sexta-feira, 2 de abril de 2021

A Geração Anos de Chumbo põe as cartas na mesa • Por Roberto Muggiati

   


“As cartas são o legado da nossa passagem.” (João Pereira Coutinho)

Era uma vez sete amigos, estudantes na cidade do Crato, no Ceará. Em 1968, na idade do vestibular, todos migrariam para tentar o ingresso na faculdade de uma importante capital do Brasil, como Fortaleza, Recife, Natal, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Belo Horizonte. Se o Crato foi o ponto de partida, os novos destinos dos amigos se diversificaram e a vida os separou. 


Assis Lima em foto de 1976.
Uma separação apenas física, porque eles continuariam unidos pelas cartas que passaram a trocar, narrando – além do cotidiano banal – os dilemas e anseios que os moviam naqueles tempos difíceis. Tudo isso cairia no esquecimento não fosse a ideia de um deles, Assis Lima, médico e poeta, de publicar algumas daquelas cartas, cinquenta anos depois. O resultado é o livro Cartas da Juventude - Crônica de época - Recortes Autoetnográficos (1968-1977) - (Confraria do Vento, 2020, 398 páginas), um rico e comovente relato do que foi aquela aventura existencial e cultural num tempo de exceção. De certo modo, poderíamos comparar a ditadura militar – particularmente os sete anos que vão da decretação do AI-5 à morte do jornalista Vladimir Herzog – com os tempos da pandemia que vivemos hoje, agravada, no Brasil, por um pandemônio político igualmente mortífero. 

Transcrevo aqui algumas destas cartas, todas endereçadas a Assis Lima, o interlocutor e editor – uma espécie de regente desta sinfonia literária sobre o Brasil no período de 1968 e 1977. Diz ele: “Como toda escrita é sempre uma construção também ficcional, poderíamos dizer que estas cartas são baseadas em fatos reais, de modo que qualquer semelhança com a realidade não será mera coincidência.”

Eugênio Gomez nasceu em Joinville, SC, em 1950, aos oito anos mudou-se para Belo Horizonte, passou pelo Crato e depois se formou em medicina pela UFMG, especializando-se em pediatria – daí sua afinidade com Assis Lima, igualmente médico, além dos interesses dos dois por literatura e cinema.

• “Pois romancista, meu caro, é Dostoiévski! Jamais houve e dificilmente haverá quem se lhe iguale. Aliás, meus monstros sagrados são Machado de Assis, Manuel Bandeira, Dostoiévski, Pelé, John Ford, Chico Buarque e outros poucos.” [1971]

Comentário em 2020: “Confesso que li Crime e Castigo aos 15, por sugestão de meu pai, que sabia de cor os 14 tomos encapados de vermelho-escuro em nossa nem tão pequena biblioteca e reli aos 21 anos, na azáfama do terceiro ano de Medicina: como tive saco, o que me impeliu? Não me lembro. Seria a delicada figura de Sônia, por quem estive amorosamente atraído nas duas leituras? Pergunto ao vento, sem respostas.” 

Crato, 1967: Tiago Araripe,
José Esmeraldo.
Tiago Araripe nasceu no Crato em 1951, é publicitário, cantor e compositor, parceiro de nomes como Nonato Luiz, tendo feito shows e gravações com Tomzé. Mora atualmente em Portugal.

• “Fiquei muito chocado com a notícia do suicídio de A. Disseram que ele ligou o gravador, explicou por que se despedia da vida e – PUM – um tiro no ouvido. A princípio não acreditei. Mas sempre o achei muito estranho. Ele dizia, no São João Bosco, que ia suicidar-se, mas que antes mataria um bocado de pessoas com uma corrente, de pancada. Sempre levei na brincadeira, ou como impressão dele pelos filmes de James Dean e Paul Newman, ou por Hitler, a quem dizia que admirava. Não sei o que ele disse no gravador, pois as notícias que me chegaram foram incertas, confusas.

