domingo, 17 de agosto de 2014

A Rosa do Marechal

Severino, o chef de cuisine da Bloch, Adolpho e Marechal.  Foto do Acervo de Lairton Cabral publicada no livro 'Aconteceu na Manchete, as histórias que ninguém contou".
por Roberto Muggiati
Jovem repórter da revista Manchete em 1967, a redação de Frei Caneca ainda era para mim uma esfinge a ser decifrada. Entre os múltiplos poderes e forças ocultas com que me defrontava, havia o Marechal, chefe dos contínuos e “agente de inteligência” dos Bloch – na época chamávamos isso de X-9. A redação ficava a léguas do pequeno prédio de dois andares da entrada, onde Adolpho Bloch comandava a tesouraria. Lá nos
fundos, além de um pátio cheio de máquinas desativadas – a gráfica se modernizara e mudara para Parada de Lucas – subia-se por um elevador de carga à redação, no segundo andar. Ao sair do elevador, topávamos com um requinte que se destacava em meio àquele ambiente escuro e sufocante sem janelas: uma máquina de café expresso, operada pelo França e pelo Horácio. Como o café era de graça, e a cafeína energizava, tomávamos uma xícara após a outra. A seguir, antes do acesso à redação, na cabeça de um corredor, ficava a mesa do Marechal, instalado ali como uma espécie de Cérbero guardando o portal de entrada do nosso inferno da cada dia. Sobre a pequena mesa, havia uma dessas bolas de vidro com uma rosa artificial dentro, exemplar típico da decoração kitsch da época. É preciso lembrar aqui, que o Marechal era assim chamado por causa do seu nome de batismo – Floriano Peixoto – e chegou a figurar numa lista dos Dez Mais Elegantes do Ibrahim Sued. Alto, magro, negro retinto, foi estampado nas páginas da revista de terno de linho branco e chapéu panamá.
Naquela época, a editora Abril havia lançado a revista Realidade, investindo com força em reportagens de qualidade. O jornalismo da Manchete, calcado na malandragem carioca, logo partiu para canibalizar as vantagens da adversária. Realidade era mensal, Manchete semanal. Podíamos, assim, nos valendo de uma discreta espionagem industrial, “furar” a rival. Um exemplo: Paris-Match, nosso modelo de estilo, publicou uma reportagem de capa fascinante sobre o primeiro ano de vida do bebê. Tentamos comprar a matéria e soubemos que já fora vendida à Realidade. Fui designado então, pelo editor Justino Martins, a “reconstituir” a reportagem - da Paris Match recorrendo aos conhecimentos do dr. Rinaldo De Lamare, um dos maiores pediatras da praça e autor do best seller da Bloch, A Vida do Bebê. Furamos a Realidade e a edição foi um sucesso retumbante, tendo na foto de capa um bebezinho de um ano nu de pé. Era o Arnaldo Bloch, sobrinho-neto do Adolpho, hoje jornalista de O Globo. Na Bloch, imperava sempre a solução doméstica.
Quando estourou uma crise que ocupou as manchetes dos jornais do mundo inteiro no Haiti do ditador Papa Doc Duvalier, a Realidade estava lá com uma dupla dinâmica de repórter e fotógrafo. Graças a minha amizade com o diplomata Orlando Soares Carbonar – meu colega na Gazeta do Povo de Curitiba nos anos 50 – então chefe de gabinete do Ministro das Relações Exteriores, Magalhães Pinto, consegui uma entrevista exclusiva, no Palácio do Itamaraty – vendo os cisnes pela janela – com o embaixador do Brasil em Port-au-Prince, Geraldo Rainho, que abrigara na embaixada políticos perseguidos por Papa Doc e fora chamada de volta ao Brasil. O depoimento vivo de Raínho, mais algumas pinceladas do livro Os comediantes, de Graham Greene, cuja versão cinematográfica acabara de estrear com estardalhaço (imaginem: Liz Taylor e Richard Burton nos papeis principais...), me ajudaram a escrever um texto vibrante que dava a impressão de que eu estivera lá, vendo tudo, no ventre da besta.
Uma vez mais, furamos a Realidade. O problema é que a mulher do repórter, ao ver a matéria da Manchete, sentiu que eu estava ameaçando a carreira do marido, e partiu para uma desforra pessoal. Invadiu Frei Caneca com uma amiga e, ao chegar à mesa do Marechal, foi evidentemente barrada. Felizmente, eu estava na rua a serviço e escapei do barraco. Impossibilitada de entrar, a mulher do repórter da Realidade pegou a bola de cristal da mesa do Marechal e a arremessou com furor ao chão. A bola estilhaçou-se em mil pedaços e a pobre rosa de crepom caiu ao chão em meio a uma poça d’água – descobrimos então que a rosa kitsch – quase uma Rosa de Hiroxima então – era envolvida por água dentro da sua bolha. Quem resolveu a parada, exorbitando de suas funções, foi o diretor financeiro Nelson Alves: aos trompaços, ele arrastou as invasoras até a calçada de Frei Caneca e as lançou no olho da rua.
Essas súbitas lembranças foram desencadeadas pelo telefonema que recebi esta manhã do Lairton Cabral, comunicando a morte do Marechal, na última terça-feira, 12 de agosto, no seu tugúrio da Região dos Lagos, aos 97 anos. Que todas as rosas do mundo – artificiais, é claro – o acompanhem, Marechal!

4 comentários:

J.A.Barros disse...

Mais um pouco e o Muggiati nomeava todo o Ministério do governo da época. Mas, são história que precisam ser contadas e o Muggiati é um dos grandes escritores deste pobre Brasil e sabe contar uma história e como jornalista que é sabe como enriquecer essas hsitórias tornando-as no fundo um conto bem brasileiro, no caso bem blochiano.

Nelio Horta disse...

Simpático, quase sempre sorrindo, acompanhado de um sonoro "SAÚDE BOA?" o Marechal que nós tivemos o privilégio de conhecer, era tão importante na Bloch "daquele tempo", que sua autoridade se confundia com a do "seu" Adolpho e a do Jaquito. Só uma vez vi o Marechal ficar aborrecido: Nos plantões da Fatos & Fotos, depois do lanche "fino da boia", jogávamos uma "pelada" com bola de papel, confecionada pelo Hedyl Vale Júnior, ao lado do arquivo, na Frei Caneca. O "Marecha", ao ouvir o barulho subiu à Redação e acabou com a pelada...
Descanse em paz companheiro, você nunca será esquecido.

Celso Arnaldo disse...

Pelo que me lembro, o Marechal é o autor da célebre máxima, evocada por ele sempre que desaparecia subitamente alguma celebridade: "Gente que nunca morreu tá morrendo agora".
Bem, agora foi a vez do Marechal. Mas, para mim, ele nunca morreu - e não será agora.

Celso Arnaldo

alberto carvalho disse...

O Marechal também tinha outro grande mérito. Era o tio do funcionário mais querido de Bloch Editores: o Vicentinho do telex. E as peladas, com bola de papel, ao término de cada fechamento de um número da revista Fatos&Fotos, eram antológicas. Muitas vidraças foram quebradas. Não pela bolinha de papel, mas pelos sapatos que voavam no espaço aéreo da redação.