sexta-feira, 9 de julho de 2021

Cem anos esta noite • Por Roberto Muggiati


O filósofo e escritor nas filmagens de Edgar Morin, chronique d’un regard. Foto Reprodução @edgarmorinparis


Morin na Casa da Suíça, no Rio, em 1972. Foto Arquivo Nacional.

Em 1963 fez sucesso o filme de Louis Malle Trinta anos esta noite: ao completar essa idade, o protagonista – sem rumo existencial e sem nenhum apego à vida, se mata com um tiro no coração. Bem o oposto tem sido a postura do parisiense Edgar Morin, que chegou aos cem anos neste 8 de julho. 

Não vou enumerar aqui as múltiplas manifestações do seu brilho intelectual, nem sua cultura humanista, que marcaram nossa época. Antropólogo, sociólogo e filósofo, Morin soube se valer de sua admirável longevidade para embarcar num ambicioso projeto de estudos, conhecido como o “pensamento complexo” ou “paradigma da complexidade”. Dos mais de trinta livros que publicou, seis se concentram no âmago da sua filosofia, reunidos no título geral O método, entre eles Introdução ao pensamento complexo e Ciência com consciência. 

O que mais me fascina em Morin é como ele conseguiu aliar o homem de reflexão ao homem de ação, participando ativamente dos embates político-ideológicos do nosso tempo. Filho único de pais judeus sefaraditas não praticantes, nasceu na época em que era fundado o Partido Comunista Chinês, fato que persistiu durante décadas como um dos segredos mais bem guardados da História. Concebido em Moscou, a sete mil quilômetros de distância, o PCC foi criado por treze homens – nenhum operário ou camponês – e seu discurso de abertura foi em inglês, porque os chineses não falavam russo e os russos não falavam mandarim. 

Em 1936, aos quinze anos, no seu primeiro ato político, durante a Guerra Civil espanhola, Morin adere a uma organização libertária, a Solidariedade Internacional Antifascista.

Aos vinte anos, filia-se ao Partido Comunista Francês, como “uma força capaz de resistir à Alemanha nazista”. Na pátria ocupada, entra para a resistência e se torna tenente das forças combatentes francesas. Na época, Edgar Nahoum adotou o codinome Morin; na verdade, optou pelo nome do personagem Manin, do romance de André Malraux A condição humana, mas um mal-entendido transformou Manin em Morin e assim ficou. No pós-guerra, divergindo do autoritarismo estalinista, desliga-se do Partido Comunista. 

Assiste ao esvaziamento do império colonial francês, marcado pela humilhante derrota militar em Dien Bien Phu, na Indochina, que se torna problema norte-americano com o nome de Vietnã. Empenha-se pessoalmente no embate final da descolonização, a libertação da Argélia, que acaba ocorrendo em 1962.

Mais recentemente, Edgar Morin se envolveu com a questão israelense-palestina, mostrando-se crítico da política adotada pelo governo de Israel. Lamentou que um povo perseguido e oprimido ao longo de séculos tenha assumido o papel de opressor em relação aos palestinos. O artigo em que expressou essa opinião, publicado em 2002 no jornal Le Monde, lhe valeu um processo por difamação racial e apologia de atos de terrorismo, movido pela Associação França-Israel. O processo provocou protestos, inclusive de outras entidades judaicas. Morin acabou sendo inocentado pela Corte de Cassação, a mais alta instância judiciária francesa.

Como no poema Uivo de Allen Ginsberg, Morin viu algumas das melhores cabeças da sua geração destruídas de maneira trágica. Viu Louis Althusser, o maior teórico do marxismo, estrangular a mulher enquanto massageava seu pescoço. Viu Roland Barthes, abalado pela morte da mãe, atravessar distraído o bulevar e ser atropelado por um ridículo furgão de tinturaria. Viu Michel Foucault ter seu nome conspurcado ao se tornar a primeira celebridade francesa morta de AIDS. Na ressaca midiática de Maio de 68, Morin ficou sabiamente ao largo da fogueira das vaidades de estruturalistas e “nouveaux philosophes”.

Teve tempo para viver o que Graciliano chama “uma sucessão de estados monogâmicos”. Casou aos 25 anos com a filósofa Violette Chapellaubeau, com quem teve duas filhas, Irène Nahoum e Véronique. Em 1970, casou com Johanne Harelle. Em 1982, com Edwige Lannegrace, da qual enviuvou em 2008. É casado desde 2012 com a socióloga Sabah Abouessalam, com quem escreveu o livro L'homme est faible devant la femme/O homem é fraco diante da mulher (2013) e, em 2020, Changeons de voie - Les leçons du coronavirus/Mudemos de rumo – as lições do coronavirus. 

Diante de uma biografia dessas, só podemos tomar fôlego e desejar: longa vida para Edgar Morin.

quinta-feira, 8 de julho de 2021

FOTOS ABANDONADAS NOS ANTIGOS ESTÚDIOS DA REDE MANCHETE. VIDEOMAKER LANÇA DOC SOBRE O COMPLEXO FANTASMA DE ÁGUA GRANDE

Cromos largados nos estúdios abandonados de Rede Manchete - Reprodução Vouglar

Abandonados: o que resta dos antigos estúdios da Rede Manchete em Água Grande.
Reprodução Vlougar

Nota reproduzida do Jornalistas & Cia


Jornalistas & Cia publicou há poucos dias uma nota sobre a estreia no You Tube, Canal Vlougar, de um documentários sobre os estúdios abandonados da Rede Manchete em Água Grande, no Rio de Janeiro. Vinte e dois anos depois do fim da TV dos Bloch, o enorme complexo ainda guarda restos de roteiros e de cenários, rolos de gravações e até um cofre. 
Rafael Ramos
Uma das descobertas do autor do documentário, o videomaker Rafael Ramos, é uma pequena mostra de cromos que pertenciam ao Arquivo Fotográfico da Bloch Editores, provavelmente parte do material de divulgação das novelas e demais programas da Rede Manchete. O narrador cita fotos de Ricardo Beliel, Cristiana Isidoro e Sergio Zalis, fotógrafos que trabalharam na revista Manchete

VOCÊ PODE VER O DOC "OS ESTÚDIOS DA REDE MANCHETE" 
NO CANAL VLOUGAR AQUI

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Rita, perdoe o rango! • Por Roberto Muggiati

Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sergio Dias. Foto de Antonio Trindade/Manchete

Em março de 1968 troquei o Rio por São Paulo para trabalhar no projeto da revista Veja, que seria lançada em setembro. Editar um newsmagazine nos moldes da americana Time era o sonho dourado de Victor Civita, tão importante que ele aposentou sua galinha dos ovos de ouro – a revista mensal de reportagens Realidade, o maior sucesso da Abril – para concentrar todas suas forças e finanças na semanal de atualidade. 

