Guaratuba ao por do sol. Reprodução Facebook
Naquele ano os homens se rebelaram em Guaratuba. Meu tio José e seus
cupinchas da turma do Moyses Lupion recusavam-se terminantemente a comer peixe
na Semana Santa. Alegavam que a religião proibia apenas carnes vermelhas e
autorizava as carnes brancas, era como se fossem peixe. O jacaré tinha carne
branca como a da galinha. Decidiram caçar um jacaré bem grande para a família
toda. As mulheres ouviram caladas com cara de tacho, o cânone ancestral estava
do lado delas havia gerações. Seu silêncio era um sonoro “não”. Tio José apelou
então para um argumento imbatível: o próprio Deus era carnívoro, está lá em todas
as letras logo no comecinho da Bíblia. Correu a apanhar uma velha edição do
Santo Livro que pertencera a seu tio, Monsenhor Eugênio Dalledonne. E leu, com
voz solene, no grande salão da casa de praia de Guaratuba: “Gênesis 4: 1 Adão teve relações com Eva, sua mulher, e ela engravidou e deu à luz
Caim. Disse ela: "Com o auxílio do Senhor tive um filho homem". 2 Voltou a dar à luz, desta vez a Abel, irmão dele. Abel tornou-se pastor
de ovelhas, e Caim, agricultor. 3 Passado algum tempo, Caim trouxe do fruto da terra uma oferta ao Senhor.
4 Abel, por sua vez, trouxe as partes gordas das primeiras crias do seu
rebanho. O Senhor aceitou com agrado Abel e sua oferta, 5 mas não aceitou Caim e sua oferta. Por isso Caim se enfureceu e o seu
rosto se transtornou.” E, dando vazão ao seu ateísmo, herdado do avô anarquista, concluiu:
“Estão vendo, não só o Senhor era um tremendo carnívoro, como promoveu o
primeiro homicídio da história!”
Reprodução Facebook
Ponto final. Naquele mundo eram os homens que mandavam, mesmo, e se entregaram
imediatamente à organização da logística que envolvia um safari para caçar
jacarés na baía de Guaratuba. O instinto atávico do Grande Caçador Branco
entrou em erupção no seu peito como um Etna raivoso cuspindo lava e fogo. O
inimigo era o jacaré, aquele réptil rastejante e traiçoeiro, iriam vasculhar
cada bolsão dos mais recônditos manguezais da imensa baía à sua procura.
Tomadas todas as providências, partiram de lancha na quinta-feira, fortemente
armados, antes do sol raiar.
O jacaré chegou ainda vivo, todo amarrado
com cordas grossas, a couraça furada por mais de uma dezena de tiros. Era um
bicho respeitável, quase dois metros de comprimento. Ainda se debateu por uma
meia hora antes de morrer. O sol de outono lançava seus últimos raios sobre as
águas plácidas da baía e começava a se esconder detrás da Serra do Mar – envergonhado
de tudo aquilo talvez. No atracadouro da baía de Guaratuba os caçadores,
espingardas na mão, sorriam orgulhosos. Eram quatro, mais o piloto da lancha.
Ali se caçava de tudo – aves das mais variadas espécies, até mesmo garças e
tucanos, macacos de todos os tipos e tamanhos, pacas, tatus e capivaras – ali também,
naqueles tempos ecologicamente incorretíssimos, se comia de tudo. Um jacaré era
mais raro.
Para nós, crianças, as aventuras dos
caçadores estavam cercadas de mistério e heroísmo. E foi assim que, naquela
noite de Sexta-feira Santa de 1950 jantamos rabo de jacaré à milanesa, todos
acharam a carne uma delícia, tenra, um misto de peixe e frango.
Foi preciso que décadas se escoassem para nos
darmos conta de como éramos selvagens. Um belo dia raiou na minha consciência
que o herói de tudo aquilo era o jacaré. Dediquei a ele uma frase de um conto
de Hemingway. Hoje é sexta-feira.
(Hemingway, também caçador e amante de touradas, só perdoado por seu trato
sensível com as palavras). Três soldados romanos bebem à noite numa taverna de
Jerusalém e discutem os acontecimentos do dia. Naquela tarde eles acompanharam
a crucificação de Cristo. Ao longo da história, um deles repete um bordão: “I
thought he was pretty good in there today.”/ “Achei que ele se comportou
muito bem ali.” (Referindo-se a Cristo pregado na cruz.)
Achei que o jacaré de Guaratuba se comportou
muito bem ali – apesar do cordame e de todas aquelas balas no corpo...
Em poucos dias vou tomar a segunda dose da vacina. Caso se cumpra o vaticínio sinistro do nosso piadista de caserna – e eu me veja transformado num jacaré – só espero que seja naquele valoroso jacaré de Guaratuba.
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