Comentário em 2020: "Alfredo Tavares, no cursinho, teve um choque enorme quando lhe contei o sucedido. Ele me disse que era um amigo de A. e que este sempre lhe falava que não passaria de 1968. Estou sentido com o que aconteceu. Apesar de não me dar com ele, representava algo na minha vida, na vida do Crato. A. sempre se julgou incompreendido e isso é o mais triste da história – era um desajustado ao meio onde vivia, não sei se você está compreendendo o que sinto, pois no fundo ele me influenciou um pouco e...”  [1968]

Pedro de Lima nasceu em 1947 em Caxias, Maranhão, estudou no Crato, em Brasília, trabalhou na Universidad del Valle, em Cali, e é mestre em Antropologia Social (UFRN) e doutor em Arquitetura e Urbanismo (USP).

“Que coisa triste a pátria acorrentada. Triste ver a pátria sendo apunhalada, traiçoeiramente. Tristeza, como o exílio na própria pátria. Calar não posso; gritar é perigoso. Não há ódio, não há vingança: o que sinto agora é nojo. Realmente, agora, lágrimas me vêm nos olhos. Já não queria tanto que elas irrigassem as rosas que cultivo. Queria minhas lágrimas lavando a vergonha, o sangue dos brasileiros que se derrama em minha Pátria! Inútil! Nem se todo mundo chorasse lavaria as manchas que enegrecem o solo brasileiro. ‘Ah! Triste tempo presente em que falar de amor e flor é esquecer que tanta gente está sofrendo tanta dor.’” [1968]

José Esmeraldo Gonçalves nasceu no Crato em 1948, mudou-se para o Rio de Janeiro – onde vive até hoje – em 1968. Foi repórter, chefe de reportagem e editor das revistas Fatos &Fotos e Manchete, subeditor do Segundo Caderno do Globo e editor das revistas Caras e Contigo. Como autor e pesquisador participou das coletâneas Esporte e Poder e Aconteceu na Manchete, as histórias que ninguém contou. Desde 2009 edita o blog Panis cum ovum, no qual os jornalistas que trabalharam em Manchete e nas outras revistas da Bloch continuam ativos – e criativos.

“Na hora em que fui preso havia um clima de guerra, gente correndo, sozinho, tiros, bombas, sangue, pedras, falta de ar e luta. Fui metido num carro fechado. Estava um pouco machucado. Não sei bem o que pensei, talvez tenha pensado em Deus. Depois de rodar algum tempo pelas ruas, entramos num quartel (eu não tinha a menor ideia de onde estava). Fui revistado, checaram minha pasta. E passei pelo primeiro interrogatório. Fui levado até um imenso galpão, onde foram colocados mais de cem outros presos. Conversamos, discutimos e, quase 24 horas depois, deram-nos uma sopa. Após esse almoço, fomos transferidos em grupos de dez para o Dops. Novo interrogatório, mais rigoroso. Verificação de antecedentes. Mais perguntas. Até ser solto por ter sido a minha primeira entrada no Dops. Mas, fui advertido. Na segunda vez, posso ser enquadrado na Lei de Segurança Nacional (!). “Eles” acertaram o meu eu material, físico. “Eu” espírito, pensamento, saí enriquecido da experiência. Incólume!” [1968]

Emerson Monteiro nasceu em 1949 em Lavras da Mangabeira, no Ceará. É advogado, cronista, fotógrafo e artista visual. Ex-assessor de comunicação da Universidade Regional do Cariri, é o atual diretor administrativo da FM Universitária Urca. Autor e editor de livros, é membro da Academia Lavrense de Letras e do Instituto Cultural do Cariri (Crato).

“Aqui [na Bahia], tenho participado das movimentações urbanas. Teatro. Cinema. Música. O MDB ganhando as eleições no Brasil todo. Eu com os olhos bem abertos – me emocionando. O povo – realmente existiria? A sede política me queima a garganta. O social. 