Numa estratégia equivocada, o velho VeeCee, 61 anos, adotou a grade funcional da Time, copiando seu expediente, preenchendo centenas de empregos com os melhores jornalistas do Brasil. O êxodo das redações cariocas para a Pauliceia somava algumas dezenas de editores, redatores e repórteres. Acontece que a Time – iniciada com um punhado de bravos em 1923 – evoluiu palmo a palmo até sua configuração de 1968, ao longo de cinco décadas, num cenário sociocultural específico, atravessando os crazy twenties, o crack da Bolsa, a Depressão, a Segunda Guerra, o boom dos anos 50, a Guerra Fria e os swinging sixties, ou seja, um cenário tipicamente norte-americano. 

Ainda: a campanha publicitária dava a impressão de que a Veja seria a Manchete da Abril. Esse erro foi bombasticamente reforçado na véspera do lançamento: transmitido pela TV em cadeia nacional às 20 horas de domingo 8 de setembro (a revista saía às segundas com a data de capa de quarta), um documentário de Jean Manzon mostrava a Veja cobrindo todas as frentes de guerra do mundo, que não eram poucas na época. A Abril se deu conta da imagem truncada ainda na fase dos “números zero” e – pior a emenda que o soneto – acrescentou ao veja do logotipo as palavras e leia. Fez ainda uma maciça distribuição de brindes para meio Brasil: uma lupa num estojo com a logomarca veja e leia.

A "Árvore" no topo da antiga
sede da Abril, na
Marginal Tietê
Não importa: o investimento foi tão maciço que a Veja, no início, se tornou um farol para a classe cultural brasileira. A tal ponto que seus jornalistas não se davam a pena de ir até os entrevistados, os artistas é que tinham de peregrinar até a Meca da Marginal do Tietê. Foi assim que – como editor de Artes e Espetáculos – recebi Rita Lee, Sérgio e Arnaldo Baptista em fins de 1968 para uma conversa na hora do almoço. Os Mutantes eram um foguete em ascensão nos céus da MPB. Em 1967 brilharam no Festival da 

Record acompanhando Gilberto Gil em Domingo no Parque; no ano seguinte fizeram história na final paulista do FIC, cantando sob vaias o polêmico É proibido proibir de Caetano Veloso. 

O recente anúncio da doença de Rita Lee me fez voltar àqueles tempos e me sentir, de certa forma, culpado. Não havia nenhum espaço decente na Abril para receber celebridades. Tinham de comer no horroroso galpão de madeira comunal dos jornalistas e demais empregados, que ficava num anexo ao lado do prédio da editora – quando chovia, e amiúde chovia  grosso, todo mundo se encharcava. Senti-me vexado ao receber os garotos – Rita e Arnaldo tinham 20 anos, Sérgio 18. Ainda não tinha aflorado ao sangue da ruivinha a rebeldia sulista de seus antepassados que lutaram na Guerra da Secessão – as irmãs, Mary Lee e Virginia Lee também foram nomeadas em homenagem ao general confederado Robert E. Lee – mas cheguei a recear, da parte de uma Rita Lee afrontada, algum protesto, como batucar numa panela, igual à matriarca dos filmes de faroeste, e chamar os caubóis para o rancho: “Come and get it!” 

No ano e meio que passei na Veja em São Paulo só uma vez fui convocado por Seu Victor para receber um convidado VIP, Abelardo Barbosa, o Chacrinha, recém-consagrado “Velho Guerreiro” por Gilberto Gil em Aquele abraço, o hino de despedida do baiano ao partir para o exílio em Londres. Foi um almocinho tacanho naquele pequeno anexo na cobertura do prédio encimado pela árvore da Abril. Um cardápio tão banal que não guardo a menor lembrança do que foi servido. Não podia haver maior disparidade de temperamento entre o Civita e o Chacrinha, o motivo do encontro era um negócio, os dois iam ganhar muito dinheiro à custa do outro. Chacrinha era tão genial que tinha resumido toda a teoria do Marshall McLuhan num bordão: “Quem não se comunica, se trumbica.”

Glauber Rocha na capa da Veja, 1969

Recebi ainda outra celebridade, sem o menor aviso: uma tarde Glauber Rocha adentra meu cubículo de editor, avisado de que a Veja preparava uma grande matéria sobre seu “cordel Western” O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, que concorria ao Festival de Cannes de 1969. Além da alma de cineasta, Glauber tinha feeling de marqueteiro e faro de repórter e me encheu de mil detalhes sobre o making  of do filme: por exemplo, como uma pesada câmera foi perigosamente içada por meio de cordas a uma escarpada montanha no sertão baiano. Glauber ganhou o prêmio de melhor direção em Cannes, ganhou também a capa de Veja, a única que assinei, enriquecida pelas informações de cocheira do cineasta. Nem um cafezinho morno lhe foi oferecido no prédio da Abril.

Na Veja, em 1968. Foto Acervo Pessoal

Guardo da época uma única foto, um melancólico instantâneo, de paletó e gravata, no cubículo que dava para a terra devastada do Tietê. Rita Lee, em troca, era a glória, com seu olhar safado debaixo das franjinhas, rosto sardento, margaridas nos cabelos, bochechas rechonchudas, um fininho entre os dentes.

