marisa reagiu a golpes de faca, que perfuraram os intestinos, o peito e a clavícula de Campos. Ao tentar se defender com as mãos, ele quase teve o polegar decepado. Amigos do embaixador tentaram abafar a história dizendo que Campos havia sido vítima de latrocínio no centro de São Paulo, mas a verdade não tardou a aparecer. Marisa não sofreu nenhuma ação legal e continuou sua vida numa boa. Com a fama de aguerrida e insubmissa, como a tribo que lhe deu o sobrenome.

Penis et circenses

Lorena Bobbit era estuprada e espancada pelo marido John Bobbit. Levada ao limite, uma noite ela decepou parte do pênis do agressor. 


O pênis fatiado de Bobbit foi reimplantado e ele teve alguns momentos de fama como ator pornô. 

• Na noite da véspera de São João de 1993, um episódio sangrento na Guerra dos Sexos abalou a América e repercutiu no mundo inteiro. O ex-marine John Wayne Bobbitt, 26 anos, chegou em casa bêbado e surrou e estuprou a mulher. O que não era novidade para Lorena Bobbitt, equatoriana, manicure, 22 anos. Em quatro anos e quatro dias de casamento, fora submetida a todo tipo de agressões físicas a abusos sexuais, incluindo estupro e sodomização forçada. Enquanto o marido dormia, Lorena foi à cozinha tomar uma água. Viu sobre a pia uma faca de trinchar perus de 20 centímetros e teve uma ideia. Ergue os lençóis que cobriam o corpo nu de John Wayne e cortou a parte superior do pênis do marido. Em seguida, saiu de carro e jogou o pedaço do membro decepado num descampado nos arredores da pequena cidade onde moravam, Manassas, Virginia, que até então só guardava a fama de ter sido o local da primeira batalha na Guerra da Secessão (1861-65). Milagrosamente, depois de horas de busca, a polícia encontrou o pedaço do pênis, ainda em condições de reimplante, o que aconteceu com sucesso após dez horas de cirurgia.

A imprensa não poupou superlativos em suas manchetes. A CASTRAÇÃO MAIS MIDIÁTICA DA HISTÓRIA. UMA TRAGÉDIA GREGA, UM THRILLER DE TERROR, UMA COMÉDIA DE HUMOR NEGRO. Pela primeira vez em seus 172 anos de vida, o New York Times publicou a palavra “pênis” em sua primeira página (usava o eufemismo “órgão sexual masculino”.)  O julgamento duplo também foi uma festa para a mídia. John foi inocentado pela acusação de abusos corporais e estupro, Lorena, pela acusação de castração sem chance de defesa. Bobbitt, cujo nome homenageava o ator John Wayne, símbolo dos valores da direita e do machismo, foi crucificado por uma nova onda de protestos feministas. Ele investiu na sua celebridade estrelando um filme pornô, John Wayne Bobbitt Uncut (jogando com o duplo sentido de “sem cortes/sem censura”), seguido de uma banda de rock (The Severed Parts, “as partes seccionadas”) e uma sequência pornô em 1996, Frankenpenis, que não tiveram o mesmo sucesso, mas Uncut se tornou um dos pornôs mais vendidos da história.

Depois do seu êxito fugaz, John Bobbit trabalhou como garçom, motorista de limusine, entregador de pizza, lutador de luta livre, recepcionista de boate e operador de guindaste. Em 1994, foi preso por bater numa stripper em Las Vegas durante sua turnê Love Hurts. Casou-se de novo e adotou o sobrenome da esposa, Joana Ferrell, mas o casal se divorciou em 2004 depois que a mulher o denunciou por maus-tratos.

Lorena, por sua vez, recuperou a identidade com seu sobrenome de solteira (Gallo), fundou a Lorena’s Red Wagon, uma organização de ajuda a mulheres e crianças vítimas de violência doméstica. John, que diz ter ido para cama com mais de 70 mulheres desde a operação, acabou ficando sem lugar na vida de Lorena. Ela é casada há 15 anos e tem uma filha de catorze. Seu marido, segundo ela conta, dorme todas as noites ao seu lado, de barriga para cima e muito tranquilo.

O alcance do episódio na cultura popular é imenso. As expressões “Bobbittized punishment” (castigo bobbittizado) e “Bobbitt procedeure” (procedimento Bobbitt) ganharam reconhecimento social. Nos anos 1920, Babbitt (título do romance de Sinclair Lewis), simbolizava o cidadão conformista da época. Bobbitt poderia muito bem definir o cidadão dilacerado do final do século 20.