Tenho lido pouco – andei cansado – tendo que manter o equilíbrio. Mas me livro do semestre da escola e virá dezembro – gordo e aberto. Virão também as festas da Bahia. A alegria desce e aliena a todos. As cores na cidade.” [1974]

Flamínio Araripe nasceu no Crato em 1952. É jornalista e assessor parlamentar na Câmara Federal. Foi correspondente do Jornal do Brasil e do Jornal da Ciência, do SBPC, no Nordeste. Em São Paulo trabalhou no Estado de São Paulo e Folha de S. Paulo. Foi editor de Cidade no O Povo, de Economia no Diário do Nordeste.

“Flamínio Figueiredo de Alencar Araripe em 1971. O cabelo cortado e a cabeça crescendo claustrofóbica ante a relva verde. Careta e não gosta das modas do nada e do não – ou seja, o Crato e suas modas, juventude que contesta inerte aos pés do Establishment – isto está uma merda.

Papel rasgou e daí? Menos letras no espaço limitado por mais que se berre, a barra a ser forçada inexiste, os ares estão (in)formados para a forra – o trilho desperta o sono no som e engole o trem bocejando, sem esforço. A falta de sentido mostra claro sombrio o tema – a trama desdobra a rebordosa sob a exata porcaria o exato momento a falta de sentido mostra, delineando, o tema – na mata poeira levantando as partículas do pensamento e justamente etcetera. O mal do novo é preguiça ou cansaço. A maior burrice é a ignorância. Faltou o leite das cachorras do onde. A traça corrói muito sutil as bases definidas, defendidas, defasadas – a ilusão adiada de cada dia a dia. Minha bisavó é uma pessoa sensata e faria, na calma da velhice, uma dúzia de revoluções muito tranquila. [1971]

O editor

Assis Lima nasceu no Crato em 1949. Médico pela Universidade Federal de Pernambuco, especializou-se em Psiquiatria em São Paulo. Mestre em Psicologia Social (USO). Autor do livro Conto popular e comunidade narrativa (1985), com Prêmio Sílvio Romero – Funarte). Organizou a coletânea Contos populares brasileiros – Ceará (2003). Coautor dos infanto-juvenis Baile do menino Deus (1995), Bandeira de São João (2012), Arlequim de Carnaval (2011) e O pavão misterioso (2004). Autor de Poemas arcanos (2008), Marco misterioso (2011) e Chão e sonho (2011, poesia), tendo publicado pela Confraria do Vento os livros Terras de aluvião (2016), Poemas de riso e sizo (2017) e O código íntimo das coisas (2019).


Passeata dos Cem Mil, junho de 1968. , Eva Todor, Tônia Carrero, Eva Wilma, Leila Diniz, Odete Lara
e Norma Bengell – Foto: Correio da Manhã/Arquivo Nacional

A cultura nos tempos da cólera

por Roberto Muggiati

As ditaduras sempre abominaram e perseguiram a cultura, pela "ameaça democrática" que ela representa. “Quando ouço alguém falar em cultura, saco logo o meu revólver." A frase, de uma peça antinazista encenada em 1933, ano em que Hitler assumiu o poder – erroneamente atribuída a Goebbels ou a Goering, asseclas do Führer – simboliza radicalmente a postura dos regimes totalitários em relação à cultura.

´Foi uma bela ideia da edição de Cartas da Juventude disponibilizar, numa playlist do Spotify, 60 canções citadas no livro, uma autêntica trilha sonora da época. Entre elas Caminhando (Pra Não dizer que não falei de flores), de Geraldo Vandré. Foi essa música, o hino das passeatas de 68, a gota d’água que levou a linha dura militar a decretar o AI-5 na sexta-feira 13 de dezembro de 1968. (Sim, artistas e intelectuais, homens e mulheres, não hesitaram em ir às ruas declarar o seu repúdio à ditadura, como na Passeata dos Cem Mil, no Rio de Janeiro.) 