Pouco depois, eu voltava ao “balneário da república” para dirigir a Fatos&Fotos, na empresa que Adolpho Bloch definia como “um grande restaurante que, por acaso, imprimia revistas”. Em breve, aguardem no Panis Cum Ovum – até o título do nosso blog é uma referência culinária – um suculento relato sobre o Império Gastronômico da Manchete

segunda-feira, 5 de julho de 2021

Há 50 anos Jim Morrison morria em Paris • Por Roberto Muggiati

Jim Morrison, 1967. A famosa foto de Joel-Brodsky. Reprodução San Francisco Art Exchange (link)


O túmulo no Cemitério Père Lachaise. Reprodução Facebook



E afluência dos fãs no 50ª aniversário da morte do artista. Reprodução You Tube

No curto período de dez meses e meio, o mundo do rock – o mundo, enfim – foi abalado pela morte da Santíssima Trindade dos Js: Jimi Hendrix, sufocado no próprio vômito, em Londres, 18 de setembro de 1970; Janis Joplin, overdose de heroína em Los Angeles, 4 de outubro; e Jim Morrison, de parada cardíaca, em Paris, 3 de julho de 1971. Entraram todos para o Clube 27, a confraria dos músicos mortos com aquela idade.

(Veja matéria recente no Panis:

https://paniscumovum.blogspot.com/search?q=CLUBE+27+ROBERTO+MUGGIATI)

Em meados dos anos 70, o editor de Manchete, Justino Martins – embora próximo dos sessenta anos, portanto duplamente “careta”, segundo a máxima da contracultura “não confie em ninguém acima dos trinta” – se mostrou particularmente sensível ao “poder jovem” e pediu-me que escrevesse uma série na revista, Os jovens que sacudiram o coreto. A série acabou virando livro, pela L&PM, em 1984, Rock: do sonho ao pesadelo. 

Eram 15 perfis, o de Jim Morrison, o vocalista-poeta de The Doors, intitulado Arrombando as portas da percepção. Cito aqui a parte relativa ao seu estranho fim:

“Cansado do rock, das gravações e dos concertos, esgotado e desiludido após uma série de processos – no principal deles acusado de obscenidade durante um concerto em Miami – ele embarcou para Paris com Pamela no começo de março de 1971. No dia 3 de julho foi encontrado morto na banheira do seu apartamento, perto da Place des Vosges. Sua morte continua um mistério até hoje. Não foi feita nenhuma autópsia, não se encontrou o médico que assinou o atestado de óbito. O empresário de The Doors, Bill Siddons, foi chamado de Los Angeles e, ao chegar em Paris, encontrou um caixão lacrado e o atestado de óbito. Só seis dias após a morte do cantor, Siddons divulgou uma notícia à imprensa:

“Jim foi enterrado numa cerimônia simples, na presença de poucos amigos íntimos. Guardamos silêncio em torno do acontecimento porque aqueles que o conheciam e amavam queriam evitar a badalação e a atmosfera circense que cercaram as mortes de outras personalidades do rock como Janis Joplin e Jimi Hendrix. Jim morreu serenamente de causas naturais – ele estava em Paris desde março, com sua mulher, Pamela. Tinha consultado um médico em Paris para tratar de um problema respiratório no sábado – o dia de sua morte.”

Pamela, a única testemunha da morte de Jim, nada esclareceu. E acabou morrendo de uma overdose de heroína em maio de 1974. Jim foi enterrado no cemitério do Père Lachaise, em Paris, o mesmo que abriga os corpos de músicos e escritores famosos como Edith Piaf, Chopin, Bizet, Balzac, Oscar Wilde e outros. Seu túmulo, sempre coberto de graffiti, é até hoje o centro de uma peregrinação interminável de jovens. Outros preferem acreditar que tudo não passou de uma farsa, que Jim Morrison ainda vive numa fazenda qualquer do Texas ou num buraco gelado do Alasca.”

Neste ano do cinquentenário – 3 de julho caiu num sábado – por conta da pandemia apenas cem fãs foram autorizados a visitar o túmulo, atrás de barreiras e vigiados por dois policiais.  Vindos de todos os cantos do mundo, alguns deles têm a certeza de que o túmulo está vazio. Vieram apenas para homenagear o ídolo que, no vigor dos 77 anos, apascenta suas cabras e ovelhas em algum lugar remoto da terra, ou nem isso: dedica-se simplesmente a cultivar a nobre arte do dolce far niente...

Mídia: palavras mutantes...

Fatos & Fotos, 1982

por José Esmeraldo Gonçalves

Estão falando alto pelos botecos... Delta, a cepa. Voto, o impresso.

Delta é a nova cepa da Covid-19, capaz de impulsionar novo ciclo de contaminação. Segundo os infectologistas, a lentidão da vacinação pode deixar o país exposto à Delta. O risco só diminuirá quando a imunização alcançar 80% da população. 

Voto impresso é o golpe que o governo prepara contra as eleições de 2022. Poderá ser usado, se aprovado, como uma espécie de comprovante do voto vendido. Algo a ser mostrado a quem pagou pela "mercadoria" entregue, como se fosse um boleto quitado e carimbado.   

Quase 40 anos depois, as duas palavras, Voto e Delta, voltam a se encontrar no noticiário, agora nas circunstâncias descritas acima. Mas em 1982 Delta era o elemento-chave do escândalo Proconsult, um complô contra a eleição de Leonel Brizola para o governo do Estado do Rio de Janeiro. A palavra estava em todos os jornais e revistas. E o voto (impresso) era o alvo daquela enorme tentativa de fraude eleitoral.  

Em 1982, o voto era analógico, não havia a maquininha do "confirma". O eleitor preenchia a cédula e depositava na urna. Era comum políticos donos de currais eleitorais entregaram ao eleitor "de cabresto" a cédula já preenchida com o "x" e os nomes do candidatos indicados. Se a cédula era o "impresso" da época, a totalização dos votos após a apuração manual dos mesários era feita por computadores. Grupos de mídia, políticos e empresários insatisfeitos com a liderança de Brizola nas pesquisas viram nesse sistema uma brecha para a fraude eleitoral. Os fraudadores ligados ao regime militar montaram um programa que transferia votos nulos e brancos para Moreira Franco, adversário de Brizola e o nome preferido pela ditadura. A variável que levava à fraude para a totalização foi chamada de Diferencial Delta. A maracutaia foi denunciada pelo jornalista Procópio Mineiro, da Rádio Jornal do Brasil. Em seguida, Brizola denunciou o golpe à imprensa internacional, abortou o crime e teve confirmada sua vitória por larga margem.

sábado, 3 de julho de 2021

A atriz Aline Moraes resumiu o espírito da coisa nas manifestações de hoje contra o meliante investigado