Tiros e tesouradas no Russell

• E o nosso cotidiano na Manchete, o maior império de comunicação do Brasil? É hora de desfazer uma mentira hedionda. Aquele companheirismo nostálgico tão decantado só é compartilhado pelos homens. A mulher na Bloch sofria os maiores abusos e humilhações – e ai daquela que ousasse reclamar ao patrão ou apontar seus molestadores, seria sumariamente demitida por justa causa. Havia homens decentes nas redações, mas grassava também na Bloch uma legião de bolinadores compulsivos, beliscadores de peitinhos, apalpadores de nádegas e o que mais se pudesse imaginar. Os sátiros de plantão do palácio de cristal do Russell agiam amparados por sua total garantia de impunidade. Se pudesse voltar àqueles tempos, eu espalharia placas por todos os andares: PROIBIDO APALPAR AS COLEGUINHAS. Vou lembrar aqui alguns casos mais notórios da Guerra dos Sexos na Bloch. 

Em 1969, contratado em Paris por Justino Martins, chega ao Rio de Janeiro o chefe de arte Serge Elmalan, com sua mulher e o nobre mastim do casal. Responsável pela diagramação da recém-criada revista feminina Desfile, Serge logo se envolve com a produtora de moda Regina Guerra – o nome não podia ser mais sugestivo, e agourento. Já no início da relação, num surto de ciúme, a belicosa rainha desfere três ou quatro tiros no Beau Serge. Uma bala se aloja numa área melindrosa da clavícula. Adolpho Bloch despacha Elmalan de ambulância, helicóptero e jato executivo para o maior cirurgião cardiovascular do mundo, o Dr. Michael DeBakey, de Houston, Texas. O grande especialista sentencia: “É melhor não mexer nisso...” E o canhoto Serge teve de seguir diagramando com a asa quebrada pela vida afora. Mas a história não acaba aí. Ao voltar recuperado ao trabalho, Serge ainda sofria a ameaça da amante injuriada. Toda tarde, no fim do expediente, o Marechal – chefe de segurança informal do Adolpho – se esgueirava por entre as árvores da Praça do Russell à procura da pistoleira. E Serge saía sempre escondido no assoalho do carro de um colega.de redação.

Alguns contínuos se destacaram nessa área. Um deles, recém-casado, recusou-se a fazer sexo com a Censora do governo militar, que o recebeu em sua casa de peignoir entreaberto para examinar a arte final de um número do EleEla. Outro contínuo topava qualquer parada, como ir para a cama com Marisa Raja Gabaglia quando coletava sua crônica da semana; e com Jean Genet, hospedado no Hotel Glória, quando entregava ao escritor famoso revistas e jornais que chegavam pelo malote de Paris. Marisa se celebrizaria depois por seu Amor bandido com o cirurgião plástico que aderiu ao mundo do crime, Hosmany Ramos.

Entre os episódios marcantes, tem o de um fotógrafo, apelidado por motivos óbvios de Tripé, encarregado de fazer um retrato do Ziembinski. O teatrólogo o recebeu de baby doll no alto de uma escada que corria sobre rodinhas ao longo de sua imensa biblioteca. “Meu filho, quando não consigo achar um livro, sinto uma vontade louca de dar a bunda...” O Tripé deu no pé. Apelidei a irritação particular causada pelo sumiço do livro de Síndrome de Ziembinski.

Um dos principais diretores da empresa passava o dia sofrendo um bullying cruel do Adolpho. Ao voltar para casa, sofria toda a pressão da mulher para que reagisse até que uma noite, aos gritos de “Covarde!” ela quase o matou com um golpe de cinzeiro de cristal na testa.

Nelson Rodrigues dizia que sem dentadas não há amor possível. Dois redatores da Bloch sofreram mais do que mordidas. Um deles costumava trazer para o trabalho, visíveis no rosto, marcas de rotineiras batalhas conjugais. Imaginação não lhe faltava para criar as mais diversas explicações para as escoriações. Se o corte fosse no supercílio, a culpa era da freada busca que o lançou contra o espelho retrovisor; no queixo, o vilão era a lâmina do barbeador; a mordida no braço era atribuída ao cão feroz que perambulava no bairro. O outro, casado, foi seduzido pela beleza rústica de uma repórter. A moça era forte. Pernas de quem foi criada em fazenda, curtida pelo sol do centro-oeste, com mais músculos em um braço do que o jornalista tinha em todo o seu corpo de boêmio. Durante um embate, ele ao volante, o redator perdeu a paciência com os argumentos da mulher-maravilha em torno de uma discussão banal e jogou o carro sobre a calçada. Mandou que a moça desembarcasse. Ela o fez, mas antes arrastou o indigitado pelo colarinho e deu-lhe uns tapas e um soco que tirou sangue. Sem poder entrar em casa com a roupa tingida de vermelho, o nosso personagem voltou para a Bloch, pegou emprestada a camisa de um segurança e recolheu-se à segurança do lar.     

