sexta-feira, 9 de julho de 2021

Cem anos esta noite • Por Roberto Muggiati


O filósofo e escritor nas filmagens de Edgar Morin, chronique d’un regard. Foto Reprodução @edgarmorinparis


Morin na Casa da Suíça, no Rio, em 1972. Foto Arquivo Nacional.

Em 1963 fez sucesso o filme de Louis Malle Trinta anos esta noite: ao completar essa idade, o protagonista – sem rumo existencial e sem nenhum apego à vida, se mata com um tiro no coração. Bem o oposto tem sido a postura do parisiense Edgar Morin, que chegou aos cem anos neste 8 de julho. 

Não vou enumerar aqui as múltiplas manifestações do seu brilho intelectual, nem sua cultura humanista, que marcaram nossa época. Antropólogo, sociólogo e filósofo, Morin soube se valer de sua admirável longevidade para embarcar num ambicioso projeto de estudos, conhecido como o “pensamento complexo” ou “paradigma da complexidade”. Dos mais de trinta livros que publicou, seis se concentram no âmago da sua filosofia, reunidos no título geral O método, entre eles Introdução ao pensamento complexo e Ciência com consciência. 

O que mais me fascina em Morin é como ele conseguiu aliar o homem de reflexão ao homem de ação, participando ativamente dos embates político-ideológicos do nosso tempo. Filho único de pais judeus sefaraditas não praticantes, nasceu na época em que era fundado o Partido Comunista Chinês, fato que persistiu durante décadas como um dos segredos mais bem guardados da História. Concebido em Moscou, a sete mil quilômetros de distância, o PCC foi criado por treze homens – nenhum operário ou camponês – e seu discurso de abertura foi em inglês, porque os chineses não falavam russo e os russos não falavam mandarim. 

Em 1936, aos quinze anos, no seu primeiro ato político, durante a Guerra Civil espanhola, Morin adere a uma organização libertária, a Solidariedade Internacional Antifascista.

Aos vinte anos, filia-se ao Partido Comunista Francês, como “uma força capaz de resistir à Alemanha nazista”. Na pátria ocupada, entra para a resistência e se torna tenente das forças combatentes francesas. Na época, Edgar Nahoum adotou o codinome Morin; na verdade, optou pelo nome do personagem Manin, do romance de André Malraux A condição humana, mas um mal-entendido transformou Manin em Morin e assim ficou. No pós-guerra, divergindo do autoritarismo estalinista, desliga-se do Partido Comunista. 

Assiste ao esvaziamento do império colonial francês, marcado pela humilhante derrota militar em Dien Bien Phu, na Indochina, que se torna problema norte-americano com o nome de Vietnã. Empenha-se pessoalmente no embate final da descolonização, a libertação da Argélia, que acaba ocorrendo em 1962.

Mais recentemente, Edgar Morin se envolveu com a questão israelense-palestina, mostrando-se crítico da política adotada pelo governo de Israel. Lamentou que um povo perseguido e oprimido ao longo de séculos tenha assumido o papel de opressor em relação aos palestinos. O artigo em que expressou essa opinião, publicado em 2002 no jornal Le Monde, lhe valeu um processo por difamação racial e apologia de atos de terrorismo, movido pela Associação França-Israel. O processo provocou protestos, inclusive de outras entidades judaicas. Morin acabou sendo inocentado pela Corte de Cassação, a mais alta instância judiciária francesa.

Como no poema Uivo de Allen Ginsberg, Morin viu algumas das melhores cabeças da sua geração destruídas de maneira trágica. Viu Louis Althusser, o maior teórico do marxismo, estrangular a mulher enquanto massageava seu pescoço. Viu Roland Barthes, abalado pela morte da mãe, atravessar distraído o bulevar e ser atropelado por um ridículo furgão de tinturaria. Viu Michel Foucault ter seu nome conspurcado ao se tornar a primeira celebridade francesa morta de AIDS. Na ressaca midiática de Maio de 68, Morin ficou sabiamente ao largo da fogueira das vaidades de estruturalistas e “nouveaux philosophes”.

Teve tempo para viver o que Graciliano chama “uma sucessão de estados monogâmicos”. Casou aos 25 anos com a filósofa Violette Chapellaubeau, com quem teve duas filhas, Irène Nahoum e Véronique. Em 1970, casou com Johanne Harelle. Em 1982, com Edwige Lannegrace, da qual enviuvou em 2008. É casado desde 2012 com a socióloga Sabah Abouessalam, com quem escreveu o livro L'homme est faible devant la femme/O homem é fraco diante da mulher (2013) e, em 2020, Changeons de voie - Les leçons du coronavirus/Mudemos de rumo – as lições do coronavirus. 

Diante de uma biografia dessas, só podemos tomar fôlego e desejar: longa vida para Edgar Morin.

Um comentário:

J.A.Barros disse...

Sobre a menção de Dien Bien Phu, gostaria de lembrar que toda a guarnição era defendida por um regimento da Legião Extrangeira, um contigente criado pela França, situado no Oriente Médio, na África. Esse contigente era composto por cidadãos de outros países, , muitos deles foragidos da Justiça de seus países, outros por motivos pessoais ou muitos por espírito guerreiro. Nesse combate, que se tornou famoso, no mundo inteiro, pela sua resistência aos ataques dos vietnamitas do Norte, comandados pelo famoso general Giapp, o mesmo que anos mais tarde iria derrotar o Exército norte-americano. Ho Xi Min, era o líder politico do Viet Nam do Norte. Desse contigente da Legião Estrangeira, somente 10 expedicionários sobreviveram