Rio, 03/7/2021. Reprodução Twitter

Há 60 anos Hemingway morria em Paris • Por Roberto Muggiati

Ernest Hemingway no Quênia, em 1953.
Foto: U.S. National Archives and Records Administration

Dois de julho de 1961, uma ensolarada manhã de domingo em Ketchum, Idaho. O velho levanta da cama às sete horas, pega um fuzil de caça de cano duplo e estoura a cabeça. Em Paris, são três horas da tarde e estou almoçando com Ruth Fleming, negra, intelectual de Nova York, vivendo um típico romance beat. Às nove da noite sentamos na amurada da rive gauche do Sena para assistir ao crepúsculo tardio do verão. Fumamos em câmera lenta um cigarro tibetano e depois vamos dormir num hotel da Rue de Seine. Na manhã seguinte, na primeira banca de jornal, dou de cara com as manchetes. "HEMINGWAY DEAD", grita o Daily Mail de Londres. "Alvejado quando limpava a arma. Foi suicídio?"


Paris, 3 de julho de 1961. Foto Acervo Pessoal

Vou a uma cabine de fotos automáticas e tiro uma 3x4 exibindo a primeira página do jornal. A sensação de perda é enorme. Numa carta a um amigo, Hemingway escreveu: "Se você teve a sorte de viver em Paris quando jovem, então aonde quer que vá pelo resto da vida ela o acompanhará, pois Paris é uma festa móvel."

Com Olli e Peter, em Paris, nos passos de Hemingway. Foto: Acervo Pessoal

Eu tinha dois amigos em Paris: o finlandês Olli Heikkinen e o norte-americano Peter J. Solomon. Com pouco mais de vinte anos, éramos um pouco os três mosqueteiros em busca de Hemingway. Olli foi viver em Paris com a mulher, uma ex-Miss Finlândia que virou dançarina do Crazy Horse Saloon. Separaram-se e Olli foi morar num pardieiro na Place de la Contrescarpe, onde Hemingway viveu em Paris nos anos 1920. Quando começou a passar fome, voltou para a casa do pai, operário de uma fábrica de vidros nas lonjuras do leste finlandês, perto da fronteira com a URSS. Fui visitá-lo na época do sol da meia-noite, pouco depois da morte de Hemingway.

Peter Jay Solomon era filho de uma tradicional família de banqueiros judeus de Nova York e estagiava num banco americano na região da Opéra. Em suas folgas de almoço, comíamos sanduiches no Harry’s Bar e folheávamos os livros da Brentano’s. Também voltou para a casa dos pais, mas marcou um encontro comigo em 1963 nas touradas de Pamplona, cenário do romance de Hemingway que retrata a "geração perdida", O Sol Também Se Levanta. 

Quase todo mundo que eu conhecia em Paris na primavera de 1961 estava com o pé na estrada a caminho de Pamplona. Americanos, canadenses, nórdicos, meridionais — aquela fauna estrangeira que se esparrama pelos boulevards e cafés de calçada quando o sol volta a brilhar. Muitos costumavam se reunir num café do Odéon frequentado por espanhóis para ouvir as guitarras, ver a dança flamenca e viver a fiesta por antecipação.

Naquela segunda-feira, 3 de julho, quando os jornais noticiaram a morte de Hemingway, já deviam estar todos em Pamplona, para a festa das San Fermines. Dois anos depois, morando em Londres, fui até Pamplona para o encontro marcado com Peter Jay. Quando cheguei à pensión designada, ele já havia partido com a noiva, até hoje não soube o que aconteceu e nunca mais o vi. Decidi ficar e aproveitar a fiesta. Comprei uma bota, aquele odre de couro que os espanhóis enchem de vinho barato e esguicham garganta abaixo. Eu errava sempre o alvo e o vinho espalhava-se pelas roupas claras, tinto como sangue. Pelo menos não era o sangue que manchava as roupas dos espanhóis mais afoitos, que corriam pelas ruas estreitas que desembocavam na arena, perseguidos por um tropel de miúras furiosos.

Quando não havia corridas, sentava-me em meio a uma horda internacional no centenário Café Iruña, frequentado por Hemingway e cenário do filme de 1957 O Sol Também Se Levanta. Hemingway estivera ali pela última vez no verão de 1959, imaginem, apenas quatro anos antes... Coerente com sua opção ideológica, chegando a lutar na Revolução Espanhola, ficou 14 anos sem pisar na Espanha franquista, só voltando a partir de 1953, por força de sua paixão pelas touradas.

No discurso que mandou para ser lido em Estocolmo quando ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1954, Hemingway escreveu; "Na melhor das hipóteses, o fato de escrever implica numa vida solitária..." Mas ele não parou de escrever, mesmo minado por uma série de doenças: diabetes, hipertensão, arterioesclerose, obsessão da morte. A escolha final foi consciente. Como escreveu Carlos Baker na sua biografia de Hemingway: "Agarrara-se durante anos à máxima ‘Il faut (d’abord) durer.’ Agora ela fora trocada por outra máxima: ‘Il faut (après tout) mourir.’ "

Na obra de Hemingway, Paris é uma cidade mitológica. Pamplona também. As pessoas passam, Paris e Pamplona ficam. No espírito do Eclesiastes, seu texto favorito da Bíblia, a terra permanece e Hemingway vê as pessoas mais com piedade do que com ironia. Esse sentimento é sintetizado em O Sol Também Se Levanta pelo refrão de Mike Campbell, bêbado no meio da fiesta, comparando o ser humano aos balões (globos iluminados, em espanhol) e aos fogos de artifício que explodem à noite no céu de Pamplona:

"Globos iluminados” –  disse Mike. “Um bando miserável de globos iluminados."