Um incidente também insólito coroou o declínio e a queda do Império da Bloch, na segunda metade dos anos 1990, Adolpho já morto. Um dos mandarins da corte, que era amigo do Rei, teve seus privilégios mantidos pelo delfim. Entre eles o de ocupar um escritório num dos andares superiores do prédio do Russell, onde passava horas trancado com a secretária. Um dia, o mandarim desce esbaforido ao oitavo andar: “Jaquito! Ela está querendo me matar com tesouradas! Me arranje um segurança, por favor! Agora!”

A cena alimentou de fofocas por algum tempo aquela comunidade ameaçada pelo fantasma da falência e do desemprego. E então a tesoura foi recolhida e meses depois o casal beligerante se remendava os trapos em meio a braçadas de rosas. Como existe o amor bandido, existe também o amor sem vergonha e os dois seguiram juntos até que a morte do mandarim os separou.

Este foi um ano definitivo, 2020. A morte pegou pesado, Principalmente pela Covid-19 e pelo feminicídio, alimentado pela coabitação forçada da pandemia (só até junho tinham aumentado em 22,2% os casos de feminicidio, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.)  Muitas mulheres estão clamando por vingança (não esqueçam as Femen, que têm peito aberto para isso, mas podem de repente se munir de revólveres, facas e tesouras.)  E, falando de palavras novas,  qual seria o antônimo de feminícídio? Homicídio já existe como genérico para a raça humana – o homem sempre mandou em tudo, principalmente na linguagem. Sugiro hominicídio, tem ainda a vantagem de lembrar o hominídio, que é o estágio mental destes assassinos de mulheres. 

Do ponto de vista psicológico, a essa altura do campeonato, posso imaginar o pânico-paranoia que assola estes machões com culpa no cartório, fazendo-os reviver o pesadelo da vagina dentata,  assumindo inconscientemente a postura defensiva dos jogadores de futebol que cobrem a genitália com as mãos na hora da cobrança da falta. Meu amigo, lembre o trinchante da Lorena, tem de ficar acordado 24 horas. E, do jeito que a coisa anda, duas mãos só não vão ser suficientes...

7 comentários:

J.A.Barros disse...

São as histórias que enriquecem a vida dos homens. Histórias reais, contadas por esse magnifico contador de histórias, Roberto Muggiati, histórias que algumas presenciei, nos fazem sorrir e nos fazem ficar felizes. Os nomes dos heróis dessas histórias ficaram ocultos, para resguardar a memória desses atores da "Vida como ela é ". Algumas histórias, tão bem contadas, me fizeram reviver a imagem daquelas personagens, de algumas com quem trabalhei. Muggiati, fica a dever, aos leitores, livros contando histórias que presenciou e histórias que correram o mundo e delas tomou conhecimento. Você é o escritor que deve ao mundo preciosas histórias humanas, que encantarão e terão o riso dos seus leitores. Obrigado por essas que foram contadas, aqui no Panis

Lídia N. disse...

Mulheres jornalistas que trabalharam em redações no anos 70 e 80 enfrentaram assédios em todos os veículos que conheci. A coisa era normalizada e quase nunca vinha à tona. Houve um caso famoso no JB e muitos outros que permaneceram em silêncio. Houve outro na Istoé e o assediador não foi demitido, a história contada pela vítima circulou apenas entre coleguinhas.

Renata disse...

O que acontecia na Bloch, como descreve o artigo, se repetia em outras redações. Menina que foi demitida por dizer não, menina que foi promovida por dizer sim.

Edson disse...

para equilibrar o debate: também havia muitos casinhos consentidos onde os envolvidos eram felizes e sabiam

Anônimo disse...

Felizmente hoje há mais respeito, nas casos ainda acontecem como vazam denuncias como essa da Dani Calabresa

Anônimo disse...

Excelente! Mas sabe que se cavar mais fundo vão vazar histórias sensacionais daquela aglomeração que era o prédio da Rua do Russel.

Anônimo Russeliano disse...

Muggiati, não mexe nisso, como em Las Vegas, o que acontecia na Bloch devia ficar na Bloch. assino como Anônimo Russeliano