Em meados de 60 a bossa nova não só havia consolidado a sua hegemonia, como abria portas no mercado internacional através do jazz e de Sinatra. Outras linguagens musicais surgiram: a Jovem Guarda, versão brasileira do rock ‘n’ roll; as canções de festival, uma “música de resultados”; e a tropicália. As novas estrelas eram Chico Buarque, Milton Nascimento, Edu Lobo, Caetano Veloso e, no início dos anos 70, o vozeirão funk de Tim Maia e a “mosca na sopa” da MPB, Raul Seixas. No começo dos anos 80, como uma onda avassaladora, estouraram, no eixo Rio-São Paulo-Brasília as bandas do BRock: Blitz, Barão Vermelho, Kid Abelha, Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Capital Inicial, Titãs e astros trágicos como Cazuza e Renato Russo, mortos aos 32 e 36 anos (Herbert Vianna também roçou com a morte precoce, aos 40, num acidente de ultraleve).

Vejam só que coincidência (ou confluência) feliz: no dia 15 de janeiro de 1985, depois que Tancredo Neves foi eleito Presidente da República pelo Colégio Eleitoral – pondo fim a quase 21 anos de ditadura militar – Cazuza arrebatava uma multidão de 250 mil pessoas no primeiro Rock in Rio cantando Pro Dia Nascer feliz. 

Veja aqui:

https://www.youtube.com/watch?v=2khOoaB5gUo

Essa história daria um tratado, vou me limitar a breves pinceladas nas demais áreas. No Grupo Opinião, formado no Rio de Janeiro, depois do golpe militar, para afrontar a ditadura, Maria Bethânia surgia para a imortalidade na pegada do Carcará em 1965 no espetáculo Opinião. Em São Paulo, no Teatro de Arena, Vianninha e Guarnieri transplantam para os trópicos as ideias e táticas do “teatro engajado” de Bertold Brecht. No Teatro Oficina, Zé Celso faz montagens revolucionárias. Em meados de 1968, quando encenava um espetáculo inspirado na canção Roda Viva de Chico Buarque, a sala foi invadida e depredada, pelo Comando de Caça aos Comunistas, uma milícia paramilitar de neonazistas que adotou a sigla CCC em homenagem ao KKK americano. 

Culturalmente, a ditadura teve uma primeira fase light, até o AI-5, e outra de repressão total à livre manifestação do pensamento. Nessa, foi preciso muito jogo de cintura para driblar a censura.

Terra em transe, de Glauber Rocha, lançado em 1967.

Foi na fase light que o Cinema Novo deslanchou, muitas vezes com apoio oficial. Havia até uma Comissão de Assistência à Indústria Cinematográfica, a CAIC. Muitos diretores tiveram seus filmes de estreia lançados de pois do golpe: Joaquim Pedro de Andrade (O padre e a moça), Gustavo Dahl (O bravo guerreiro), Neville de Almeida (O bem-aventurado), Walter de Lima Jr (Menino de engenho), Maurício Gomes Leite (A vida provisória), Luís Sérgio Persson (São Paulo Sociedade Anônima), Maurice Capovilla (Bebel, garota propaganda), Sylvio Back (Lance maior), Rogério Sganzerla (O Bandido da Luz Vermelha), Julio Bressane (Matou a família e foi ao cinema).

Três protagonistas dos Oito do Glória, presos em 1965 numa manifestação contra o Presidente Castello Branco, fizeram importantes obras sobre o dilema do intelectual brasileiro da época: aderir ou não à luta armada. Carlos Heitor Cony e Antonio Callado escreveram os romances Pessach, a travessia e Quarup. Glauber Rocha fez um de seus filmes mais carismáticos, Terra em transe.

Depois do AI-5, o Brasil partiu para outras artes, ou malasartes: a filosofia de vida da Pilantragem, na música, e a pornochanchada no cinema. As artes plásticas sofreram o duplo impacto da pop art (que apagou as fronteiras de arte culta e arte popular) e da arte conceitual, que saiu das telas para os happenings, as instalações e tudo o mais que se quiser. 


Como contestador-mor, destacou-se o carioca Hélio Oiticica, lançador das capas chamadas parangolés (um híbrido de arte plástica e dança) e do provocador lema “Seja marginal, seja herói”, numa serigrafia sobre a guerra entre bandidos honestos e policiais desonestos. 

Oiticica provou que, apesar de todo o aparato repressivo, o artista sempre sai vencedor, por sua inteligência e capacidade criativa.

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