Pet clics: bons pra cachorro! • Por Roberto Muggiati

Foto de William Wegman (link para site do fotógrafo indicado no post)

Foto de William Wegman. Link para site do fotógrafo indicado no post


Foto de Elliott Erwitt. Foto para Instagram do fotógrafo indicado no post


Foto de Elliott Erwitt. Link para Instagram do fotógrafo indicado no post

Assediado por distopias e pandemias, vendo gente feia e medíocre destilando ódio e burrice por toda parte, resolvi compartilhar com os amigos algumas coisas legais que nos levam para longe deste insensato mundo (nenhum rancor ou pessimismo da minha parte, estou numa boa.) Conheçam aqui dois fotógrafos geniais: William Wegman, um weimaraner-lover de carteirinha, e Elliott Erwitt, amigo de quatro-patas de todas as raças, inclusive dos geniais SRDs. Duas amostras de cada um como aperitivo: se gostarem, procurem mais nas redes caninas. Partidário da máxima “às vezes uma foto diz mais do que mil palavras”, eu me calo, aqui e agora.

sexta-feira, 2 de julho de 2021

Brasil vai às ruas amanhã contra o vacinoduto

Os mercadores da morte

Na capa da Piauí: a cepa 171 da Covid

Hasselmann e Hoffmann: leoas à caça

 

Reprodução O Globo



por O.V.Pochê

Recentemente, Bolsonaro gabou-se por ser “Sou imorrível, imbroxável e também incomível”. Não contava com a astúcia de duas felinas que a foto de capa do Globo mostrou ontem.  A deputada federal Joyce Hasselmann, ao microfone, e Gleise Hoffmann, à direita, de máscara vermelha, são ideologicamente distantes, mas o "incomível" conseguiu uni-las na apresentação do super pedido de impeachment.  Além da simetria dos sobrenomes, Joyce, 43, e Gleise, 55, têm afinidades geográficas. São paranaenses, a primeira de Ponta Grossa, a segunda, de Curitiba. O fato é que ambas, cada uma na sua trincheira, têm DNA de guerreiras. O pedido de impeachment tem notórias dificuldades para avançar em uma Câmara dos Deputados em sua maioria aparelhada pelo bolsonarismo. De qualquer forma, o "imbrochável" está no radar do pega pra capar das duas parlamentares. 

Assalto ao SUS

quinta-feira, 1 de julho de 2021

Januário Garcia (1943-2021): o adeus de um militante da imagem

 

Reprodução Instagram


Reprodução Instagram


A devastação causada pela Covid-19 é dramática pelo número absurdo - mais de 520 mil brasileiros mortos - e choca quando o foco é cada vítima. São vidas individualmente valorosas que a cifra coletiva dilui. Permanecerá para sempre incalculável a enorme perda do Brasil em potencial humano, do mais humilde ao mais célebre. Por culpa da negligência criminosa da milícia dos insensatos, o país sangra como nenhum outro nessa trágica pandemia. Em nome das vítimas, o Brasil tem que cobrar essa conta.  

O fotógrafo e ativista do movimento negro, Januário Garcia, morreu ontem vítima da Covid-19. Tinha 77 anos e muito a cumprir na sua brilhante trajetória, com atuação em veículos como O Dia, O Globo, Manchete, Fatos & Fotos, Jornal do Brasil, O Dia e O Globo. 

Em 1994, Januário e o repórter Geraldo Lopes fizeram para a Manchete uma matéria com as baianas das escolas de samba reunidas no estúdio da Rua do Russel, poucos dias antes dos desfiles. Título: o rodopio dos orixás. Nunca o hall do prédio, onde elas rodaram saias e balandandãs, rivalizou tanto com a apoteose da ala das baiana no Sambódromo. 

Saravá, caro Januário.

O Pipoquinha está bombando! • Por Roberto Muggiati

 

Michael Pipoquinha - Foto: Divulgação\Reprodução YouTube

Limoeiro, Letônia, qualquer lugar vale para uma boa cepa do jazz. Este vídeo mostra o baixista brasileiro Michael Pipoquinha em ação vibrante com a Big Band da Rádio da Letônia tocando Teen Town, composição do baixista do Weather Report, Jaco Pastorius.

https://youtu.be/7BEgZLC05Vk

 Nascido há 25 anos em Limoeiro do Norte, no Ceará, 

Michael Pipoquinha começou no violão aos dez anos, mas, filho de contrabaixista, logo se apaixonou pelo instrumento. Mergulhou nos estudos, ganhou bolsas e conheceu seu ídolo, Arthur Maia – aos doze anos já estudava e tocava com ele. Aos treze anos, apresentando-se no quadro “De olho nele” no Domingão do Faustão, chamou a atenção do país em rede nacional. Já então Pipoquinha ganhava espaço com seus vídeos caseiros no YouTube e não parou mais – seus vídeos na internet chegam a milhões de visualizações.

Já na época, ao ouvi-lo pela primeira vez, um crítico exultou: “Pipoquinha é Pastorius puro!”, referindo-se ao gênio trágico do baixo, surrado até morrer, aos 35 anos, numa briga de bar na Flórida. Pipoquinha nunca escondeu sua admiração por Pastorius. “Uma gravação que realmente me marcou é Jaco tocando ‘Havona’ com o Weather Report. Tenho muitos heróis: na área do baixo seriam Jaco, Arthur Maia, Sergio Groove, Thiago do Espírito Santo, Victor Wooten, Nico Assumpção, John Patitucci e o grande Luizão Maia.”

Além dos milhares de ouvintes cativos da internet, Michael Pipoquinha tem conquistado fãs em apresentações ao vivo na Europa, África e América do Sul. Tocando o baixo elétrico com a velocidade de um cavaquinho, “Little Popcorn” fez uma feliz fusão das raízes nordestinas com o jazz, mais precisamente, com o bebop – um som que poderíamos chamar de forrop. “Minha maior alegria é comover as pessoas e leva-las à sensação de que realmente a música cura a alma”.

OUÇA MAIS: PIPOQUINHA NO XODÓ

https://www.youtube.com/watch?v=nfr7-f3Cr_8

quarta-feira, 30 de junho de 2021

Que futebol é esse? A 'bolinha' da Copa América

Chupa, Melania. Jill Biden é capa da Vogue

por Clara S. Britto
Durante o mandato de Donald Trump, Melania Trump bem que se esforçou. Selecionou figurinos, gastou tubos de botox, abusou das griffes, mas não conseguiu um sonho: ser capa da Vogue americana. A revista declinou. Colocar o sobrenome Trump na capa seria avalizar o neo fascismo do magnata presidente. E assim Melania virou uma sem capa. Agora, na solidão da sua suite, uma espécie de chambre na torre, em Mar-a-Lago, na Flórida, teve o desprazer de ver a rival, Jill Biden, emplacar capa da Vogue logo no primeiro ano de Casa Branca.

Sobrou para o vinho

 Pô, aí já ‘tão de sacanagem com os enófilos: depois de batizarem mutações do vírus de ‘cepas’, agora inventaram os ‘sommeliers’ de vacinas...”

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Fotojornalismo - Manchete na Passeata dos Cem Mil: Hasselblad e cores numa hora dessas?

Paulo Scheuenstuhl, Vieira de Queiroz e Antonio Trindade fotografaram em cores a Passeata dos Cem Mil, em 26 de junho de 1968, no Rio, há  53 anos. 

Fotos Manchete


A igreja católica representada na manifestação: padres e... 

...freiras contra a ditadura.

Artistas desafiam a opressão: na extremidade dessa ala vê-se Tonia Carrero e Domingos de Oliveira...


e Grande Otelo. Fotos Manchete

por José Esmeraldo Gonçalves 

Os jornais eram em preto e branco, a TV idem, os cinejornais e documentários que registravam cenas dos protestos, também. A Veja não existia, O Cruzeiro estava falido e decadente. 

Em junho de 1968, mês de intensas manifestações contra a ditadura, fotojornalistas cariocas captaram cenas memoráveis com suas Nikon F e Pentax. As lendárias Rolleiflex que pontificaram na Manchete nos anos 1950 e até inicio da década de 1960 estavam aposentadas. 

Nas mochilas, quase todos os profissionais, incluída a equipe da Fatos & Fotos, carregavam "cargas" de filmes em p&b. 

Menos a Manchete, que reservava páginas coloridas para a cobertura das passeatas. E, com um detalhe, alguns fotógrafos da Bloch trabalhavam com a pesada Hasselblad, pouco adequada para ocasiões como aquela. Normalmente, esse tipo de câmera tinha um visor próprio para ser utilizado à altura da cintura, mas havia um adaptador que  possibilitava ser operada acima, ao nível do olhar do fotógrafo. Havia uma explicação para a Hasselblad, muito usada em estúdio, ir para as ruas; Adolpho Bloch  preferia abrir as tradicionais páginas duplas da revista a partir de cromos 6X6, o formato ampliado da famosa câmera de origem sueca. Gráfico por excelência e rigoroso quanto ao padrão de qualidade de impressão, o criador da Manchete confiava nos bons resultados do formato 6X6. Por isso, havia sempre um fotógrafo equipado com Hasselblad em meio aos protestos no centro do Rio reprimidos com violência e balas reais naquele ano especialmente conturbado. Claro que os outros três ou quatro que completavam as equipes trabalhavam com câmeras 35mm que lhes davam muito mais agilidade. 

Curiosamente, a maior parte da cobertura jornalística de Maio de 68, em Paris, também foi feita em P&B. Coube à revista ilustrada Paris Match registrar algumas manifestações em cores. 

Em 6X6 ou 35mm, o fato é que os fotógrafos da Bloch produziram um vasto e importante material colorido das manifestações de 1968. Pena que tais cromos estejam virtualmente desaparecidos desde que foram leiloados pela Massa Falida da Bloch Editores. 

É grande a possibilidade da memória em escala cromática da luta da Geração 1968 contra a ditadura tenha apodrecido em uma "galinheiro" do interior do Estado do Rio de Janeiro.    

domingo, 27 de junho de 2021

Vinicius é Manchete

Coluna Lauro Jardim- O Globo

Na capa do Meia Hora: encontre o Brasil cringe

O LGBTQIAP+ e o novo Contrato Sexual • Por Roberto Muggiati

Rio de Janeiro, 2018. Foto Agência Brasil
O jornalismo do Panis Cum Ovum nunca seguiu a fórmula banal do “realizou-se ontem...” Na medida do possível, procuramos sempre ir ao âmago dos acontecimentos, mostrando suas implicações mais extensas profundas. O que ocorre nos dias de hoje equivale ao que ocorreu ao longo de séculos na área social: da escravidão da “civilização” greco-romana e anteriores, à vassalagem na Idade Média, passando pela exploração da classe operária na Revolução Industrial e pela reação dos oprimidos na Revolução Francesa (com seu lema Liberdade, Igualdade, Fraternidade), pelas revoltas sociais do século 19 e pela eclosão do socialismo no século 20, até a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948. Ou seja, vivemos séculos de sangue e sofrimento até o estabelecimento de um Contrato Social – conceito lançado já em meados do século 18 por Jean-Jacques Rousseau.

Resumindo: notadamente a partir da segunda metade do século 19, amenizados os conflitos básicos de igualdade social, entrou em pauta uma questão mais delicada, tendo a ver com a “distribuição do desejo” e com a eliminação de todo tipo de repressão na área comportamental.

Resultante das lutas pelos direitos civis e pelo combate ao racismo, e das reivindicações dos movimentos feministas e gays no século 20, o movimento LGBTQIAP+ traz ao século 21 o que poderíamos chamar de assinatura de um Contrato Sexual (ainda não vi o termo usado em lugar algum, mas define perfeitamente a situação).

Para uma visão mais detalhada do rico fenômeno de diversidade que estamos vivendo, à margem de distopias e pandemias, tomei a liberdade de transcrever esta postagem do site Orientando:

- O que significa LGBTQIAPN+?

LGBTQIAPN+ é uma sigla que abrange pessoas que são Lésbicas, Gays, Bi, Trans, Queer/Questionando, Intersexo, Assexuais/Arromânticas/Agênero, Pan/Poli, Não-binárias e mais. Lésbicas e pessoas gays são pessoas que sentem atração pelo mesmo gênero, e por pessoas que consideram seus gêneros parecidos. Lésbicas são sempre mulheres, ou pessoas não-binárias que se alinham com o gênero mulher de alguma forma. Gays historicamente eram homens, mas hoje em dia, é também aceito que mulheres ou pessoas não binárias utilizem a palavra gay para se identificarem como pessoas que sentem atração pelo mesmo gênero e por pessoas que se consideram de gêneros parecidos. Pessoas bi são pessoas que sentem atração por dois ou mais gêneros. Pessoas transgênero, ou trans, são pessoas cujo gênero designado ao nascimento é diferente do gênero que possuem. Mesmo assim, nem todas as pessoas que se encaixam nesta definição se identificam como trans; como é o caso de certas travestis, de certas pessoas não-binárias e de certas pessoas que não vivem em culturas onde só existem dois gêneros. De qualquer modo, a maioria das pessoas que não são cis – neste caso, qualquer pessoa cujo gênero designado ao nascimento é parcialmente ou completamente diferente do gênero que possui, ou cujo gênero não pode ser traduzido adequadamente para o modelo de gênero eurocêntrico como homem ou como mulher – é bem-vinda na comunidade trans.

No Brasil, muitas vezes se colocam as identidades travesty ou travesti e transexual também na letra T (como termos separados de transgênero). Travesty geralmente é um termo usado por pessoas que poderiam se dizer transfemininas e que é marcado por resistência e inconformidade em relação ao padrão cis sobre o que uma pessoa trans “aceitável” deveria ser. Transexual é um termo geralmente associado com pessoas trans que querem fazer um ou mais tipos de transição corporal, embora nem todas as pessoas que se definam como transexuais façam ou queiram fazer isso.

A bandeira queer, que representa todes que se identificam como queer. Existem também variações desta bandeira para representar pessoas queer com identidades específicas.

Queer é um termo vago, que muitas vezes foi e ainda é utilizado como termo pejorativo em países de língua inglesa. Significa, basicamente, “estranhe”. Algumas pessoas definem sua orientação como queer, por não quererem/saberem defini-la e ao mesmo tempo não serem hétero; algumas pessoas definem seu gênero como queer, ou como genderqueer (“gênero queer”), por não quererem/saberem defini-lo além de “nem homem, nem mulher”, ou por desafiarem as normas de ser homem ou mulher.

Mas queer também pode ser um termo que abrange qualquer pessoa fora das normas de gênero, sexo e relacionamentos, e muitas pessoas que se consideram da comunidade queer também usam outros rótulos para suas orientações e/ou para sua identidade de gênero.

Em algumas ocasiões, genderqueer é um termo citado como parte do G, mas é mais comum que esteja dentro do Q de queer.

Questionando significa que a pessoa não sabe qual é sua identidade.

A pessoa pode estar questionando sobre alguma(s) identidade(s) específica(s): uma mulher pode estar questionando entre bi e lésbica, não sabendo se realmente sente atração por gêneros além de mulher, enquanto outra pessoa diz que está questionando ser bi porque não tem certeza se é mas é a única coisa que parece encaixar no momento. A pessoa pode também simplesmente definir seu gênero ou orientação como questionando, porque não faz ideia de onde se encaixa.

Pessoas intersexo são pessoas que, congenitamente, não se encaixam no binário conhecido como sexo feminino e sexo masculino, em questões de hormônios, genitais, cromossomos, e/ou outras características biológicas.

Pessoas assexuais são pessoas que nunca, ou que raramente, sentem atração sexual. Pessoas arromânticas são pessoas que nunca, ou que raramente, se apaixonam.

O A na sigla inclui tanto estas orientações como todas as do espectro assexual e as do espectro arromântico, que incluem orientações como quoissexual (alguém para quem o conceito de atração sexual não faz sentido), akoirromântique (alguém que não consegue continuar apaixonade uma vez que a outra pessoa também está apaixonada pela pessoa akoirromântica), e grayssexual (alguém que sente atração sexual de forma fraca, vaga e/ou rara).

Estes espectros estão inclusos no termo a-espectral, que também pode ser ocasionalmente usado para explicar que orientações fazem parte da letra A da sigla.

Pessoas agênero não possuem gênero, ou ao menos se sentem mais ou menos contempladas por esta definição. Algumas pessoas agênero não se consideram trans ou não-binárias, embora possam usar tais termos também.

Pessoas pan sentem atração por todos os gêneros, ou independentemente do gênero. Pessoas poli sentem atração por muitos gêneros. (Falo aqui de pessoas polissexuais/polirromânticas; não confundir com poliamor, que é ter mais de ume parceire num relacionamento compromissado.) A inclusão do P ajuda a ressaltar que pessoas multi que não se consideram bi também estão inclusas na comunidade.

Pessoas não-binárias são as que não são somente, completamente e sempre homens ou somente, completamente e sempre mulheres. Engloba pessoas sem gênero, com vários gêneros, com gêneros separados de homem e mulher, com gêneros parecidos com homem ou mulher, entre outras. Pessoas não-binárias podem se dizer trans, mas algumas não se consideram trans. Além disso, a inclusão separada da letra N ajuda a ressaltar que pessoas não-binárias estão inclusas na comunidade, e não só pessoas trans binárias.

O + está ali para pessoas não-cis que não se consideram trans (ou não-binárias, ou agênero), e por todas as outras orientações que não são hétero. Por exemplo, pessoas cetero/medisso são pessoas não-binárias que só sentem atração por outras pessoas não-binárias, pessoas omni sentem atração por todos os gêneros (algumas pessoas se dizem omni e pan; outras utilizam omni para evitar a conotação de “atração independentemente de gênero”), e pessoas abro possuem atração que muda constantemente (uma pessoa abrossexual pode ser gay em alguns momentos, assexual em outros, e pansexual em outros, por exemplo). Existem múltiplas possibilidades de orientações, e não é prático incluir cada uma na sigla.

Mesmo assim, dependendo do grupo ou da pessoa, é possível que retirem algumas letras, ou que adicionem outras, como O de omni e/ou D de demi.

Como nem todas as pessoas contam pessoas assexuais, arromânticas, intersexo, pan ou poli como “reais” ou como “marginalizadas o suficiente para serem LGBT”, é bom deixar explícito que aqui estas identidades são aceitas; por isso que não resumimos a sigla em LGBT ou em LGBT+.

Alternativas inclusivas:

Algumas pessoas utilizam o termo comunidade queer. No entanto, como queer é uma palavra que já foi muito usada com conotação pejorativa e isso pode deixar pessoas traumatizadas com o termo desconfortáveis, não é uma expressão mundialmente aceita. Além disso, o termo é vago, o que faz com que fique fácil de excluir pessoas intersexo, assexuais e arromânticas da comunidade.


Bandeira NHINCQ+, pronúncia “nhin-que mais”, significa Não-Hétero, Intersexo, Não-Cis, Queer e mais identidades relacionadas. Esta sigla tem o objetivo de ser o mais inclusiva possível, mas sem depender da adição de novas letras. O problema principal, além da falta de popularização, seria a centralização em características que as comunidades não são (cis, hétero) ao invés do que são (lésbicas, assexuais, trans, etc). A sigla tenta contornar isso pelo uso de queer (uma identidade que centraliza o que alguém é) e pelo +, mas muitas pessoas podem não ficar contentes com isso. Caso alguém queira saber mais, existem os links desta página.

 


Bandeira MOGAI, que também pode ser usada para quem usa IMOGA

PITOM (Pessoas Intersexo, Trans, e/ou de Orientações Marginalizadas) pode ser uma alternativa. Esta é uma adaptação melhorada de MOGAI (Marginalized Orientations, Gender Alignments and Intersex, ou, em português, Orientações Marginalizadas, Alinhamentos de Gênero e Intersexo); algumas das reclamações em relação a MOGAI são que intersexo não parece encaixar bem com os outros termos utilizados, e que Alinhamentos de Gênero pode não ser a melhor expressão para incluir pessoas trans e não-binárias. PITOM cobre estes problemas, sua única falha é não incluir bem pessoas que não são cis, mas que não querem se chamar de trans. Também existem pessoas que não querem focar a sigla na marginalização.

Algumas pessoas usam IMOGA ao invés de MOGAI, para resolver o pleonasmo de “pessoa marginalizada intersexo”. Já MOGMI é uma alternativa a MOGAI que usa modalidades de gênero (gender modalities) ao invés de alinhamentos de gênero.

O termo variante pode ser usado para pessoas que não se conformam aos ideais sociais e culturais de gênero, sexo, orientação, sexualidade, relacionamentos, expressões e de outras formas de autoidentificação. Este termo tem a intenção de ser amplo e inclui inconformidade de gênero, não-monogamia, altersexo e fetiches (desde que responsáveis/consentidos), além de pessoas intersexo, heterodissidentes e cisdissidentes.

Outros termos acabam sendo vagos demais, ou exclusionários; SAGA (Sexuality And Gender Acceptance; Aceitação de Sexualidade e de Gênero) não inclui pessoas intersexo, não deixa explícito que só estamos falando de um grupo oprimido, e não inclui pessoas que poderiam ser oprimidas por orientações românticas. GSRM (Gender, Sexuality and Romantic Minorities; Minorias de Gênero, Sexuais e Românticas) foi uma sigla originalmente feita por alguém que queria incluir parafilias (como pedofilia e necrofilia) em “minorias sexuais”, fora que exclui pessoas intersexo e não deixa explícito quem conta como minoria de gênero.

Por fim, temos Q(U)ILTBAG, uma alternativa pronunciável a LGBTQIA+ (o P não está presente, e o U é de enfeite ou com o significado de undecided; alguém que não decidiu sua identidade). É um termo ok, especialmente se considerar que é raro alguém realmente excluir pessoas pan/poli da comunidade se não excluem pessoas bi, mas é desconhecido demais e algumas pessoas reclamam da falta de espaço para outras letras.

O homem da nota de 50 libras • Por Roberto Muggiati


Começou a circular a nova nota de 50 libras no dia 23 de junho, data do aniversário de Alan Turing, homenageado com sua foto na nota. Nascido em 1912, Turing é considerado o pai da computação moderna e da inteligência artificial. 

Durante a Segunda Guerra, ele criou uma máquina que ajudou a decifrar mensagens codificadas nazistas, levando os Aliados a derrotar a Alemanha. Sua intervenção abreviou em mais de dois anos o fim da Guerra na Europa e poupou mais de 14 milhões de vidas. 

Nada disso lhe valeu em 1952, quando Turing foi flagrado como homossexual e obrigado a submeter-se a castração química para não ser encarcerado. O trauma que sofreu o levou a suicidar-se dois anos depois, aos 41 anos, comendo uma maçã envenenada com cianureto. 

Só em 2009, pressionado por uma campanha pela internet, o governo britânico pediu perdão “pela maneira terrível como Turing foi tratado”; e, em 2013, a Rainha Elizabeth II lhe concedeu o perdão oficial, 60 anos após sua morte.

A lei retrógrada que fazia do homossexualismo um crime na Inglaterra e no País de Gales – mesmo em relações consentidas entre adultos – gerou uma indústria criminosa da chantagem, através da ameaça de delação às autoridades. Só a pressão de uma campanha popular levaria à abolição da lei em 1967. Um papel importante foi desempenhado pelo filme Victim/Meu passado me condena – estrelado por Dick Bogarde, e o primeiro na Inglaterra a usar a palavra “homossexual”.

Turing se tornou mais conhecido do grande público em 2014 graças ao filme O jogo da Imitação, que recebeu oito indicações ao Oscar, uma delas de melhor ator para Benedict Cumberbatch, que interpreta Turing. Uma série da BBC-TV em 2019 elegeu Alan Turing como a pessoa mais importante do século 20.

quinta-feira, 24 de junho de 2021

De Jean Marc van der Weid, hoje, na Folha: "O contexto em que a Geração 1968 volta a se manifestar é dramático"

Folha de São Paulo - 24-6-2021 - Clique na imagem para ampliar

Líder estudantil, ativista da Ação Popular e preso político durante a ditadura, Jean Marc van der Weid escreve hoje na Folha de São Paulo sobre a Geração 1968, que volta a se manifestar diante da ameaça de uma nova ditadura. A pandemia limitou manifestações e a vacina devolve agora às ruas, de cabelos brancos e coração valente, a antiga resistência. As barricadas ganham um forte símbolo em um momento dramático do Brasil. Como diz van der Weid, "uma coisa nos unia e nos une até hoje; ansiávamos e ansiamos por liberdade e por justiça social. Sonhávamos por aquilo que faltava a nosso povo: liberdade de opinião, de organização e de manifestação, reforma agrária, direitos trabalhistas, independência e autonomia frente a potências estrangeiras. E nos envolvíamos também em muitas outras batalhas: nos costumes, nas relações de gênero, no questionamento ao machismo e ao patriarcalismo, na promoção da música popular, do novo cinema nacional, das artes plásticas, do teatro".

Nas ruas, os "velhinhos" de 1968 se juntam aos cordões das novas gerações a quem cabe levar a luta adiante. É bom que as duas pontas da história se conheçam e dividam lições.